Alexandre Mansur
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Por Alexandre Mansur

É diretor de projetos do Instituto O Mundo Que Queremos

Estamos vivendo os impactos das mudanças climáticas aceleradas na forma de eventos extremos e rupturas nos padrões conhecidos. As consequências são dramáticas tanto em perdas materiais quanto em sofrimentos humanos. O Brasil não é apenas vítima do clima. Nosso país hoje é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo. E é o quarto maior em emissões acumuladas, quando se considera o histórico de gases despejados na atmosfera que continuam por séculos gerando aquecimento do planeta. A maior causa de emissões do Brasil é o desmatamento, cerca de metade vem da derrubada de florestas.

Porém, quando se discute acabar com o desmatamento no país, existe um questionamento sobre o direito dos proprietários rurais de derrubar novas florestas. O Código Florestal dá aos proprietários o direito legal de obter autorização para supressão de vegetação em parte da área, dependendo do bioma onde está. A proporção permitida para desmatar pode variar de 20% a 80% dependendo da localização do imóvel, respeitando as áreas de preservação permanente (como margens de rios e encostas). Diante disso, considerando o direito da propriedade, faz sentido respeitar o que a lei permite (ou abrir novas áreas).

No entanto, quando a gente pensa no contexto geral da emergência climática e da prática de uso da terra, outros fatores entram em jogo. Primeiro, existe uma distância entre o que diz o Código Florestal e o que vale de fato no campo. A legislação no Brasil é cheia de brechas que permitem que muitos fazendeiros desmatem mais do que deveriam. Segundo o Código Florestal, quem tem uma fazenda no bioma florestal da Amazônia Legal deve preservar 80% dela. Mas, na prática, essa regra é flexibilizada para a maioria dos casos. Um levantamento inédito, publicado na revista Piauí, mostrou que quatro em cada cinco proprietários de terras na região da Amazônia são tratados como exceção. Apenas 22% dos 389 mil imóveis analisados com base no Cadastro Ambiental Rural (CAR) estão obrigados a cumprir a regra dos 80%.

Além disso, a legislação é fluida. Ela pode ser alterada a qualquer momento, por projetos de lei (PL) e emendas constitucionais que boa parte das pessoas nem fica sabendo. Está avançando, por exemplo, um PL que quer tirar todo o estado do Mato Grosso da Amazônia Legal. O objetivo é tirar os limites impostos pelo Código Florestal. Isso permitiria que os fazendeiros não fossem mais obrigados a seguir sequer essas regras pouco rígidas e dematassem ainda mais. Várias assembleias estaduais já aprovaram leis ambientais mais permissivas do que a legislação federal. De tempos em tempos, o Congresso aprova uma lei que anistia grilagem e desmatamento em terras públicas federais invadidas. Com tudo isso, boa parte do que é desmatamento ilegal hoje pode do dia para a noite passar a ser legal. E quem cometeu crimes pode ser anistiado sem nenhuma penalidade.

O desmatamento legal não se justifica por necessidade. Não faltam estudos que provam que não precisamos desmatar mais.

Segundo o Amazônia 2030, somente as áreas já desmatadas da Amazônia são suficientes, se houver melhoria da produtividade, para abrigar toda a expansão agropecuária na região, sobrando aproximadamente 35 milhões de hectares que poderiam ser alocados para a restauração florestal (plantio de árvores nativas para captura de carbono) e outros usos da terra. Ainda segundo a iniciativa, apesar do desmatamento, existe uma área enorme de cobertura florestal que têm um valor estratégico por seu potencial para a bioeconomia e, especialmente, pelos serviços ambientais que presta ao planeta.

Se todos esses argumentos ainda não forem suficientes, as consequências do desmatamento são fatos que deveriam pesar mais que a distinção de legal ou não legal. Os impactos das mudanças climáticas afetam especialmente o setor rural. A agricultura brasileira é uma fábrica a céu aberto. Portanto, depende da chuva e da estabilidade climática para produzir. Além do exemplo trágico do que está acontecendo no Rio Grande do Sul, já estamos vendo diversas perdas de produção por conta da instabilidade climática. Os chineses, principais compradores de commodities do Brasil, já expressaram sua preocupação com a nossa capacidade de continuar fornecendo para eles porque, em muitos lugares, a produção de soja, para citar apenas um exemplo, já está diminuindo. Para quem vê o Brasil de fora, não faz diferença se o desmatamento é legal ou ilegal. Para os impactos climáticos, tanto faz.

Conversando sobre essa situação, Rafael Volochen, um colega cientista social e profissional que gerencia recursos de cooperação internacional climática, teve uma ideia provocativa sobre nosso comportamento coletivo.

A atmosfera da Terra não diferencia se a molécula de dióxido de carbono que acentua o efeito estufa veio de um desmatamento autorizado por lei ou criminoso. O efeito é o mesmo. O que aconteceria se formos aplicar a distinção entre legal e ilegal também para os impactos das mudanças climáticas geradas pelo desmatamento?

Proponho o exercício de pensarmos por um momento dessa forma. Quando o agricultor tem perdas de safras inteiras por excesso ou falta de chuva, faz diferença se o desmatamento foi legal ou ilegal? Quando pessoas perdem suas casas por alagamentos ou precisam se preocupar com como o calor afeta sua própria saúde, faz diferença se a mudança climática foi legal ou ilegal? Quando as cidades brasileiras vivem ondas cada vez mais intensas e duradouras de calor, que colocam em risco a saúde e a própria vida das pessoas, é possível separar a onda de calor legal da ilegal? As ressacas crescentes estão comendo nossas praias e ameaçando as infraestruturas litorâneas. Iremos diferenciar a elevação do nível do mar legal e a ilegal?

Imagine como seria para as autoridades lidarem com essa situação. Quando houver uma enchente ou um grande desmoronamento com dezenas ou centenas de vítimas, a Defesa Civil só vai acudir quem foi atingido pela chuva ilegal? Os governos só vão arcar com os custos de reconstrução da infraestrutura destruída por eventos extremos ilegais? Quando o agro brasileiro estiver sofrendo grandes quebras de safra por estiagem ou ondas de calor associadas ao desmatamento e às mudanças climáticas, os produtores só poderão receber auxílio financeiro emergencial referente à parcela de seca ilegal?

Talvez a gente tenha que desenvolver uma divisão nova entre os climatologistas e meteorologistas, especializada em diferenciar os eventos extremos legais dos ilegais. E a parcela de destruição gerada pelas mudanças climáticas legais nós teremos que aceitar como parte do jogo e seguir a vida, se possível, sem reclamar. Afinal, são mudanças climáticas autorizadas pela lei. Por isso, podemos entender que estamos vivendo uma espécie de dissonância cognitiva generalizada. Novas formas de olhar para o problema podem nos dar uma visão crítica necessária para despertarmos.

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