• Carolina Ingizza
  • Em colaboração para Marie Claire
Atualizado em
María Elisa Quinteros, a nova presidente da Constituinte chilena  (Foto: Divulgação/ Arquivo Pessoal)

María Elisa Quinteros, a nova presidente da Constituinte chilena (Foto: Divulgação/ Arquivo Pessoal)

Feminista, vegetariana e independente: esses são alguns dos adjetivos que descrevem María Elisa Quinteros, a chilena de 40 anos que ganhou fama internacional ao ser escolhida para comandar a Assembleia Constituinte do seu país em janeiro deste ano. Sem filiação partidária, a dentista de formação e epidemiologista ambiental desbancou os nomes favoritos na disputa pelo cargo por ser vista pelos colegas como uma das poucas pessoas capazes de fazer os grupos opostos dialogarem.

"Acredito que a escolha pelo meu nome tenha a ver com um trabalho silencioso e sistemático que meu coletivo, os Movimentos Sociais Constituintes, vem desenvolvendo desde o começo da Convenção Constituinte. Isso em conjunto com algumas características pessoais: sou uma pessoa que gosta de escutar as diferentes posições antes de tomar uma decisão. Mas o mais bonito, para mim, foi que meu nome foi proposto não pelo meu grupo, mas como uma candidatura de consenso proposta pelos outros membros da Constituinte", diz María Elisa em entrevista à Marie Claire Brasil.

Sua habilidade de conciliação vai ser útil nos próximos meses, já que a tarefa que María tem pela frente não é simples: ela precisa garantir que os 155 membros da convenção constituinte cheguem a um consenso e apresentem até o dia 4 de julho de 2022 uma alternativa à Carta Constitucional do Chile, elaborada em 1980 durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), que torturou mais de 40.000 pessoas e deixou 3.000 mortos durante os 17 anos do regime.

"A Constituição atual foi promulgada em um período muito duro para o Chile, durante a ditadura, e foi influenciada por ideias do modelo econômico neoliberal. Hoje, o Chile tem riquezas, mas é também desigual: os ricos são muito ricos e o resto da população sobrevive em um país caríssimo. Tudo isso gerou um descontentamento da população", diz María.

"O Chile tem riquezas, mas é também desigual: os ricos são muito ricos e o resto da população sobrevive em um país caríssimo"

María Elisa Quinteros


Essa insatisfação popular foi propulsora dos protestos que tomaram as ruas do país em 2019. No começo, a população se posicionou contra o aumento do preço do transporte público na capital Santiago, mas logo o movimento foi absorvendo mais causas, como o combate à desigualdade e ao machismo, e se espalhando pelo país.

Mesmo com a forte repressão do então presidente Sebastián Piñera (sem partido), os protestos conseguiram impulsionar a realização de um plebiscito em outubro de 2020, no qual 78% dos cidadãos votaram pela substituição da Constituição escrita no período ditatorial. Na votação, o Chile ainda garantiu um feito inédito: o grupo responsável pela elaboração do novo texto deveria ter o mesmo número de homens e de mulheres. Dessa forma, o Chile terá a primeira Constituinte paritária do mundo.

O espaço concedido às mulheres também se estendeu à liderança: María é a segunda presidente da Convenção Constitucional do Chile. Ela ocupa o cargo deixado por Elisa Loncón, professora e militante da comunidade indígena mapuche, que em julho do ano passado foi escolhida para liderar os seis primeiros meses de atividades do grupo.

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"Elisa e Jaime Bassa, seu vice, tiveram um trabalho importante de criar a infraestrutura para que a Constituinte pudesse acontecer. Não posso desmerecer o tremendo esforço que eles fizeram para nos dar uma base estável para que a gente possa trabalhar para tentar resolver os problemas econômicos e as tensões políticas", diz a nova presidente.

Além de garantir a entrega do texto até o começo de julho, María estabeleceu duas prioridades para seu mandato. A primeira é melhorar a comunicação da Constituinte com o público, informando com mais frequência o que os participantes estão discutindo e fazendo no dia a dia, para que o povo se sinta parte do processo que ajudou a criar.

Outra tarefa no topo da lista da presidente é garantir a consulta nacional aos povos indígenas. Desde o final de janeiro, os grupos originários do país estão sendo ouvidos para que possam dizer o que consideram importante que esteja na nova Constituição. Além da consulta, há 17 representantes indígenas na Constituinte. “Consideramos que temos até março para concluir a consulta e até julho para entregar o texto, o nosso maior desafio pela frente é o tempo”, diz María.

Nascida em 1981 na pequena cidade de Talca, ao Sul de Santiago, María Elisa viveu sua infância nos últimos anos da ditadura de Pinochet. Com pai ausente, ela e seu irmão mais novo foram criados pela mãe, uma professora de filosofia, com ajuda da família materna. "Foi uma infância tranquila, brincando no bairro com meus primos. Minha família não tinha nenhum vínculo político, nem na ditadura e nem na democracia. Eu sou a primeira que começou a jogar neste espaço", diz a acadêmica.

Dos tempos de didatura, María se lembra pouco. Ela diz que os adultos tinham dificuldades para conseguir empregos e cita como memória mais marcante as saudações que as freiras do colégio insistiam que as meninas fizessem a uma imagem do ditador. Mas foi graças à escola religiosa que a chilena começou a fazer trabalhos voluntários, hábito que a manteve conectada com as necessidades da comunidade – chegou a trabalhar por oito anos na administração pública da sua região.

"Minha família não tinha nenhum vínculo político, nem na ditadura e nem na democracia. Eu sou a primeira que começou a jogar neste espaço"

María Elisa Quinteros


Mas foi só depois de terminar o doutorado, no qual estudou os efeitos da poluição aérea na saúde de gestantes e recém-nascidos, que ela se associou ao coletivo Movimentos Sociais Constituintes. “Aqui há muito descontentamento com a classe política, então apareceram muitos independentes, como eu, que foram eleitos com o objetivo de levar as demandas sociais para esse espaço”, explica.

Se por um lado a sua independência a ajudou a navegar os espaços como uma voz de razão capaz de unir lados opostos, a sua inexperiência com o mundo da política causou sustos no começo da jornada. “Durante minha candidatura para a Constituinte, muitos homens questionavam minhas palavras porque pensavam que eu estava apenas repetindo um discurso aprendido com alguém. Aquilo me surpreendeu, não estou habituada a esse tipo de reação violenta, venho da academia, que é um mundo mais respeitoso”.

María defende que as mulheres continuem a entrar no jogo político e brigar por mais espaço, mas reconhece e lamenta que essa reação negativa de parte da sociedade ainda iniba algumas. "Eu mesma me retiro de algumas discussões em redes sociais para me preservar", diz a presidente.

Solteira e sem filhos, María disse em seu discurso de posse na assembleia que dedica seu trabalho a sua sobrinha e a seu sobrinho, assim como “para todas as gerações que virão para construir uma sociedade eticamente sustentável” para o Chile.

"Homens questionavam minhas palavras porque pensavam que eu estava apenas repetindo um discurso aprendido com alguém. (...) não estou habituada a esse tipo de reação violenta, venho da academia, que é um mundo mais respeitoso"

María Elisa Quinteros

A pesquisadora é uma das defensoras do que se convencionou chamar no Chile de EcoConstituição, um projeto que busca o bem-estar social e melhores integrações entre a humanidade e a natureza. "Reconhecemos a importância de estabelecer uma relação de harmonia com a natureza, bem como a importância de direitos sociais, como aposentadoria, saúde e educação. Também está no centro do projeto a defesa dos patrimônios culturais e do feminismo. Acima de tudo, nosso projeto acredita na ciência como um motor de desenvolvimento social", diz María.

Quando questionada sobre o que pretende fazer depois do fim da Constituinte, María não pensa duas vezes ao afirmar que precisa de férias. Ela dedicou sua vida nos últimos três anos ao processo de elaboração da nova Constituição e, por mais que esteja contente com o resultado, não vê a hora de voltar para seu trabalho acadêmico na Universidade de Talca. "Estou feliz de estar contribuindo neste espaço, mas não tenho sonhos de seguir uma carreira política. Tenho saudade dos meus estudantes, colegas e da vida na universidade. Quero abrir espaço para as novas gerações.”