Folha de S. Paulo


Ci�ncia repensa o c�rebro e mostra que ele n�o � feito para mudar de ideia

Zanone Fraissat/Folhapress
Grupos pr� e anti-Lula se confrontam em dia de depoimento do ex-presidente, no F�rum da Barra Funda

RESUMO Autores de livros recentes no campo da ci�ncia cognitiva procuram repensar o papel da raz�o e descrever as armadilhas que ela nos prepara. Segundo algumas novas hip�teses, a l�gica � apenas um artif�cio ret�rico para persuadir, e nosso c�rebro evoluiu de forma a nos convencer de que sabemos mais do que sabemos.

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O que � o homem? Plat�o arriscou uma defini��o: b�pede implume. Ela n�o durou muito. Logo despontou Di�genes de Sinope, mais conhecido como o C�nico, que depenou uma galinha e passou a exibi-la: "Eis um homem de Plat�o". Como fil�sofos nunca d�o o bra�o a torcer, o pessoal da Academia acrescentou "e de unhas achatadas" � defini��o original.

Arist�teles teve mais sorte ao definir o homem como animal racional ("z�on l�gon �chon"). Embora fil�sofos nunca tenham deixado de apontar incoer�ncias de nossa natureza (nem Kant achava que o homem era racional o tempo inteiro), a proposta aristot�lica resistiu por mais de 2.000 anos e ganhou especial relev�ncia com o Iluminismo.

Nas �ltimas d�cadas, no entanto, a defini��o come�ou a sofrer ataques sistem�ticos. As investidas t�m base emp�rica e v�m de dois flancos distintos.

De um lado, pesquisas no campo da etologia mostraram que v�rios outros animais –notadamente certas fam�lias de mam�feros e alguns g�neros de aves– s�o capazes de resolver problemas projetando o futuro e recorrendo a v�rias marcas distintivas daquilo que chamamos de racionalidade. Em alguns casos, verificou-se at� mesmo o uso de ferramentas e a transmiss�o cultural.

Ainda que os superemos em quase todas essas caracter�sticas, fica mais complicado ter na raz�o o crit�rio que separa homens de bestas.

De outro lado, investiga��es sobre o comportamento humano revelaram que nossa racionalidade tem mais buracos que um queijo emmenthal. N�o � apenas que de vez em quando ajamos irracionalmente; na verdade, a irracionalidade est� inscrita em nossa forma de pensar, � bastante previs�vel e, �s vezes, quantific�vel.

Nas �ltimas tr�s d�cadas, pesquisadores elencaram uma lista telef�nica de vieses cognitivos que nos afastam do ideal de raz�o imaginado pelos fil�sofos iluministas.

Camile Sproesser
Pintura de Camile Sproesser para a Ilustr�ssima

Quer um exemplo? Se voc� � petista de carteirinha, talvez veja na Opera��o Lava Jato uma articula��o das elites para desacreditar a esquerda em geral e o PT em particular. E, quando algu�m lhe mostra que um n�mero maior de pol�ticos de outras siglas e oriundos do campo ideol�gico oposto tamb�m se viu enredado nas den�ncias, s�o grandes as chances de voc� minimizar a import�ncia desse dado, descrevendo-o como manobra para salvar as apar�ncias da Justi�a, ou algo assim.

Em psicologia, essa opera��o mental de dar aten��o �s evid�ncias que sustentam nossa teoria preferida e descartar as que a contradizem tem nome: vi�s de confirma��o. Ub�quo nas atividades humanas, ele n�o � um cochilo da raz�o, um simples erro aleat�rio que de vez em quando cometemos. Trata-se, ao contr�rio, de um elemento constitutivo de nosso pensamento, moldado por milhares de anos de evolu��o biol�gica.

Assim, onde quer que exista um vi�s, existe uma vantagem adaptativa que o esculpiu em nossa mente. Nem sempre ela � �bvia, mas est� l�. Portanto, uma no��o mais realista de "raz�o" precisa incluir os vieses, ainda que eles pare�am trabalhar contra a raz�o.

O ENIGMA

Sa�ram nos �ltimos meses v�rios livros bem interessantes no campo da ci�ncia cognitiva cujos autores procuram repensar o papel da raz�o e descrever as armadilhas que ela nos prepara.

A obra mais ousada � "The Enigma of Reason" [Harvard University Press, 408 p�gs., R$ 103,39, R$ 55,96 em e-book] (o enigma da raz�o), dos franceses Hugo Mercier e Dan Sperber —o original � mesmo em ingl�s. A dupla pretende nada menos do que propor uma nova teoria do entendimento humano.

Para Mercier e Sperber, h� um duplo enigma em torno da raz�o. Se ela � t�o �til a ponto de ter posto o homem no comando da natureza, por que n�o se desenvolveu na mesma escala em outros animais? E, se � t�o eficaz, como explicar a abund�ncia de vieses que nos levam a erros infantis nos racioc�nios?

Para os autores, devemos deixar de pensar a raz�o como um superpoder cognitivo que nos foi concedido por um capricho evolucion�rio e encar�-la mais modestamente como apenas uma das capacidades cognitivas humanas, muito bem adaptada para exercer sua verdadeira fun��o. E qual � ela?

Aqui, precisamos prosseguir devagar. Mercier e Sperber come�am por conceituar a raz�o como um mecanismo de gerar infer�ncias.

At� a�, nada de muito especial. Bichos tamb�m fazem infer�ncias o tempo todo (mesmo sem ter consci�ncia disso). Eles usam o que j� sabem para tirar conclus�es sobre o que ainda n�o sabem. Esse tipo de opera��o mental lhes permite antecipar o que poder� acontecer nos pr�ximos instantes e agir de acordo (fugir quando percebem que o predador est� se aproximando, por exemplo).

Nossos amigos peludos ou emplumados n�o fazem isso a partir de um mecanismo geral de extrair infer�ncias, mas por meio de diferentes tipos, cada um voltado a um problema espec�fico: O que comer? Com quem copular? Quando fugir?

Humanos, dizem os autores de "The Enigma of Reason", s�o como outros animais. N�o possu�mos uma compet�ncia geral para inferir, mas v�rios mecanismos especializados. A diferen�a � que, enquanto os dos bichos est�o calcados quase exclusivamente em instintos, os nossos, ainda que partam de uma base instintiva, s�o em larga medida adquiridos a partir da intera��o com outras pessoas.

N�o existe um instinto de falar portugu�s ou ingl�s, mas h� um que nos faz, quando beb�s e crian�as, prestar especial aten��o aos sons de um idioma com o objetivo de aprend�-lo —ou adquiri-lo, num linguajar chomskyano. A base da linguagem �, assim, instintiva, mas seu conte�do � fixado na intera��o com outros humanos.

Outra diferen�a importante � que, enquanto animais operam de forma autom�tica e inconsciente, n�s �s vezes temos consci�ncia parcial de que estamos fazendo infer�ncias. Entramos aqui no terreno das intui��es. Um exemplo: voc� intui que sua mulher anda chateada com alguma coisa, ainda que ela n�o o tenha dito e possa at� neg�-lo.

DOIS PARADIGMAS

Intui��es aparecem prontas ante nossa consci�ncia, mas sentimos que s�o conclus�es que se formaram dentro de nossas mentes, ainda que de forma opaca. Mercier e Sperber afirmam que elas s�o como um iceberg mental: vemos a pontinha, mas h� uma grande massa de processos abaixo da consci�ncia que n�o conseguimos enxergar.

R�pido e Devagar
Daniel Kahneman
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A dupla contesta abertamente o que vem se firmando como um novo paradigma da psicologia, que � o contraste entre intui��o e raz�o, postulado por autores do calibre de Paul Slovic e Daniel Kahneman. Segundo essa corrente, temos por assim dizer dois modos de pensar: um eminentemente intuitivo, que � r�pido e se ampara em instintos e emo��es, e outro racional, que � lento e calcado na l�gica.

Da� vem o t�tulo do best-seller de Kahneman, "R�pido e Devagar" (Objetiva).

Mercier e Sperber sustentam que a raz�o �, como no "r�pido" de Kahneman, uma m�quina de gerar intui��es, mas intui��es sobre um tipo espec�fico de representa��o: as pr�prias raz�es, em especial aquelas que nos levam a agir.

No contexto hipersocial em que evolu�mos, usamos essas intui��es a fim de produzir raz�es (argumentos) para justificar nossos pensamentos e atitudes em rela��o aos outros, os quais tentamos o tempo todo persuadir a agir como n�s mesmos. Nesse quadro, a pr�pria l�gica se torna mais um artif�cio ret�rico usado para convencer do que um superpoder intelectual.

No modelo de Mercier e Sperber, alguns dos vieses cognitivos n�o precisam mais ser vistos como uma falha catastr�fica, mas como uma caracter�stica desej�vel. O melhor exemplo � justamente o vi�s de confirma��o. Se a raz�o foi selecionada para nos fazer justificar nossas atitudes e para vencer debates, ent�o faz sentido que busquemos apenas provas em favor de nossas teses, e n�o contra elas.

Adotada a l�gica da produ��o de argumentos, o que era antes visto como um erro se torna um dos pontos fortes da teoria. Nenhum etologista jamais encontrou algo parecido com o vi�s de confirma��o entre animais.

N�o resisto a citar a frase de Robert Wright em "O Animal Moral" (Campus) sobre nossa parcialidade: "O c�rebro � como um bom advogado: dado um conjunto de interesses a defender, ele se p�e a convencer o mundo de sua corre��o l�gica e moral, independentemente de ter qualquer uma das duas. Como um advogado, o c�rebro humano quer vit�ria, n�o verdade; e, como um advogado, ele � muitas vezes mais admir�vel por sua habilidade do que por sua virtude".

A VERDADE

Isso significa que devemos renunciar definitivamente a encontrar a verdade? Talvez n�o. O fato de estarmos sempre querendo convencer n�s mesmos e o planeta de que estamos certos n�o significa que tenhamos sucesso em todas as tentativas. N�s, afinal, n�o tomamos qualquer desculpa esfarrapada como argumento v�lido.

E somos bons em avaliar argumentos? Se o contexto n�o trabalhar contra, at� que n�o nos sa�mos mal. Examinemos um problema utilizado pela dupla francesa num experimento psicol�gico.

Paul est� a fim de Linda, e Linda est� a fim de John. Paul � casado, mas John n�o �. H� algu�m casado a fim de algu�m que n�o o �?

Existem tr�s respostas poss�veis: "sim", "n�o" e "n�o d� para determinar". Qual � o seu palpite?

Por raz�es que n�o cabe discutir aqui, a maior parte dos volunt�rios americanos e chineses disse "n�o d� para determinar". Aparentemente, chegaram a essa conclus�o por n�o lhes ter sido dado o estado civil de Linda. Mas ser� necess�rio ter essa informa��o para chegar a uma resposta menos tucana?

Se Linda for casada, ela est� a fim de John, que n�o �. Isso nos deixa com uma resposta "sim". Se ela n�o � casada, temos Paul, que � casado, a fim de uma pessoa n�o casada (Linda), o que nos leva mais uma vez a um "sim". Ou seja, em qualquer hip�tese, a resposta � "sim".

Ap�s a explica��o, mais da metade dos volunt�rios que haviam optado pelo "n�o d� para determinar" mudou de ideia e aceitou "a verdade". E isso ocorreu de forma robusta, com a aceita��o do argumento verdadeiro mesmo quando os pesquisadores, de forma trai�oeira (nenhum experimento psicol�gico � digno desse nome se n�o envolver alguma manipula��o), diziam que o esclarecimento havia sido proposto por um idiota ou por algu�m que ganharia dinheiro se os induzisse a erro.

A tese de Mercier e Sperber � que somos melhores ao julgar as raz�es dos outros do que ao criar as nossas pr�prias justificativas. E essa � uma excelente not�cia. Tal caracter�stica permite que, na intera��o com as raz�es dos outros, acabemos descartando racioc�nios ruins e guardando os melhores. Como empreitadas coletivas, a cultura e a ci�ncia funcionam e at� podem nos levar a "verdades".

ILUS�O

A ideia de que a ci�ncia � um saber coletivo � a tese central de "The Knowledge Illusion" [Pan Macmillan, 320 p�gs., R$ 74,90, R$ 51,52 em e-book] (a ilus�o do conhecimento), dos cientistas cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach.

Se eles fossem obrigados a produzir uma defini��o para o ser humano, provavelmente diriam que somos animais presun�osos. Ignoramos o b�sico sobre coisas simples que utilizamos o tempo todo, mas temos a n�tida sensa��o de que somos experts nesses objetos.

O exemplo destacado pela dupla � quase escatol�gico: a descarga do banheiro. A maioria de n�s � incapaz de explicar o processo de despacho de dejetos. No modelo hoje mais usado (e mais higi�nico tamb�m), o que move a bozerra � o efeito sif�o. Trata-se de f�sica ginasiana, mas isso n�o nos torna mais aptos a explicar o milagre.

Obviamente, o problema n�o se limita a descargas. Nossa ignor�ncia j� foi mensurada em rela��o a v�rios objetos cotidianos, como z�peres, veloc�metros, teclas de piano, m�quinas de costura. Melhor nem citar itens que envolvem f�sica de colegial, como fornos de micro-ondas ou bombas at�micas.

Quando questionadas sobre o funcionamento das coisas, as pessoas invariavelmente superestimam seu conhecimento –e se d�o conta de sua ignor�ncia somente quando instadas a descrever em detalhes os processos envolvidos.

Sloman e Fernbach sustentam que n�o estamos mentalmente equipados para guardar os detalhes de objetos nem de situa��es particulares.

Camile Sproesser
Pintura de Camile Sproesser para a Ilustr�ssima

O escritor argentino Jorge Luis Borges concebeu um personagem dotado de mem�ria perfeita. Funes, o Memorioso, era capaz de reconstruir cada um de seus dias, atividade que evitava porque consumia muito tempo. Lembrar todos os eventos de um dia levava exatamente um dia.

At� recentemente, contam os autores de "The Knowledge Illusion", imaginava-se que Funes estava restrito ao mundo da fantasia. Mas, em 2006, pesquisadores da Universidade da Calif�rnia publicaram o relato do caso de uma paciente, AJ, que exibia habilidades pr�ximas �s do personagem de Borges.

"Posso pegar uma data entre 1974 e hoje e dizer em que dia caiu, o que eu fazia naquele dia e se algo de grande import�ncia ocorreu (...) Sempre que eu vejo uma data aparecer na televis�o (ou em qualquer outro lugar), eu automaticamente volto �quele dia e lembro onde eu estava, o que fazia etc.", explicou AJ aos cientistas.

Trata-se de uma s�ndrome que leva o nome de hipertimesia. Ela � bastante rara. Poucas dezenas de pessoas no mundo j� receberam esse diagn�stico, mas o simples fato de elas existirem prova que, se n�o temos mem�ria perfeita, n�o � devido a limites impostos pela bioengenharia. Conseguir mais mem�ria, como sabe o pessoal que trabalha no desenvolvimento de computadores, � o problema f�cil.

Para Sloman e Fernbach, o c�rebro foi projetado para arquivar as grandes regularidades do mundo, deixando de lado os detalhes. Isso n�o ocorre para o corpo economizar recursos, mas porque operar de forma minimalista nos ajuda a fazer generaliza��es e, assim, ampliar nossa capacidade de resolver problemas novos.

Como ensinou Borges, a mem�ria perfeita de Funes matava sua capacidade de abstra��o e at� mesmo de compreens�o: "Este [Funes], n�o o esque�amos, era quase incapaz de ter ideias gerais (...) Custava-lhe compreender que o s�mbolo gen�rico 'cachorro' abarcasse tantos indiv�duos d�spares de diversos tamanhos e diversas formas". Tamb�m AJ descreve sua mem�ria muito mais como um fardo do que como um dom.

A��O

Ok, agora temos uma boa hip�tese para o fato de n�o estarmos equipados com uma estrutura mental que nos permita conhecer em detalhe todos os objetos com os quais lidamos, mas isso ainda n�o explica por que temos a ilus�o de que sabemos muito mais do que sabemos. Por que vivemos essa mentira?

A resposta curta �: para poder agir. Se f�ssemos proceder a uma avalia��o realista e completa antes de executar qualquer a��o, n�s nos perder�amos em d�vidas hamletianas e nunca far�amos nada. Pior at�, mergulhar�amos num po�o de disson�ncias cognitivas que s�o tortura para o c�rebro.

A solu��o encontrada pela evolu��o foi a mais simples poss�vel: pare de fazer perguntas, considere que voc� j� sabe tudo o que � necess�rio saber e aja. Se seus instintos estiverem bem calibrados, suas chances de sobreviver ser�o maiores do que as de morrer e voc� conseguir� passar seus genes sabich�es para a posteridade.

Com isso, voltamos a um paradoxo que � nosso velho conhecido: se somos t�o rasos (mesmo que pensemos que n�o somos), como conseguimos enviar o homem � Lua, criar institui��es pol�ticas razoavelmente funcionais (em alguns pa�ses, pelo menos) e produzir latrinas que funcionam?

De novo, a resposta est� na a��o coletiva. Como dizem Sloman e Fernbach, "nossos cr�nios podem delimitar a fronteira de nossos c�rebros, mas n�o a de nosso conhecimento. A mente se estende para al�m do c�rebro, para incluir o corpo, o ambiente e outras pessoas".

N�s vivemos numa comunidade de conhecimento. Como coletividade, conseguimos armazenar uma quantidade impressionante de conhecimentos, que depositamos em livros, grupos de especialistas e nos pr�prios objetos –voc� n�o precisa saber f�sica para acionar a descarga. Melhor, sua vida poder� ser salva por antibi�ticos mesmo que voc� n�o acredite em micr�bios.

ESPECIALISTAS

Kahneman, no j� mencionado "R�pido e Devagar", descreve o interessant�ssimo debate entre o tamb�m j� mencionado Paul Slovic, psic�logo especializado em percep��o do risco, e Cass Sunstein, jurista convertido em economista comportamental.

Slovic n�o confia muito em especialistas. Diz que eles padecem dos mesmos vieses dos leigos, mas t�m uma capacidade infinitamente maior de enrolar as pessoas.

Para ele, a pr�pria no��o de risco objetivo nada tem objetivo. O perigo associado � polui��o, por exemplo, deve ser expresso em mortes por milh�o de habitantes ou em mortes por milh�o de d�lares produzidos? A rea��o do p�blico a cada uma dessas informa��es � bastante diferente.

Segundo Slovic, n�o existe resposta certa aqui, e o senso comum acaba sendo um juiz at� mais competente do que os experts.

Sunstein adota posi��o pr�-ci�ncia. Para ele, apenas reagir com o c�rebro emocional �s not�cias de jornal leva a resultados no mais das vezes negativos. Um exemplo: o excesso de mortes em acidentes automobil�sticos entre americanos que trocaram o avi�o pelo carro por medo de ataques terroristas (2.300 �bitos, segundo exerc�cio estat�stico de Garrick Blalock) n�o fica t�o distante do de mortes contadas no 11 de Setembro (2.996).

Nessa pol�mica, Sunstein acaba de ganhar um aliado. Trata-se de Thomas Nichols, autor de "The Death of Expertise" [Oxford University Press, 272 p�gs., R$ 72,03, R$ 46,89 em e-book] (a morte da expertise). O soviet�logo, professor do Naval War College e de Harvard, denuncia uma tend�ncia anti-intelectualista que vem surgindo nos EUA –e no restante do mundo– e se insurge contra ela.

Para Nichols, vivemos tempos paradoxais. O conhecimento nunca foi t�o f�cil. A quantidade de informa��es reunidas na internet e � disposi��o de qualquer um que tenha um computador n�o tem precedentes na hist�ria da humanidade. Isso, ao lado da propor��o cada vez maior de pessoas que passaram por um curso superior, trouxe inequ�vocos ganhos sociais.

N�o obstante, afirma o autor de "The Death of Expertise", n�s nos vemos em meio a uma onda antirracionalista que amea�a destruir o conhecimento especializado e, com ele, a pr�pria democracia.

Os Estados Unidos devem intervir militarmente na Ucr�nia? Apesar das consequ�ncias potencialmente catastr�ficas de uma aventura como essa, uma parcela dos americanos acha que sim. E quem s�o esses esp�ritos belicosos? Demonstraram maior apoio � interven��o justamente os cidad�os que mais erraram ao localizar a Ucr�nia num mapa-m�ndi.

TEMPOS PERIGOSOS

"Posto de outro modo, pessoas que pensavam que a Ucr�nia se localizava na Am�rica Latina ou na Austr�lia eram as mais entusi�sticas em rela��o ao uso da for�a pelos Estados Unidos. S�o tempos perigosos. Nunca tantos tiveram acesso a tanto conhecimento e se mostraram t�o resistentes a aprender alguma coisa", escreve Nichols, que dedica o restante do livro a mostrar os v�rios modos pelos quais uma combina��o de narcisismo arrogante com ideias igualit�rias meio fora de lugar est� minando o lugar do saber especializado.

N�o faltam exemplos disso: movimentos "culturais" se insurgem contra a vacina��o de crian�as e a pasteuriza��o do leite; um presidente africano acha que a Aids n�o pode ser provocada por um v�rus e atrasa em v�rios anos programas que poderiam ter salvado milhares de vidas em seu pa�s.

O resultado, sustenta o autor, � um certo desprezo n�o s� pelo especialista como tamb�m pela educa��o, o que vem enfraquecendo as bases da democracia representativa. Em vez de um p�blico informado pronto a dialogar e forjar solu��es pol�ticas para os problemas, encontramos um mundo de p�s-verdades no qual tribos hist�ricas est�o prontas a se digladiar umas com as outras ao primeiro sinal de desconforto emocional.

Nichols levanta hip�teses interessantes para explicar os mecanismos que est�o operando para promover essa rejei��o da ci�ncia. Sobra para todo mundo. Levam cacetadas a internet, as universidades, a imprensa e, � claro, os pr�prios especialistas.

� poss�vel e at� prov�vel que Nichols pinte sua tese central com tintas excessivamente dram�ticas, mas acho que ele esbarrou num fen�meno real, crescente e que merece nossa aten��o.

Afinal, se h� algo que o fervilhante ramo da ci�ncia cognitiva mostra � que o saber � uma empreitada coletiva que, mesmo desprezada, tem resultados impactantes em nossas vidas.

H�LIO SCHWARTSMAN, 52, bacharel em filosofia, � colunista da Folha e autor de "Pensando Bem..." (Editora Contexto).

CAMILE SPROESSER, 32, � artista pl�stica.


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