• Depoimento a Kizzy Bortolo
  • Colaboração para Marie Claire
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Gabrielle Luiza Ramos (Foto: Arquivo Pessoal)

Gabrielle Luiza Ramos (Foto: Arquivo Pessoal)

“Nasci em outubro de 1999, em Belo Horizonte. Minutos depois do meu nascimento, minha mãe morreu, ainda no parto. Meu pai cuidou de mim e do meu irmão, que é quatro anos mais velho, com a ajuda dos meus avós paternos. Quando eu tinha 9 anos ele se casou novamente. 

Desde muito pequena tive problemas de comportamento e de comunicação. Ninguém entendia por que eu era assim. Nem eu mesma. Eu era uma menina agressiva, tinha mutismo seletivo (um transtorno psicológico caracterizado pela recusa em falar em determinadas situações). Era uma criança muito difícil de lidar. Fui diagnosticada inicialmente com esquizofrenia infantil e também com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e comecei a tomar remédios controlados antes mesmo de completar 12 anos. Tinha o acompanhamento de psicólogos e psiquiatras e precisei de adaptações na escola até o ensino médio.

Eu estudava em escola de freiras e, com uns 14 anos, comecei a achar legal a ideia de me tornar uma. Aos 18 eu ainda morava com meu pai e minha madrasta, e tinha sérios problemas de comportamento. As freiras, que sempre me acompanhavam de perto, me convidaram para passar um tempo morando no convento com elas. Resolvi aceitar. Para me desligar um pouco da minha família, me levaram para um lugar mais afastado. Fui para Sergipe, no convento Nossa Senhora do Socorro. No fundo meu pai achou ótimo porque eu dava muito trabalho. Ele me incentivou a ir.

Lá, ao perceberem distúrbios no meu comportamento, introspecção extrema, problemas de fala e comunicação, as irmãs de caridade me levaram em diversos profissionais. Após algumas semanas de acompanhamento com neurologista, psiquiatra, psicólogo, neuropsicólogo e psicopedagoga, perguntei para a neuropsicóloga qual era o meu problema. Foi quando ela me explicou o que era o TEA - Transtorno do Espectro Autista. Fiquei assustada e devastada com a notícia. Nunca tinha convivido com pessoa autista antes. Claro que não aceitei esse diagnóstico logo no início, fiquei revoltada. Primeiro por não ter sabido antes, segundo por ter uma visão errada do autismo na época. Ao longo do tempo foi necessário um laudo mais detalhado, pois eu tinha muitos comprometimentos e precisava ter acesso a alguns direitos, como as vagas que são destinadas às pessoas com deficiência (PCDs) em empresas e em faculdades. Aos poucos e com muito acompanhamento psicológico, fui me aceitando enquanto autista e decidi sair do convento um ano e meio depois, para ingressar no mercado de trabalho. Voltei para a casa do meu pai em Minas, mas por não me dar muito bem com a minha madrasta, logo fui morar com minha avó paterna.

"Aos poucos e com muito acompanhamento psicológico, fui me aceitando enquanto autista e decidi sair do convento para ingressar no mercado de trabalho"

 

Aos 19 anos, fiz minha primeira entrevista de trabalho. Fui eliminada do processo seletivo com apenas um minuto de meio de conversa. O recrutador me informou que, infelizmente, eu tinha uma deficiência muito visível para ocupar a vaga. Mas, não desisti. Engoli o choro e segui adiante. Na segunda tentativa, após ler meus textos, o recrutador me elogiou muito por e-mail, disse que eu era perfeita para a vaga e marcou a entrevista presencial para o dia seguinte. No dia marcado, percebi a mudança na expressão dele logo nos primeiros minutos de conversa. ‘Infelizmente, preenchi a vaga agora há pouco’, ele disse. Mas minutos antes havia dito que eu era a única entrevistada do dia. Tenho certa dificuldade ao falar e também apresento algumas estereotipias, um comportamento que faz parte da vida no espectro autista. São ações repetitivas ou ritualísticas vindas do movimento, da postura ou da fala, como por exemplo, balançar o corpo ou as mãos o tempo todo. Eu tenho isso. Ao me verem pessoalmente os recrutadores logo percebiam e nem prosseguiam a entrevista ou a avaliação. Ali já via o preconceito comigo. Essas são algumas entrevistas para as quais eu fui chamada, porque em muitas outras nem convidada para conversar eu era.

Quando já estava quase desistindo surgiu uma vaga em uma empresa no ramo de turismo. Os recrutadores foram incríveis e enxergaram em mim muito mais do que uma simples menina autista sem experiência de trabalho. Eles viram, antes de tudo, o ser humano que sou e que só precisava de uma oportunidade. Como nada na minha vida foi fácil, confesso que foi muito difícil permanecer nesta empresa e, por várias vezes, pensei em desistir. Tive muitas crises, chorei feito criança, sorri tantas outras vezes, cheguei a pedir demissão três vezes em apenas uma semana de trabalho. Mas, meu gestor e colegas sempre me incentivavam a tentar novamente e a não abandonar o trabalho. Já passei por cinco setores até conseguir me encontrar em um, de Tecnologia da Informação, onde estou agora. Hoje trabalho como customer experience, cuidando do aplicativo da empresa e atuando para descobrir se os nossos serviços estão sendo oferecidos com boa qualidade, se a experiência do cliente está boa ou no que precisamos melhorar. Já estou em treinamento para subir de cargo e passar a ser product owner futuramente. 

No dia 18 de setembro de 2019 aconteceu algo que me marcou e quase me fez desistir de viver. Eu estava no primeiro período de direito. Um dia, dentro da faculdade, fui levada para uma sala vazia por um outro aluno, estudante de engenharia de produção. Fui beijada à força e obrigada a fazer sexo oral nele. Na verdade, não me lembro muito bem, acho que acabei bloqueando tudo na minha cabeça. Só me lembro de não querer estudar mais, nem de querer voltar para a faculdade. Sei de tudo pelas notícias que li nos jornais aqui de Minas. Por volta das 20h, eu estava caminhando pelo pátio da instituição, quando fui abordada pelo cara, que pediu o meu número de telefone e me chamou para ‘dar um perdido’. Ele me levou pelas mãos até o corredor da biblioteca. Depois, até o segundo andar, onde encontrou uma sala vazia. Em seguida, apagou a luz e me beijou à força, mesmo eu dizendo que era portadora de autismo. Eu o empurrei, mas ele me pegou, me puxou pelo cabelo e me assentou em uma mesa. Na sequência, o crápula abriu a calça e me obrigou a fazer sexo oral nele. E ainda me perguntava se eu estava gostando. Ele falou para a gente se encontrar novamente depois e eu concordei para que ele parasse com a violência. Saímos da sala e voltamos para o primeiro andar da faculdade. Dali, o cara saiu e sumiu. Ainda em estado de choque, consegui ligar para uma amiga e pedir ajuda. Depois meu irmão me acompanhou até o hospital, onde fiz diversos exames e precisei tomar vários remédios para evitar doenças. Dei queixa na polícia, que passou a investigar o caso. O cara esperou passar o flagrante para se entregar três dias após o ocorrido. E ele segue até hoje aguardando o julgamento em liberdade. Nunca mais o vi (graças a Deus!) e passei um semestre afastada da faculdade, ainda muito chocada e revoltada com tudo que me aconteceu. Ano passado retomei os estudos em outra instituição.

"Estar cursando direito é uma conquista enorme para mim, já que o meu prognóstico era de que não conseguiria nunca levar uma ‘vida normal’"

 

Agora estou cursando direito na Universidade Federal de Minas Gerais, onde passei em segundo lugar no vestibular em vaga para PCD. Precisei de várias adaptações para conseguir acompanhar a minha turma da faculdade, fora ter que superar também todos os traumas que sofri. Estar cursando direito é uma conquista enorme para mim, já que o meu prognóstico era de que não conseguiria nunca levar uma ‘vida normal’. Então, fico realmente muito feliz ao ver todo o meu progresso e por saber que desafiei e superei o que vários profissionais disseram.

Gabrielle Luiza Ramos (Foto: Arquivo Pessoal)

Gabrielle Luiza Ramos (Foto: Arquivo Pessoal)

Como a maioria das pessoas com autismo, tenho muita dificuldade em relação a mudanças. Estive de férias recentemente e o Recursos Humanos da empresa onde trabalho me mandou uma mensagem fofa para me atualizar das mudanças de espaço que teríamos no nosso setor. A moça do RH citou cada detalhe que havia sido modificado durante as minhas férias. E, inclusive, me ‘apresentou’ o novo funcionário, desenhando num papel a imagem de um boneco para ajudar na minha adaptação do novo espaço que iria ocupar. É assim, nestes pequenos gestos, que a inclusão vai se instalando e acontecendo. Outro dia, estava bem barulhento no trabalho, muitas pessoas conversavam alto demais e a chuva batia com muita força nas janelas do escritório. Com tantos ruídos e estímulos auditivos, acabei tendo uma crise, já que tenho muita sensibilidade nos meus ouvidos, o que é muito comum em autistas. Me sentei no chão do escritório e apenas me balançava para frente e para trás, sem conseguir falar, nem sair daquele lugar. Travei total. Alguns colegas e até o dono da empresa vieram até a mim para me acalmar e confesso que essa não é uma tarefa fácil. Fui voltando aos poucos. Não consigo descrever o quanto sou grata por trabalhar e dividir a maior parte do meu tempo com essas pessoas. Eu espero muito, de coração, que algum dia a inclusão e a empatia que vivo no meu ambiente de trabalho se torne uma realidade para tantos outros autistas e pessoas que sofrem de alguma deficiência também em outras empresas. Sabemos que 80% dos autistas estão fora do mercado atualmente e precisamos, sim, de mais acessibilidade e oportunidades. Estou há dois anos aqui nesse trabalho, onde sou muito valorizada enquanto ser humano e também como profissional. Foi o meu primeiro emprego na vida e onde tenho me realizado plenamente.

Hoje em dia faço faculdade, tenho um trabalho digno que me sustenta, estou morando sozinha há seis meses e consigo, assim, ter a minha independência. Isso é uma grande vitória para quem tem autismo. Não se usa mais classificar autismo por nível, mas posso dizer que estou no nível moderado, de acordo com meus laudos. Em 2019 criei uma página no Instagram (@de.tudo.autista), onde comecei a relatar sobre a minha vida sendo autista, mostrando a realidade de uma pessoa adulta com uma deficiência ainda tão estereotipada de forma ruim ou menosprezada. Meu objetivo sempre foi mostrar a verdade como vivo, estudo, trabalho e acabar de vez com todos esses preconceitos e pré-julgamentos. Hoje me sinto uma pessoa feliz e realizada."

Gabrielle Luiza Ramos (Foto: Arquivo Pessoal)

Gabrielle Luiza Ramos (Foto: Arquivo Pessoal)