• Débora Diniz
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Código de ética proíbe médicos de denunciar mulheres por aborto (Foto: Thinkstock)

Código de ética proíbe médicos de denunciar mulheres por aborto (Foto: Thinkstock)

O Código de Ética Médica não deixa rastro de dúvida. O capítulo se chama “Sigilo Profissional” e começa com um comando: “É vedado ao médico. Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude de exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Parágrafo único: Permanece essa proibição: ... c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal”.

Como ler o artigo 73 no mundo real das mulheres? Simples, nenhum médico pode denunciar uma mulher à polícia por ter feito aborto. Uma mulher que chegue a um hospital abortando ou após um aborto não confessa um crime. Ela conta sua história de saúde a um médico. Violá-la é que é uma grave infração ética. Não há confissão, repito, mas uma informação sigilosa que nenhum médico pode compartilhar. Não conheço nenhuma história de mulher que tenha autorizado médico a convocar a polícia e algemá-la ainda no hospital por ter feito um aborto.

Com que razão, então, os médicos da Santa Casa de Araçatuba, em São Paulo, denunciaram uma mulher de 25 anos por um aborto? Nenhuma, foi moralismo ou arbitrariedade. A polícia coletou seu depoimento ainda no hospital. Os médicos violaram o Código de Ética Médica e correm, agora, o risco de serem investigados. Médicos que deveriam impedir a entrada da polícia na intimidade de seus pacientes são, exatamente, os que a convocam à cena de violação.

Há mais no Código de Ética Médica que deve chamar a atenção desses médicos. Na seção de “Princípios Fundamentais”, ou seja, a abertura do documento onde estão listados o valores que devem reger a profissão, se lê: “O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei”.

Não há exceção que obrigue médicos a denunciar mulheres que fizerem aborto. Além do risco imediato de violação da intimidade de cada mulher, com sua indevida exposição a processo penal, o médico que denuncia uma mulher põe a estabilidade da relação médico-paciente em risco. Por que os pacientes irão confiar nos médicos para contar sobre suas intimidades, quaisquer que sejam elas? É preciso a garantia do sigilo e da confidencialidade para a medicina se mantenha como uma ciência e prática de cuidado. É tão simples quanto entender o artigo 73: médico não é polícia, é cuidador.

Débora Diniz é antropóloga, professora da UNB e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética. Em 2017, ganhou o prêmio Jabuti pelo livro "Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global". Como documentarista, seus filmes já ganharam mais de 50 prêmios. Sua  área de interesse são os direitos das mulheres.