Folha de S. Paulo


Liberdade � o principal alvo dos paladinos das novas direitas

Bruno Santos/Folhapress
Protesto contra Judith Butler em frente ao Sesc Pompeia

H� cerca de um m�s, a caminho da academia de gin�stica em Higien�polis, onde moro, passei por um posto de gasolina que costuma servir de estacionamento por ocasi�o dos eventos festivos da sinagoga vizinha.

Enquanto eu atravessava o posto a p�, uma senhora que dirigia uma SUV preta amassada no para-lama, com a filha no banco do passageiro, manobrava com dificuldade entre dois carros estacionados. Acabou entalada, impedindo a minha passagem.

Ao nos encararmos, ela n�o pensou duas vezes antes de gritar, com os olhos flamejantes: "Judeu filho da puta!". Fiquei sem palavras. Diante da minha surpresa, ela insistiu na inj�ria mais algumas vezes, sempre aos gritos.

Uma cena dessas era inconceb�vel h� alguns anos, ainda mais num bairro onde vivem tantos judeus, a poucos metros de uma sinagoga. Imagino que, em outras circunst�ncias, a mesma senhora recorra a outras formas de tratamento de seu repert�rio: "�rabe filho da puta!", "Preto filho da puta!", ou "Veado filho da puta!".

Tanto faz. O antissemitismo, o racismo, o machismo e a homofobia sempre grassaram � sombra da civilidade brasileira, a despeito do desembara�o com que tentavam nos vender o conto da carochinha de que aqui, por milagre, inimigos mortais no resto do mundo viviam em confraterniza��o. A diferen�a � que aquilo que antes se dizia apenas em casa agora � esbravejado em pra�a p�blica.

Eu deveria ter gravado a cena e registrado a placa do carro. Ainda h� leis contra racismo, cal�nia e difama��o.

Mais complicado � combater o discurso de �dio em suas vers�es capciosas e an�nimas na internet. Se, por exemplo, algu�m nas m�dias sociais diz que pretende me matar, ou a meus filhos ou � minha m�e, pelas coisas que eu defendo, devo crer que haver� uma passagem natural da palavra ao ato?

Pedir �s empresas a supress�o dessa palavra injuriosa n�o seria consentir com uma suposta inutilidade das leis que existem para me proteger, e seguir racioc�nio semelhante ao dos que defendem em sua histeria hip�crita a censura de uma exposi��o ou de um museu, alegando que a representa��o da nudez induz � pornografia e � pedofilia?

A armadilha � reproduzir a l�gica do inimigo. No caso de amea�as de morte virtuais e eventuais, n�o seria mais inteligente e razo�vel supor que, como no velho ditado, c�o que ladra n�o morde? E se amparar em leis que criminalizam o racismo, a viol�ncia e a incita��o ao �dio, em vez de apelar para a censura?

Quem diz defender a liberdade de express�o por meio de provoca��es oportunistas e inj�rias racistas, sexistas e homof�bicas no fundo trabalha pelo fim da liberdade de express�o. E espera que as v�timas desbaratadas desses ataques sejam naturalmente for�adas a colaborar com eles, reagindo de acordo com a mesma l�gica, justificando a mesma moral, minando o bom senso.

Como nos atentados terroristas com pretextos religiosos, a liberdade tamb�m � o principal alvo dos paladinos das chamadas novas direitas. Sua t�tica � voltar o bom senso contra si mesmo, � maneira de um ataque autoimune.

Nos Estados Unidos j� h� quem proponha uma revis�o constitucional da primeira emenda como medida contra o discurso de �dio, assumindo a impot�ncia das leis existentes, que deveriam coibi-lo, mas que se revelam in�teis a cada novo ataque —a ponto de um presidente poder ser eleito bravateando a impunidade desse mesmo discurso.

Nas artes, o retrocesso moralista desfruta de uma efic�cia adicional ao se coadunar, � maneira de um v�rus oportunista, com a tend�ncia em princ�pio oposta e libert�ria de igualar a obra � express�o ou � imagem do autor.

O primeiro efeito perverso da compreens�o identit�ria das artes, pondo o autor no lugar da obra, � a ca�a �s bruxas.

Por ocasi�o de uma recente retrospectiva dos filmes de Roman Polanski na Cinemateca Francesa, a secret�ria de Estado encarregada da igualdade entre mulheres e homens sugeriu que procurassem "programar cineastas que n�o tivessem sido condenados por agress�es sexuais ou por estupro", como se o que estivesse em quest�o fosse a conduta moral do autor, n�o sua obra cinematogr�fica.

� dif�cil imaginar o que sobraria da literatura francesa (ou de qualquer outra literatura) se o comportamento moral dos autores passasse a ser determinante no julgamento das obras de arte. Uma coisa � condenar um homem por estupro, outra � banir uma obra pela conduta moral ou sexual do autor.

Se voc� luta pela liberdade, mas n�o v� diferen�a entre uma coisa e outra, � porque seu inimigo j� ganhou.


Endere�o da p�gina:

Links no texto: