• Deborah Farah em depoimento a Kamille Viola
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Deborah hoje com implante capilar (Foto: Acervo pessoal)

Deborah hoje com implante capilar (Foto: Acervo pessoal)

“Nasci com alopecia areata total, que é a ausência de cabelo em todas as partes do corpo: cabeça, sobrancelha, debaixo do braço. Não tenho cabelo praticamente em nada, tenho muito pouco. Quando o médico fez o diagnóstico, logo que nasci, minha mãe falou para o meu pai que não queria que eu me sentisse diferente de ninguém. Sou a única da minha família a ter essa doença. Ela optou por me criar sem peruca.

No início, as pessoas do meu bairro diziam: ‘Te conheço desde pequena’. Por quê? Por causa da ausência de cabelo, que é algo marcante em uma criança. Durante o período de escola e de adolescência, vivi num ambiente familiar, em que todos me conheciam. Então, não sofri muito preconceito. Tanto que era sempre chefe de turma e tal.

Pode ser que as coisas tivessem sido diferentes se minha mãe estivesse viva – ela morreu quando eu tinha oito anos em decorrência de um tumor cerebral. E com meu pai, que tem um relacionamento estável desde essa época, era tudo mais brusco. ‘Se alguém te chamar de careca, manda tomar no c*’, dizia. Era a forma que tinha de me falar: ‘Reage!’. A companheira dele ajudou em vários aspectos, porque ele tinha três filhos. Mas não interferiu no meu cabelo. Sou muito, muito grata por tudo o que o meu pai fez por mim. Imagino como deve ter sido difícil para ele ter que lidar com essa situação sozinho. Sei que ele se dedicou o máximo possível para que eu não tivesse nenhum trauma e fosse aceita socialmente. Principalmente aceita por mim mesma.

Desde muito cedo, ouvia: ‘Você tem que se aceitar do jeito que é’. Da infância à juventude, lutei muito para me vitimizar. E acho isso importante, porque eu sou uma pessoa muito proativa.

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Óbvio que a paquera era complicada. Lembro de histórias da adolescência, por exemplo, de estar interessada em um menino e os amigos falarem: ‘Você está doido? Vai ficar com essa menina?’ ou ‘Nossa, não faz isso, a menina é doente!’. Apesar disso, meu primeiro beijo foi com 11 anos, em um menino do meu bairro. Mas relacionamentos demorei muito a ter.

Quando comecei a fazer Direito na PUC, as pessoas que não me conheciam achavam que eu tinha câncer. As pessoas me olhavam de maneira diferente, comentavam. Se eu ia num bar de faculdade, diziam: ‘Essa menina é doida, ela tem câncer e está bebendo’. Senti uma dificuldade muito grande de me inserir em um ambiente social diferente do que eu estava acostumada, em que as pessoas me conheciam.

Eu estava com 19 anos quando tive uma depressão e conversei com uma amiga minha sobre isso. Para mim, foi difícil romper o vínculo familiar, aquela coisa de que eu tinha que me aceitar do jeito que eu era. Entrei para a terapia, que fiz durante três anos, para abordar principalmente a questão do cabelo, de aceitação que era hora de mudar. Colocar uma prótese para facilitar o meu convívio social, a própria questão do relacionamento com homens era necessário para mim. De falar: é hora de mudar, vai ser melhor para você, porque está vivendo num meio onde as pessoas vão te olhar, vão te julgar, que o homem não vai te aceitar e que as pessoas são cruéis. E também para trabalhar a morte da minha mãe.

Com 23 anos, eu coloquei a primeira prótese capilar. Até lá, fui completamente careca. E vi a diferença na abordagem dos homens, na questão da sexualidade, que foi ausente nessa fase sem cabelo. O cabelo é muito importante para a mulher, ele significa muita coisa, principalmente em relação aos homens. Foi só aí que eu perdi a virgindade. Foi com um homem com quem eu fiquei durante seis meses. A gente se conheceu porque uma amiga minha estava com uma pessoa ligada a ele. Ele me nunca perguntou do meu cabelo nem nada. Hoje percebo que tive muita dificuldade, na época, de lidar com o relacionamento. Ele ficava: ‘Você vai conhecer minha família?’. E até hoje eu sou assim: se um cara falar que eu vou conhecer a família dele, eu digo: ‘Não quero, não’. Porque fico imaginando eu chegando na casa e a mãe dele me analisando toda, o pai me analisando toda, então corro disso. É horrível a cobrança, a pressão. Fui bem sincera com ele: ‘Não quero esse trem de família, está bom do jeito que a gente está’. A gente se encontrava toda semana nos seis meses que ficou junto. Não durou mais acho que por imaturidade minha. Eu não tinha experiência nesse lado amoroso, não sabia bem o que queria.

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A primeira prótese que comprei foi de uma marca famosa. Custou R$ 5 mil na época. Quando tive que trocar o cabelo, comecei a pesquisar mais. Um cabelo de 70 centímetros custa uns R$ 3 mil. Mas tenho que fazer uma manutenção mensal, que custa por volta de R$ 100. Você pode até fazer de 45 em 45 dias, mas o ideal é fazer mês a mês, porque a prótese fica bem justa na sua cabeça. Senão fica parecendo mesmo que você está de peruca.

Na minha cabeça, naquela época, eu achava que as coisas estariam resolvidas: ‘Ah, agora vou ser aceita socialmente, está tudo muito bem, está tudo muito bom. Vou lá fazer o reajuste uma vez por mês e não tenho que me preocupar com nada.’ Só que, para quem nasce com esse tipo de doença, não é algo que tenha fim. A gente vai estar preocupado, por exemplo, com quando troca o cabelo, porque de tempos em tempos tem fazer isso. Aí todo mundo pergunta: ‘Trocou o cabelo?’. Por exemplo, eu estou numa fase com o cabelo mais curto. Então se molha, se eu vou no mar, algo assim, aparece minha careca. E as pessoas me perguntam: ‘Você tem câncer?’.

Eu tinha a ilusão de que a prótese me livraria de uma série de constrangimentos. Ela diminuiu muito, mas eles ainda existem: o fato da sobrancelha ser fio a fio, o fato de eu não ter cílios. Eu acho que estaria resguardada de sofrer preconceitos, mas a verdade não é essa. Percebi que, mesmo me esforçando ao máximo para me adequar, as pessoas não entendem e vão continuar me perguntando. Elas já julgam que você têm câncer. Às vezes elas nem falam, só pensam. Mas às vezes tem alguém que diz. Recentemente mesmo eu fui cobrada: ‘Por que você não coloca cílios fio a fio?’. A todo momento as pessoas estão te cobrando.

Logo que eu coloquei, eu tive uma dificuldade imensa com o cabelo. Você tem que colocar ele grande, para ter que trocar menos ele e ser um custo-benefício melhor — porque ele vai caindo, quebrando… Foi difícil escolher a cor, a minha prótese foi loura… Até eu me acostumar, foi muito complicado. Mais ou menos no mesmo período, fiz sobrancelha (de micropigmentação) fio a fio. Todo procedimento dói: botar e tirar a prótese, fazer a manutenção da sobrancelha. Eu passo muito lápis. Tenho dificuldade para mantê-la.

No início, a prótese tem muito volume de cabelo. As pessoas me perguntam: ‘Por que você não coloca menor?’. Pela minha experiência nesses dez anos, você tem que colocar um cabelo maior, para o seu dinheiro ser mais valorizado, porque custa caro, e você ter que fazer menos troca. Em breve, vou botar um cabelo de 70 centímetros, que vai durar três anos. Vou passar por todas as fases: grande e cheio, aí ele vai caindo e ficando mais curto, e chega até a base do queixo. Você vai fazendo essas mudanças.

Por isso tudo, a descoberta do prazer no sexo foi mais tarde. De me assumir enquanto mulher. Foi a partir dos 30 anos, acho. E também não conseguia me inserir no mercado de Direito aqui em Belo Horizonte, que é péssimo, e eu não tenho contatos. Na mesma época, fiz o concurso para a Polícia Civil, passei, e isso também mudou minha vida. Acho que o cabelo foi importante para eu esquecer um pouco de tudo, me concentrar no concurso e a ser aprovada. Dos meus 30 anos para cá eu posso dizer: ‘Conheço a Deborah, sei exatamente do que ela gosta, exatamente o que faz bem a ela.’ Está muito recente. E tento me respeitar muito.

A prótese ajuda muito em vários sentidos. Se eu for sair para algum lugar onde as pessoas não me conheçam, consigo passar despercebida. Também não acho que eu conseguiria manter a postura profissional que tenho, de falar, ser proativa, questionadora se eu não tivesse cabelo e me sentisse diminuída de alguma forma. Trabalho praticamente só com homem, eles querem ter razão, têm um lado machista para usar isso a favor deles, então a prótese foi muito importante. E hoje eu posso falar que vários homens me abordam. Tanto no trabalho como nos ambientes onde eu saio. E isso não acontecia antes. Nesse sentido, muda completamente. O homem é muito visual.

Não tive relacionamentos duradouros. Percebo em mim a dificuldade de me relacionar durante muito tempo. Primeiro, porque a perspectiva de um namoro de muito tempo é se tornar um casamento e ter um filho. Eu tenho para mim que preciso viver coisas antes disso. Penso: ‘Nossa, eu passei por tanta coisa, então tenho que descobrir minha autoestima, saber o que eu quero, para depois colocar alguém na minha vida’.

Hoje, tenho dificuldade de me relacionar porque desenvolvi uma personalidade forte, fiquei um pouco dura. Acredito que tudo o que aconteceu foi melhor. O que eu não contestei durante muito tempo na minha vida, que foi uma projeção do que minha família escolheu para mim, hoje contesto ainda mais. As pessoas falam: ‘Nossa, você está com 34 anos, não quer casar e quer ter filho?’. Eu digo: ‘Agora não, eu quero é viajar, não quero perder minha liberdade.’ Me tornei muito questionadora a partir de tudo que aconteceu. Até hoje não conseguiria me ver com um homem me cobrando: ‘Você tem que estar dessa forma.’ Ou a família dele me cobrando. Fujo desse tipo de coisa.

Minha amigas falam que eu sou muito durona com relacionamento. Mas tenho muita facilidade de fazer amizade. Todo mundo fala: ‘É só você sair que conhece alguém’. Tudo isso me tornou muito independente. Isso dificulta um pouco nas relações.

Acho que tudo isso me deu uma autoestima muito boa, porque eu não sou quieta, não fico em casa, não me escondo, eu gosto de conviver com as pessoas. Gosto muito de viajar, sou montanhista, escalo, sempre conheço gente diferente. Não tenho medo do que as pessoas vão falar, perguntar. Porque eu estou sujeita, exposta a isso.

Hoje, me sinto tão bem que não importo de falar. Acredito que cada um na vida tem uma trajetória e a minha é essa. Tenho uma personalidade e postura bem marcantes. Acredito que isso vem muito da alopecia. Tenho muita facilidade de me mostrar para as pessoas. O que era de se esperar era que eu fosse tímida, que não gostasse de sair, de viajar, e eu sou o contrário. Não aguento ficar em casa, gosto de fazer amizade, de falar, de expor meu ponto de vista. E me aceito muito bem.”

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