Brutal, marcante e digno de várias revisões: 'Nascido para Matar' (1987), filme de Stanley Kubrick, é um inesquecível clássico sobre o que há por trás da Guerra do Vietnã e o que a militarização (e a reação a ela) representa no contexto cultural dos anos 1960 e 1970.
As críticas já começam logo no pôster, com o dizer "Nascido para Matar" em um capacete de combate, ao lado do ícone utilizado pelo movimento hippie para representar a paz .
Quando a notícia de que a arte original, feita pelo renomado Philip Castle, havia sido alterada na Amazon Prime Video, os fãs do clássico chiaram imediatamente. A alteração parece simples, mas é bastante significativa, dado o contexto do roteiro e a mensagem que ele deseja passar ao público.
A retirada da inscrição "Born to Kill" ("Nascido para Matar", que é o título da produção em português, mas não em inglês - no original é "Full Metal Jacket"), deixando apenas o símbolo clássico da paz -- desenhado por Gerald Holtom, em 1958 -- chamou a atenção até de um dos astros do filme, o ator Matthew Modine, que interpreta o segundo protagonista da trama dividida em duas partes, o Soldado Joker.
No X (antigo Twitter), o ator - que hoje é mais conhecido pelas novas gerações por 'Stranger Things' -escreveu: "Quem foi que decidiu retirar o 'NASCIDO PARA MATAR'? Não apenas eles alteraram um pedaço da arte icônica de Phillip Castle, mas eles não entenderam nada sobre o porquê isso está lá. O Soldado Joker usa o capacete com 'NASCIDO PARA MATAR' e o símbolo da paz como uma declaração sobre a 'dualidade do homem'".
Nos comentários do post realizado por Modine, as reações variam. Mas boa parte delas aponta "censura". Um dos usuários respondeu: "É muito triste que tanta coisa esteja sendo censurada porque 'alguém vai acabar ofendido'. Às vezes você precisa se sentir ofendido para entender o ponto de alguma coisa".
Outro ainda disse: "Não tem censura mais poderosa que a realizada pelas próprias corporações. Vai bem além do que o governo poderia implementar de maneira bem sucedida". Um terceiro ainda complementou: "Censurar a arte é um sinal de uma sociedade em declínio".
A mudança no pôster acontece somente quando se está na página do filme, onde há as opções para comprar, alugar, etc.
Nas listas de pesquisa ou nas listas por gênero, a inscrição "Nascido para Matar" continua na arte.
Ainda na mesma rede social, há aqueles que discordam da acusação de censura. Nos comentários do assunto, alguns usuários se pronunciaram com possíveis razões para que a Amazon tenha decidido retirar o dizer da arte oficial, e nenhuma delas tem a ver com uma ofensa hipotética ao público.
"Mais uma vez, isso não é censura. Muitas plataformas têm regras contra texto no fundo gráfico principal. Está lá para evitar que os estúdios preencham esse espaço com citações de críticos de cinema, na maior parte do tempo".
Outro ainda complementou, em resposta a Modine: "Matthew, alguém postou outro dia aqui que tem a ver com a proibição de texto na foto da página principal. Porque se eles permitirem, o pessoal do marketing vai lotar de reviews de críticos e notas em estrelas por todo o espaço. A miniatura ainda contém a frase, é só o banner que não tem mesmo".
Um terceiro comentário foi ainda mais enfático: "A alteração não é um tipo de declaração. É só uma escolha de design para que a imagem não concorra com o texto abaixo".
A Amazon, quando contatada pela imprensa internacional, não declarou nada sobre o assunto.
'Nascido para Matar' é um retrato cáustico da Guerra do Vietnã, ocorrida entre os anos de 1955 e 1975. O filme de Stanley Kubrick é comumente conhecido por aparentar ser "dividido em duas partes".
Na primeira, acompanhamos um grupo de soldados em um campo de treinamento em uma base militar nos Estados Unidos. Liderados pelo assustador Sargento Hartman (R. Lee Ermey), o grupo de soldados em treinamento precisa lidar com todo tipo de abuso.
O foco fica no Soldado Pyle, interpretado brilhantemente por Vincent D'Onofrio.
Após o traumatizante fim da primeira parte, partimos para a próxima, quando o único amigo de Pyle toma o posto de protagonista, o Soldado Joker, vivido por Modine.
O personagem é desenvolvido como um homem que sintetiza as contradições da guerra: ainda que seja um soldado norte-americano, mata alguns vietnamitas, "salva" (entre muitas aspas) outros e o filme permanece nessa linha, que critica até mesmo seu próprio protagonista.
Durante um dos trechos do filme, o próprio Joker explica a um superior os motivos por que seu capacete de combate possui os adesivos "Nascido para Matar" e o símbolo da paz um ao lado do outro, se contradizendo. "
A dualidade do homem, senhor. A coisa jungiana, senhor" é o que o soldado responde, em seguida afirmando estar do lado dos norte-americanos e amar seu país de origem.
A cena icônica em que o grupo de soldados canta a canção do Mickey Mouse enquanto os arredores pegam fogo, criando um contraste de arrepiar qualquer espectador, finaliza a produção de Kubrick e coloca um ponto de interrogação na cabeça de quem assiste.
O roteiro coloca em xeque o paradoxo da militarização e ainda pontua a desumanização dos soldados enviados para matarem vietnamitas aos montes, em nome do imperialismo americano no contexto da Guerra Fria.
'Nascido para Matar' virou símbolo dos filmes de guerra e uma referência óbvia dentro da cultura pop. Apesar de não ter recebido muitos prêmios (como aconteceu com frequência na carreira de Kubrick), a produção de 1987 foi ganhando mais respeito com o passar do tempo e é hoje um clássico.
Assista ao trailer de 'Nascido para Matar', filme de 1987, dirigido por Stanley Kubrick.
*Com edição de Luís Alberto Nogueira