• Depoimento a Kellen Rodrigues
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Camila Cavalcante (Foto: Divulgação)

Camila Cavalcante (Foto: Divulgação)

"Das melhores lembranças que tenho da infância no interior de São Paulo está a de minha mãe em sua máquina de costura fazendo roupas para nossa família. Comigo ela brincava de boneca mesmo – tudo que via em revistas e achava bonitinho costurava para mim. Lembro até hoje de um vestido com gola marinheiro, parecia até uma fantasia, eu achava o máximo. Com ela, fui me interessando cada vez mais por cores e estampas. Aos 8 anos, já opinava sobre combinações e montava looks.

Além da moda, sempre tivemos algo muito forte com a beleza lá em casa. Minha mãe nunca abriu um salão nem trabalhou oficialmente como cabeleireira, mas fez um curso e cortava o cabelo das amigas. Também tomei gosto. Aos 11 anos, era eu quem aparava suas madeixas. As pessoas ficavam admiradas, mas nem eu nem ela tínhamos medo da dar errado. Pelo contrário, sempre gostávamos do resultado. Nos fins de semana, tínhamos um ritual: tendo compromisso ou não, era dia de nos arrumarmos. Fazíamos as unhas, cuidávamos dos cabelos, vestíamos nossas melhores roupas. Já na adolescência, minhas amigas vinham todas se emperiquitar na minha casa para a gente sair. Era uma festa.

Sempre gostei desse universo. E parecia um caminho natural para mim. Mas, naquela época, não se falava tanto em empreendedorismo quanto hoje. Todo mundo queria que o filho estudasse e tivesse um emprego com estabilidade, carteira assinada. Apesar do meu fascínio, trabalhar com beleza parecia muito instável e eu achava a moda difícil para quem é de uma cidade pequena, sem bons contatos. Então, quando estava na fase de escolher uma profissão, acabei optando por licenciatura em química, já que havia muitas empresas na região onde morávamos, em Santa Bárbara d’Oeste. Parecia mais fácil conseguir emprego na área.

Nessa época, conheci o Diogo. É engraçado, porque morávamos no mesmo bairro desde crianças e só nos esbarramos anos depois. Ele tinha 16 e jogava futebol, eu tinha 18. Tivemos um namorico breve, meu pai não aprovava a relação. Embora gostasse dele, resolvi terminar o namoro e focar nos estudos. Diogo ficou muito chateado com isso. Mas não tinha jeito. Eu trabalhava em uma fábrica de bolsas e estudava em Limeira, mal ficava na minha cidade.

Com isso, Diogo e eu passamos dois anos sem nos vermos. Até que meu pai adoeceu. Passei a ficar mais tempo no meu bairro, pois fazia muitas visitas ao hospital. E voltei a encontrar meu ex. Ele me tratava bem, tínhamos assunto que não acabava mais. Percebi o quanto ele era um cara legal e que valia a pena dar uma segunda chance para nós. Só tinha um problema: ele não dava qualquer indício de querer reatar o namoro. Tomei coragem e resolvi dar o primeiro passo. Mandei uma cesta de café da manhã com uma cartinha pedindo desculpas, falando que eu gostava muito dele, que ele era importante para mim. Só que ele tinha viajado para um campeonato e eu não sabia. Fiquei 15 dias sem resposta, arrasada, pensando ter sido ignorada. Até que ele voltou, encontrou o presente e me ligou. Meu pai morreu naquele mesmo ano, em 2000, em decorrência de várias doenças crônicas. Por sorte, tinha Diogo ao meu lado. Meu namorado foi essencial nesse período de dor.

Um dia, fiquei doente e descobri que estava com febre reumática, uma doença inflamatória. Ela começa com uma bactéria de garganta e traz várias complicações. Por causa da infecção, tinha muita febre e inchaço. O tratamento é bem chatinho, precisei tomar uma série de injeções. Nesse período, estava acumulando funções no trabalho, havia acabado de perder meu pai e estava concluindo a faculdade. Era muita coisa ao mesmo tempo. Resolvi,  então, deixar o emprego para cuidar um pouco de mim.

Pouco depois, as oportunidades para o Diogo foram surgindo e ele foi contratado para jogar em Minas Gerais. Se sentindo sozinho por lá, me deu um ultimato: não namoraríamos a distância. Quando já estava melhor de saúde, fui viver em Belo Horizonte com ele. Nos casamos em dezembro de 2003, em uma cerimônia no civil. Na verdade, por causa da agenda de jogos, foi tudo corrido: ele chegou às 9h da manhã à nossa cidade e nos casamos às 10h no cartório. Não teve festa nem igreja, mas fiz questão de escolher o vestido, claro. Me casei com um vestido rosa com um decote bobo, lindo, e eu mesma fiz minha maquiagem e cabelo.

"Várias noites eu não pregava o olho, tinha crises de choro, pensava que não veria minha filha crescendo"

 


Em Minas, comecei a questionar minha vida profissional. Fiz um curso de cabeleireira, mas sabia que, como mulher de jogador, viveria me mudando e não valia a pena abrir um salão. Ao mesmo tempo, não me via trabalhando em algo que não fosse ligado à beleza e à moda. Moramos em várias cidades do Brasil, até que decidimos aumentar a família. Em setembro de 2005, Júlia nasceu. Foi um momento fantástico, curtimos cada passo dessa nova vida. Dois anos depois, nos mudamos para Portimão, em Portugal.

Lá planejamos montar um espaço de beleza, um centro de estética, algo assim. Eu fazia alguns trabalhos para amigas, mulheres de jogadores, mas ficava muito cansada e inchada se passasse horas em pé. Pensava que eram resquícios da febre reumática de anos antes, não sabia se passaria. Comecei, então, a procurar uma faculdade de moda. Iria, enfim, realizar esse sonho. Só que o inchaço e o cansaço começaram a aumentar e aumentar. Minha vida era muito ativa, a Júlia estava com 3 aninhos, fazíamos passeios, eu amava andar a pé pela cidade com ela. E de repente me vi muito mal, não conseguia nem fazer as atividades domésticas.

No hospital, pensaram se tratar de ansiedade. Fiz vários exames, de rim, de circulação... Mas os médicos não descobriam o que eu tinha. Minha falta de ar estava cada vez mais forte, até para andar em casa sentia fadiga e precisava me sentar. Angustiada, resolvi voltar para o Brasil para uma bateria de exames. Aí veio o diagnóstico: lúpus. Fiquei aterrorizada. Senti muito, muito medo. Só pensava na Júlia tão pequenininha, se algo acontecesse comigo...

O lúpus é uma condição autoimune que ativa nosso organismo e pode desencadear diversos problemas de saúde. No meu caso, atacou o sistema linfático. Descobri um linfedema de membros inferiores, ou seja, acúmulo de líquido linfático que causava o inchaço nos pés e pernas. Algumas pessoas chamam esse problema de elefantíase, era o nome que se dava antigamente. Entrei em uma maratona de exames, um deles bem dolorido, no qual injetam líquido entre os dedos para checar se a linfa consegue distribuí-lo e drená-lo. O meu simplesmente não drenava. Não sabemos, mas é bem provável que meu pai tivesse neurofibromatose, um problema genético.

Em mim, a neurofibromatose se manifestou em forma de nódulos internos que eu precisava retirar. Tive que fazer nove operações no período de três meses. Estava com uma pré-inscrição no curso de design de moda em Lisboa e, de repente, me vi numa avalanche de exames e cirurgias. Foi muito pesado. A incerteza de não saber o que vai acontecer era assustadora. Me sentia em um bombardeio de notícias, cada hora com um diagnóstico novo.

"Já me senti julgada por gostar de me arrumar. Agora, era o que me salvava e me fazia repensar meu lado profissional"

 

Diogo e eu planejávamos ter mais um filho, mas na minha situação engravidar seria muito perigoso. A médica me explicou que eu não perderia o acúmulo de líquidos da gestação. Também não podia tomar anticoncepcional para não estimular o aparecimento de mais nódulos. Descobri também que tinha endometriose em estágio avançado e aderência no intestino, que me causava dores horríveis. Passei por uma cirurgia intestinal e precisei retirar o útero. Ali, aos 29 anos, acabava meu sonho de engravidar novamente.

Várias noites eu não pregava os olhos, tinha crises de choro, pensava que não veria minha filha crescendo. Muitas coisas passam pela cabeça numa hora dessas. Até então eu tentava ser prática e racional, mas confesso que, quando fui para a cirurgia maior, me caíram todas as fichas. Vivi um momento de luto. Luto de mim mesma, do que eu não seria.

Mas eu ainda tinha Júlia, e precisava ser forte. Decidi, então, que ela não me veria com cara de doente. Todos os dias eu me arrumava, me maquiava. Pensava assim: ‘Posso morrer, mas vou morrer linda’. Queria olhar no espelho e gostar do que eu via. Minha filha não entendia o que estava acontecendo, e me arrumar me fazia lembrar que a doença não podia definir quem eu era.

Em outros tempos, já me senti julgada por gostar de me arrumar. Agora, era o que me salvava e me fazia repensar mais uma vez o meu lado profissional. Depois de toda aquela experiência, entendi que poderia causar um impacto grande na vida de outras pessoas. Quanta gente não estaria passando por momentos difíceis também? Cuidar do exterior fortalece o nosso interior, e essa não é uma frase vazia, mas um aprendizado vivido na pele. Foi uma virada de chave para mim. Percebi que poderia ajudar outras mulheres a se gostarem, que meu destino profissional finalmente estava se definindo. De volta a Portugal, estudei e me tornei consultora de imagem. Acredito que meu trabalho também tenha ajudado a melhorar minha imunidade.

Naquela época, a profissão não era tão conhecida como hoje. Em 2013, criei um blog, Estilo a Qualquer Custo, para falar de uma moda acessível. Três anos depois, ele foi considerado um dos seis mais relevantes do nicho no Brasil. Ali percebi que estava indo no caminho certo. Meu trabalho como consultora foi crescendo, eu tinha clientes no Brasil todo, acho que fui pioneira no atendimento online. Me sentia muito útil e realizada. Então, resolvi montar um curso, que depois viria a ser a Escola de Moda Cá Cavalcante. Hoje, ajudo a formar novos consultores de imagem e estilo, além de atender gente interessada em se vestir melhor. Sinto que temos uma missão muito poderosa de mostrar a importância da imagem. Não é bobagem ou futilidade, mas algo necessário, fundamental para a construção da autoestima. Todos os dias temos um encontro com o espelho, é importante nos sentirmos bem.

Ainda moramos em Portugal, meu marido tem uma barbearia e minha filha já está com 16 anos. Meu maior sonho é ver a Júlia virando adulta e sendo quem ela nasceu para ser no mundo. Aos 39 anos, convivo bem com minha doença, entendo meus limites. No fim do ano, Diego e eu vamos nos casar e pretendo comemorar de um jeito especial. No mais, quero ajudar cada vez mais mulheres para que melhorem sua autoestima, gostem do que veem. Sei que isso pode fazer toda a diferença na vida delas, como fez na minha.”

Camila Cavalcante com Diogo e Júlia (Foto: Divulgação)

Camila Cavalcante com Diogo e Júlia (Foto: Divulgação)