• Iza Jakeline Barros em depoimento a Manuela Azenha
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Iza foi condenada injustamente (Foto: Arquivo pessoal)

Iza foi condenada injustamente (Foto: Arquivo pessoal)

"Estava arrumando a casa quando escutei um barulho forte no portão. Meu cachorro latiu e fui olhar. Era um monte de homem encapuzado. Chutaram a porta e se identificaram como policiais do Denarc [Departamento de Narcóticos], dizendo que tinham um mandado de busca e apreensão. Eu deixei entrar, achava que não tinha nada em casa. Eles reviraram tudo e fiquei esperando. Só falei para tomarem cuidado com meus filhos pequenos dentro do quarto. Mesmo assim entraram e pegaram mas crianças pelo braço, mandando elas se levantarem.

Quando bateram no quarto do meu irmão, ele não quis abrir. Disseram que iam derrubar a porta. Quando meu irmão abriu, já saiu com a mão na cabeça dizendo que o que tinha no quarto era dele. Eram oito quilos de maconha embaixo da cama. Fomos detidos eu, meu irmão e minha cunhada.

Sempre estudei e trabalhei muito, então chegava à noite e ficava pouco em casa. Não sabia de nada e não via movimentação nenhuma.

Minha cunhada foi levada para a delegacia, e eu e meu irmão passamos o dia todo sendo torturados. Os policiais perceberam que quanto mais me batiam, mais faziam meu irmão sofrer. Ele dizia o tempo todo que eu não tinha nada a ver, e eles me batiam cada vez mais, mas eu não tinha o que falar porque não sabia de nada.

Fui pega de manhã e só fui para a delegacia umas 19h, toda arrebentada. Tomei até choque. Falei para eles que eu estava grávida de dois meses, pedi pelo amor de Deus. Aí que eles debochavam: 'Dá um choque nela então, para ver se o traficantezinho sai'.

Uma hora, eu achava que tinha morrido. Não suportava mais. Desmaiei duas vezes e acordei com um tiro perto do meu rosto. Não esqueço nem um minuto do que passei naquele dia. Me tiraram de casa pelos cabelos, na frente dos meus filhos, no meio da rua pra todo mundo ver. Apontaram arma para a cabeça do meu filho mais velho, que é autista. Até hoje ele tem medo da polícia. Teve que fazer um tratamento psicológico muito sério. Meus filhos gritavam o tempo todo.

Passei 15 dias vomitando sangue quando cheguei no Presídio Feminino [Prefem], em Nossa Senhora do Socorro, a uns 18 quilômetros de Aracaju. Eu estava toda roxa e perdi meus dentes da frente de tanto soco e paulada. Hoje, uso uma prótese.

Fui acusada de fazer parte de uma quadrilha de tráfico de drogas. No meu processo diz que eles acharam um caderno com contabilidade de tráfico. Eu sou cantora de rap e estava organizando uma festa, as contas eram para isso. No dia da audiência, consegui duas testemunhas do movimento hip hop para provar que o caderno era para a festa. A juíza não acatou a escuta das minhas testemunhas.

A primeira sentença foi de 18 anos, por tráfico, associação e participação em crime organizado. Eu chorava muito e pedia ajuda. Minha advogada conseguiu reverter a acusação de crime organizado e provar que o caderno era para a festa mesmo.

Depois apresentaram uma escuta de uma conversa minha com meu irmão. Eu perguntava a ele: 'Junior, você vai querer o negócio?'. Ele respondia que sim. Então me acusaram de estar levando uma arma de fogo. Porém fui sentenciada por tráfico de drogas. Mas na conversa falávamos sobre um notebook. Eu ia vender o computador velho para meu irmão e comprar um novo para meu filho especial. Era isso que estávamos negociando.

Minha sentença foi de nove anos e dois meses por tráfico e associação ao tráfico. Ré primária, tinha que passar dois anos e quatro meses em regime fechado. Porém passei três anos e um mês porque eles dificultavam a minha saída. Sabiam que se eu saísse ia processar o Estado.

Para minha surpresa, as presas cuidaram de mim quando cheguei na unidade prisional. Deram remédio, conversavam comigo. Fui vendo aquelas mulheres com outros olhos e comecei a lutar pelos nossos direitos. Disseram que eu estava ensinando as meninas a se revoltarem contra a direção. Comecei a ser perseguida por isso.

Aqui em Sergipe só tem uma unidade prisional e sofremos muito mais do que os homens. Nas cadeias femininas só é permitida uma visita dos filhos por mês, por duas horas. No masculino as crianças podem ir toda semana. No feminino não entra espelho, no masculino entra. O sistema prisional não foi feito para receber mulheres. Além disso, a maioria das presas tem depressão por serem abandonadas pelos maridos -- que foi o meu caso também.

Os meus filhos eram pequenos quando fui presa, o mais velho tinha 8 anos. Eles foram morar com o pai e eu fiquei sem vê-los por muito tempo, por até 6 meses. Decidi que era melhor eles não irem me ver, por causa do meu filho mais velho. Toda vez que ele vinha me visitar tinha que passar pela revista vexatória. Depois quando chegava em casa, ele replicava nos irmãos, na avó e no pai tudo o que os agentes prisionais tinham feito. Mandava todo mundo colocar a mão na cabeça, tirar a roupa, revistar. Ele ficava muito assustado quando me via na cadeia, me perguntava onde estavam as correntes, os cadeados. Então decidi que não era mais para ele vir. E pedi a uma assistente social para que eu pudesse recebê-los numa sala separada, sem passar pela revista. Ela deixava, mas demorava muito para virem e só ficavam comigo por cinco minutos.

O meu maior medo lá dentro foi na maternidade. Por conta das agressões que eu sofri no momento da prisão, achei que fossem me matar. Uma coisa que me marcou muito nessa época foi que, na rua, se você tem vontade de comer algo, você come. Eu morria de vontade de comer melancia, sentia o gosto na boca, mas não pude comer. Nunca gostei de ser dona de casa, mas lá dentro sentia uma saudade de fazer uma faxina em casa.

Quando entrei em trabalho de parto, fui para a enfermaria. Uma guarda percebeu a urgência e me enfiou no carro dela para me levar ao hospital. Ela ainda virou para trás e me perguntou: 'Não vai correr, né?'. Não conseguia nem andar, quanto mais correr!

Chegando lá, o médico era militar e me colocou numa sala separada com um guarda fortemente armado. Me mandou sentar no chão mesmo e foi assim, algemada, que dei à luz. Ele só me mandou fazer força e botar pra fora. Não pude pegar meu bebê nos braços, ele chorou muito quando nasceu. Os guardas olhando pra mim e eu sem poder fazer nada. A enfermeira pegou meu filho e eu só pensava: 'Por que eles estão fazendo isso comigo?'.

Horas depois estava de volta ao presídio com meu filho nos braços. Quatro meses depois, entreguei meu filho à avó dele porque as condições lá eram muito ruins. Eu estava magra demais e não tinha leite. Então dava a sopa da noite para minha colega de cela, também lactante, para ela ter mais leite e conseguir amamentar o filho dela e o meu. Depois cheguei a dar a sopa do jantar para o meu bebê. Doía demais.

Quando a avó foi pegar meu filho, foi o pior dia da minha vida. Quando você entrega para a família, muitas vezes o juiz automaticamente passa a guarda para aquela pessoa. Foi o que aconteceu comigo. Eu só descobri isso uma semana depois. Entrei em depressão. Foi quando a direção me chamou e fui trabalhar na biblioteca da unidade. Lá percebi que a maioria das presas não sabia ler nem escrever. Eu e outra interna fomos as primeiras professoras da unidade.

Na biblioteca tinha o Código Penal, li três vezes. Percebi que estava tudo errado aquilo que estávamos passando. Comecei a conscientizar as meninas e a estudar os processos para ajudar quem não tinha advogado. Depois me tornei mensageira da unidade, quem organiza o pavilhão e resolve os problemas maiores.

Em 2012 eu escrevi um livro. Lá dentro mesmo. Mostrei para a direção, eles se interessaram em lançar o livro. Mas decidi fazer isso aqui fora. Juntamos outras mulheres e contamos as nossas vivências. A maioria está presa por causa de homem: marido, irmão, pai.

Eu não tinha um bom advogado então acabei ficando presa um ano a mais do que precisaria. Em 2013, recebi minha liberdade. Pensei: 'Ufa, que bom'. Mas a liberdade se torna um problema na nossa vida. Voltamos à sociedade, mas a sociedade não contribui para a ressocialização. Quem vai dar emprego para uma ex-presidiária?

Fui a uma associação que ajudava egressos e oferecia uns cursos. Diziam que era curso para homem, mas o que seria um curso para homem? Tinha de eletricista e pedreiro. Eu escolhi fazer o curso de pedreiro. Eram 32 homens e só eu de mulher. Me especializei em colocar azulejo.

Fiz também um curso de cabeleireira, e comecei a trabalhar em salão. Além disso, tinha que cuidar dos meus filhos, menos daquele que eu perdi a guarda. Até hoje o juiz não deixou ele voltar pra mim.  Quando saí da cadeia, ele já estava com 3 anos e nem me conhecia mais. Isso acabou comigo, fiquei com início de depressão. Eu precisava dar a volta por cima. Foi quando comecei a estudar para o vestibular e a ser eu mesma na vida. Em 2016 fiz o Enem para Direito e não passei, mas depois consegui bolsa do Prouni e fui estudar.

Cheguei a pedir uma revisão do meu processo, que nunca saiu. Eu teria que responder ao meu processo até 2019, mas em 2017, ao invés de sair o resultado da revisão, resolveram me dar um indulto criminal. Achei que isso fosse limpar meu nome, mas não. Eu passei num concurso público para ser agente prisional. Muita gente me pergunta por que eu quero voltar a uma unidade prisional depois de tudo que passei. Quero muito esse trabalho para tentar minimizar os impactos do sistema carcerário. Mas nunca pude assumir porque só posso prestar um concurso público oito anos depois do fim do meu processo. Eu chorava tanto. Estudei tanto para quê? Isso tudo me fez enxergar que não existe ressocialização.

Nesse meio tempo tive que trancar a faculdade duas vezes porque é muito difícil pagar as contas, ser mãe solo e ainda estudar. Por mais que lutasse, tivesse bolsa, tem que comprar livros, a passagem de ônibus, e outros gastos. Dava comida para os meus filhos ou continuava na faculdade. Acabei perdendo a bolsa por causa de falta. Me desesperei. Tentei o Enem outras duas vezes e não consegui. Na terceira vez consegui outra bolsa, de 50%. Mas o curso de Direito é muito caro. Comecei a fazer biscoito amanteigado para vender. Com a pandemia, tudo ficou mais difícil e tive que parar mais uma vez.

Já tinha desistido da faculdade quando a professora Aline [Passos], parceira na Frente Pelo Desencarceramento de Sergipe, me perguntou por que eu tinha parado de estudar. Ela então fez uma vaquinha na internet, em julho, para garantir os custos dos últimos dois anos de faculdade que me faltam. Além das doações que conseguimos, uma pessoa se prontificou a pagar meus estudos até o final. Não acreditei quando a Aline me contou. Com o dinheiro arrecadado, vou montar uma fábrica de roupas para egressas trabalharem, já que não somos incluídas no mercado formal.

Há seis anos montei um projeto chamado Mulheres Arteiras Sergipe, hoje constituído por 62 egressas. Nos encontramos uma vez por mês, e a gente se escuta, se acolhe. Consegui alguns cursos para essas meninas, mas muitas não podiam fazer por falta de estudo. Aí algumas se matricularam no EJA, no Enem, uma está na universidade com 100% de bolsa. É aquilo: a luta só morre quando não tiver quem morra por ela.

Não consigo estudar para a faculdade como gostaria. Quando chego em casa, umas 23h, vou ver meus filhos, fazer almoço pro dia seguinte, o dever de casa deles. Quando eles dormem eu começo a revisar o que eu estudei no dia. Vou dormir umas 3h da manhã para começar a trabalhar de novo às 8h, como cabeleireira e vendendo biscoitos.

Dia desses me perguntaram qual era o meu sonho. É conseguir o meu diploma. Seria o maior tapa que eu poderia dar na cara da sociedade. Sou capaz, apesar de tudo. Meus filhos torcem tanto por mim. Eu olho para minha filha e dá até vontade de chorar. O que ela faz por mim eu é que deveria fazer por ela. Se eu preciso estudar, ela faz o jantar, cuida dos irmãos. Abdica de muito para me ajudar. E ela só tem 15 anos. Era pra eu fazer isso por ela. Meus filhos são tudo na minha vida. Já faltou coisa para mim, mas pra eles nunca.

Sonho com o dia que levantar aquele canudo. E sei que vou conseguir."