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Billy Porter no Met Gala 2019

Billy Porter no Met Gala 2019 "Celebrating Camp" (Foto: Divulgação/Met Photo by Dimitrios Kambouris/Getty Images for The Met Museum/Vogue)

Durante anos, o tapete vermelho que se estende até as portas do Dolby Theatre, palco da cerimônia do Oscar, oferece um espetáculo por si só. De praxe, os artistas - quase que sempre mulheres - que passam por ali são perguntados sobre o que estão vestindo.

Em 2021, ao contrário de outras premiações, a cerimônia do Oscar acontecerá presencialmente em três cidades: Los Angeles, Paris e Londres.  Após um ano de hiato de eventos presenciais, o tapete vermelho voltará a ser uma realidade, mesmo que atípica, neste ano. Nos EUA, no lugar do Dolby Theatre, o evento acontecerá no Union Station.

Apesar do grande desfile de grifes vestidas pelas celebridades, os únicos trajes que realmente chamavam a atenção eram aqueles vestidos pelas atrizes. Com frequência, os atores eram ofuscados pela falta de brilho e diversidade. Como tradição, o traje dos astros – smokings pretos, em via de regra –, reforçava um estereótipo de masculinidade, variando somente em cor,  caimento e detalhes.

Mas recentemente, o cenário tem ganhado alguns contrastes: diversos artistas, cada vez mais abertos sobre suas identidades, têm escolhido uma outra apresentação para as grandes premiações do cinema. Em 2019, o ator Billy Porter, primeiro ator assumidamente gay a ser consagrado com um Emmy por sua performance na série Pose, quebrou o rígido dress code do evento ao usar um smoking que se estendia em um volumoso vestido preto aveludado, assinado pelo designer norte-americano Christian Siriano.

Billy Porter usa vestido do designer Christian Siriano, na festa do Oscar da Vanity Fair 2019 (Foto: John Shearer/Getty Images)

Billy Porter usa vestido do designer Christian Siriano, na festa do Oscar da Vanity Fair 2019 (Foto: John Shearer/Getty Images)

Sobre a criação do vestido, Siriano, que em 2018 foi considerado uma das 100 pessoas mais influentes pela revista Time, explicou ao site NPR que de início tratava-se de uma ideia despretensiosa. “Nós meio que estávamos nos divertindo, e eu acho que ele [Porter] se sentiu ótimo. Eu me senti bem e não levamos isso tão a sério até vermos o que estava acontecendo. E agora eu penso um pouco mais sobre isso e penso que talvez isso fosse algo que precisava acontecer e nós nem percebemos o quanto [precisava] até realmente acontecer”, afirmou.

A parceria entre Porter e Siriano não se restringiu aos tapetes do Emmy. Também em 2019, Porter vestiu um longo vestido de tule com a bandeira de arco-íris, criado pelo jovem designer, com brincos florais e saltos de plataforma, na World Pride em Nova York.

Billy Porter participa do WorldPride NYC 2019, em vestido de Christian Siriano (Foto: Roy Rochlin/Getty Images)

Billy Porter participa do WorldPride NYC 2019, em vestido de Christian Siriano (Foto: Roy Rochlin/Getty Images)

No Oscar de 2020 Porter escolheu um look do designer inglês Giles Deacon: uma longa saia estampada e um colete coberto de penas de ouro. Muito mais do que uma escolha estética, a decisão de Porter simbolizou um ponto de virada em uma tradicional Hollywood, que por décadas silenciou artistas LGBTQIA+. Em 2019, Porter declarou à revista Vogue norte-americana: “Quando você é negro e é gay, a masculinidade está [sempre] em questão. Lidei com muita homofobia em relação às minhas escolhas de roupas. Quando eu tive meu primeiro contrato de trabalho na A&M Records, fiquei em silêncio por um longo tempo.”

Billy Porter antes da cerimônia do Oscar, em 2020, usando look do designer Giles Deacon (Foto: Santiago Felipe/Getty Images for ABA)

Billy Porter antes da cerimônia do Oscar, em 2020, usando look do designer Giles Deacon (Foto: Santiago Felipe/Getty Images for ABA)

O silêncio sobre o qual Porter se refere foi um fardo infligido a outras celebridades em Hollywood em décadas passadas, quando assumir sua identidade, incluindo não apenas orientação sexual como também de gênero, era tabu. 

O assunto inclusive já foi tema da obra “The prime time closet: a history of gays and lesbians on TV”, do professor de estudos filmográficos, da Ithaca College, Stephen Tropiano. Segundo a obra, arranjos ficaram conhecidos como “lavender marriage”, um equivalente aos “casamentos por conveniência”, em que as partes se uniam em casamentos heterossexuais como estratégia de esconder a orientação sexual de um ou de ambos. Segundo Tropiano, os acordos eram aceitos por artistas como forma de preservar suas carreiras. Símbolo máximo de uma Hollywood que discriminava seus membros, esses arranjos funcionavam como acordos econômicos, já que os astros poderiam perder seus contratos se descumprissem as normas.

Para a Marie Claire, ele explicou como a cultura de seleção de elenco funcionaria em Hollywood. “As decisões de elenco fazem parte da economia de Hollywood – e é provável que os produtores considerem se isso vai ou não prejudicar ou ajudar nas bilheterias quando escalarem [uma pessoa LGBTQIA+] para um papel heterossexual. Embora existam muitos atores assumidos, não há grandes estrelas de bilheteria que tenham saído do armário”, opina.

O ator Rock Hudson (1925 -1985) com a atriz francesa Simone Signoret (1921 - 1985) na cerimônia do Oscar, em 1960  (Foto: Jack Albin/Pictorial Parade/Hulton Archive/Getty Images)

O ator Rock Hudson (1925 -1985) com a atriz francesa Simone Signoret (1921 - 1985) na cerimônia do Oscar, em 1960 (Foto: Jack Albin/Pictorial Parade/Hulton Archive/Getty Images)

Atualmente, outras celebridades, do cinema, da moda e da música têm optado caminhar como Porter, em trajes que manifestem um não conformismo com as regras veladas. Evidência de que o assunto faz parte do ar dos tempos, não à toa, o tema da exposição anual de moda de MET - e do famosos Met Gala - foi, justamente, o camp, no qual diversas celebridades, Porter incluído,  transitaram pelos limites de gênero. 

Foi o caso de Ezra Miller, que surgiu com um híbrido de smoking e vestido de gala e uma estrutura de corset de cristais sobre o look. Tudo arrematado por um maquiagem trompe l'oeil e segurando uma máscara de si mesmo - mais simbólico do que isso, impossível. Antes disso, o ator já vinha se destacando nos tapetes vermelhos ao fazer escolhas não tão convencionais. Estrela da série de filmes “Animais Fantásticos”, Miller protagonizou um ensaio vestido de coelho para a revista Playboy, voltada ao público masculino e que por anos objetificou mulheres.

Jonathan Van Ness no Emmy Awards 2019 em vestido de Christian Siriano (Foto: JC Olivera/WireImage)

Jonathan Van Ness no Emmy Awards 2019 em vestido de Christian Siriano (Foto: JC Olivera/WireImage)

Ezra Miller usa traje da Burberry no Met Gala 2019 (Foto: Jamie McCarthy/Getty Images)

Ezra Miller usa traje da Burberry no Met Gala 2019 (Foto: Jamie McCarthy/Getty Images)

No mesmo comprimento de onda está Harry Styles, que, também no tapete vermelho do MET, surgiu com look Gucci e brinco de pérola, iniciando uma jornada estética desafiadora de normas de gênero que o definiu como ícone de estilo. 

A atriz Lena Waithe, primeira atriz negra a vencer o Emmy de melhor roteiro por episódio da série da Netflix “Master of none”, também se destaca por seus looks. Em seu discurso, Waithe, lésbica assumida, celebrou a comunidade LGBTQIA+: “As coisas que nos tornam diferentes - esses são nossos superpoderes”.

Lena Waithe no 76º Globo de Ouro, no Beverly Hilton Hotel, em 2019 (Foto: Steve Granitz/WireImage)

Lena Waithe no 76º Globo de Ouro, no Beverly Hilton Hotel, em 2019 (Foto: Steve Granitz/WireImage)

Lena Waithe no evento Heavenly Bodies: Fashion & The Catholic Imagination Costume Institute Gala, no MET, em 2018 (Foto: Dia Dipasupil/WireImage)

Lena Waithe no evento Heavenly Bodies: Fashion & The Catholic Imagination Costume Institute Gala, no MET, em 2018 (Foto: Dia Dipasupil/WireImage)

Outro baluarte na transgressão desses códigos é o hair stylist e apresentadore Jonathan Van Ness, da série “Queer eye” da Netflix . Em 2019, Ness assumiu ser uma pessoa não-binária, a primeira a estampar a capa da revista Cosmopolitan britânica. Em 2018, de barba cheia, Ness usou um longo Maison Margiela preto de lantejoulas com fenda alta, na premiação do Emmy. No ano seguinte, trajou um mini vestido preto com longa cauda de laço azul turquesa, também do designer Christian Siriano.

Harry Styles participa do Met Gala 2019, em traje de Alessandro Michele, da Gucci (Foto: Dimitrios Kambouris/Getty Images for The Met Museum/Vogue)

Harry Styles participa do Met Gala 2019, em traje de Alessandro Michele, da Gucci (Foto: Dimitrios Kambouris/Getty Images for The Met Museum/Vogue)

À convite da Marie Claire, o estilista Isaac Silva, que já vestiu nomes como a cantora Elza Soares e Camila Pitanga, e tem sido uma voz potente pelo aumento da diversidade na moda, falou sobre como a escolha de uma peça nesses grandes eventos pode demarcar uma postura ativista, já que uma vestimenta é sempre carregada de simbologia.

“Uma roupa um acessório pode dizer muito sobre uma manifestação política e identitária, como camisetas de protesto, uma cor, um símbolo podem dizer muitas coisas. Temos povos indígenas que em manifestações e protestos usam seus elementos identitários. Ou quando as pessoas se vestem com a bandeira do arco-íris trazendo um apoio para causas LGBTQIA+ ou mesmo quando usamos a cor preta em símbolo de luto”, afirma.  

Um exemplo de como esses símbolos podem estar presentes aconteceu na cerimônia do Oscar em 2018. Em gesto aos movimentos #MeToo e Time's Up, nascidos após uma série de denúncias de abusos e assédios sexuais em Hollywood, muitas atrizes escolheram se vestir de preto.

Emma Watson usou vestido preto da Ralph Lauren, na festa do Oscar da Vanity Fair, em 2018  (Foto: John Shearer/Getty Images)

Emma Watson usou vestido preto da Ralph Lauren, na festa do Oscar da Vanity Fair, em 2018 (Foto: John Shearer/Getty Images)

Zoe Kravitz usou um vestido Yves Saint Laurent preto de veludo, na 75ª cerimônia do Globo de Ouro, em 2018 (Foto: Frederick M. Brown/Getty Images)

Zoe Kravitz usou um vestido Yves Saint Laurent preto de veludo, na 75ª cerimônia do Globo de Ouro, em 2018 (Foto: Frederick M. Brown/Getty Images)

Dentro desta discussão, Silva celebrou a decisão desses artistas e ainda citou uma frase da cantora Nina Simone: “O dever de um artista, no que me diz respeito, é refletir os tempos. Neste tempo crucial em nossas vidas, quando tudo é tão desesperador, quando todo dia é uma questão de sobrevivência, eu acho que é impossível você não se envolver.”

E, agora, dias que antecedem o Oscar, resta a curiosidade sobre o que esses artistas irão tirar do armário para o grande evento.