As chuvas no Rio Grande do Sul se iniciaram dia 27 de abril. E depois de um mês do início dessa tragédia anunciada, ainda precisamos falar sobre ela. Dessa vez, iniciamos essa conversa com a distância necessária para analisar esse conflito, as ações emergenciais que aconteceram, o que o poder público fez (ou deixou de fazer), os impactos da mobilização da sociedade civil e a importância da adaptação climática. Por isso, caro leitor, temos que falar sobre o último desastre que mobilizou a nação e sobre como evitar que outros casos aconteçam.
Dias antes da tragédia, a Defesa Civil Municipal alertou sobre a possibilidade de fortes chuvas na região. Em pouco tempo, houve um reconhecimento da gravidade da situação a partir do aumento de ocorrências: bairros mais pobres já estavam sofrendo com deslizamento de terras e danos nas moradias. Com o avanço das chuvas, o intenso volume de água resultou no transbordamento do Rio Guaíba, que circunda a capital, afetando cerca de 2,3 milhões de habitantes do estado. Até o presente momento foram registrados 618 mil desalojados, 77 mil resgates realizados, mais de 37 mil pessoas em abrigos, 475 municípios impactados, 171 vítimas fatais, 806 feridos e 43 desaparecidos. O aeroporto de Porto Alegre está com suas atividades suspensas até agora. E deixa eu te contar um segredo: a culpa não é das chuvas.
Em 2022, os estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná sofreram com muitas enchentes e deslizamentos. Em junho de 2023, o RS enfrentou um ciclone extratropical que atingiu mais de 3 mil pessoas, resultando em 16 óbitos. Por isso, concluímos o óbvio: o cenário não é novo. Temos que admitir que a situação atual é resultado do agravamento das chuvas pelo aquecimento global sim, mas somado ao despreparo político para adaptação, descredibilização da ciência e perpetuação do negacionismo climático no Brasil. E esse cenário precisa mudar.
Eu não quero lamentar mais desastres, pois eles não deveriam estar acontecendo! Para que mais vidas não sejam perdidas, para que esse cenário não vire rotina, precisamos assumir: as mudanças climáticas são reais, já estão acontecendo e vão chegar até nós. Diante disso, precisamos saber como nos preparar e responder a isso. Sim, a chuva ia acontecer e estava prevista muito antes, isso é um fato. Mas precisamos saber que, com planejamento adequado, a tragédia poderia ter sido evitada. E esse plano de sobrevivência tem nome: adaptação climática!
Você já deve ter ouvido falar dos termos “mitigação e adaptação”. De forma bem resumida, posso te dizer que: mitigação é fundamental para garantir que a crise climática não piore até a situação se tornar insustentável, nos levando à extinção completa. Adaptação é para garantir que, mesmo diante do cenário de caos de hoje, continuemos vivos. Pensar em adaptação é pensar em como as cidades, comunidades e pessoas podem se tornar mais resilientes aos efeitos da mudança global do clima.
Mas adivinha só? Mesmo sabendo dessa importância, cerca de 66% dos municípios têm baixa capacidade de se adaptar a essa realidade. As ações governamentais emergenciais frente ao desastre no Rio Grande do Sul mobilizaram um volume considerável de recursos financeiros. O chamado “orçamento de guerra” é desenhado como uma “medida fiscal extraordinária”, que abre precedente importante para pensar em como o orçamento direcionado à adaptação deve ser previsto e calculado, não pode ser somente inesperado e momentâneo.
Contudo, caro leitor, gostaria de te deixar com uma reflexão: não devemos fazer só gestão de desastres, que é quando a tragédia acontece e temos que remediá-la. Precisamos fazer gestão de risco, que é quando levamos a ciência e suas previsões em consideração, com momentos de escuta popular e capacitação, direcionando políticas públicas efetivas para que tragédias não aconteçam mais.
Adotar medidas extraordinárias para desastres, mas sem pensar em planejamento, é como secar a água que cai de uma torneira aberta, em fluxo contínuo. A solução para o problema está em entender a sua origem e “fechar a torneira”. Em minha percepção, saber quais são os riscos climáticos e não agir, é atentar contra a vida humana. Se o orçamento é de guerra, que saibamos que a nossa verdadeira guerra é contra as mudanças climáticas e o desenvolvimentismo predatório. Não existe trégua aqui.
A sequência de erros na gestão de riscos climáticos têm custado vidas, e a carne mais barata do mercado continua sendo a carne negra. Hoje existem cerca de 6,8 mil famílias quilombolas no Rio Grande do Sul, que foram severamente atingidas pelas chuvas e não podem voltar aos seus territórios. Além disso, no processo de reconstrução os impactos em lavouras certamente serão sentidos, pois a fonte de renda será comprometida.
Quando questionado com relação à assistência emergencial dos quilombos, o Poder Público afirma que será impossível atender a todos. Nos encontramos novamente em uma representação da necropolítica presente em nossa sociedade: escolhe-se quem vive e quem morre com base na cor da pele, classe social, gênero e CEP. E esse é um dos motivos que ilustra que, além de cobrar por políticas efetivas de adaptação, é fundamental que elas sejam antirracistas.
As campanhas de arrecadação de roupas, água e alimentos foram fundamentais para atender a população do Rio Grande do Sul. Os Correios receberam mais de 15 mil toneladas de doações arrecadadas. Nesse momento, mostramos a força da sociedade civil e empatia daqueles que nos cercam. E no segundo momento, essa força deve sim ser direcionada à reconstrução do que foi perdido, mas com muita cautela. É preciso pensar nas fragilidades (políticas, sociais, econômicas, ambientais) que nos levaram a esse cenário e fazer diferente.
Sem repetir o erro. Precisamos estar preparados de todas as formas para outra chuva, pois sabemos que ela virá. Nesse sentido, a participação social e pressão coletiva também são ferramentas importantes para se fazer justiça climática na prática. Precisamos difundir essa ideia, combater o negacionismo climático e pressionar os governos locais para criação de planos efetivos de adaptação climática, sem deixar ninguém para trás.