• Marie Claire
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Mulher (Foto: Gabriel Benois on Unsplash)

Mulher (Foto: Gabriel Benois on Unsplash)

Aos 33 anos conheci o homem com quem realizei o grande sonho de construir uma família. Eu estava empregada em um hospital no Rio de Janeiro, onde vivo e trabalho como psiquiatra, quando minha chefe me encaminhou um paciente que tinha crises de ansiedade, pânico e deveria ser medicado. Na primeira consulta, conheci o John (*), um americano de 40 anos que estava sofrendo por causa da separação. A ex-mulher havia voltado para os Estados Unidos com os três filhos e ele andava nervoso. Tratei-o com remédios por quatro meses, vendo-o apenas a cada 30 dias. Passado esse período, quando ele estava mais calmo, suspendi os medicamentos e dei alta. Foi quando ele me convidou para jantar. Aceitei e começamos a nos relacionar.

Namoramos por dois anos. Ele vivia em um apart-hotel no Leblon, onde tínhamos nossa privacidade e intimidade. Eu morava com meu filho adotivo, o Caio (*). Eu sempre dizia que gostaria de engravidar, mas ele não tinha o mesmo plano. Vivia falando que faria vasectomia. John se dava bem com Caio, que tinha cinco anos quando o conheceu. Era muito amoroso. O menino sempre perguntava por que John não era seu pai. Um dia, questionou o próprio John sobre isso, que decidiu adotá-lo formalmente. Assim que nos casamos, em 1990, eu e Caio ganhamos o sobrenome de John. Passamos nossa lua de mel na Grécia. Vivemos tempos bastante felizes, em uma linda casa no bairro do Jardim Botânico. Compramos outra casa enorme em Itaipava, na região serrana do Rio, para onde íamos todas as sextas-feiras. Depois, também compramos uma casa de veraneio em Boca Raton, na Flórida, onde passávamos as férias de julho.

Após um ano de casados, meu marido decidiu realizar meu sonho de engravidar. Eu estava triste porque minha mãe tinha morrido e ele queria me animar. Fiquei radiante com a iniciativa. Um mês depois da proposta, eu estava grávida. Eu tinha 36 anos quando minha filha nasceu. Vivíamos uma vida confortável. Meus enteados passavam as férias no Brasil. Além das férias nos EUA, viajávamos outras vezes no ano para o exterior, sempre de primeira classe. Meu filho aprendeu a língua inglesa com facilidade. Aos seis anos, começou a jogar tênis com o pai e se apaixonou pelo esporte. Minha filha aprendeu o inglês e o português.

Certa vez, uma revista especializada em negócios publicou uma relação dos 100 homens economicamente mais influentes do Brasil, e lá estava meu marido. Parecia que eu havia encontrado a paz. Àquela altura eu, psiquiatra, exercia a medicina e estudava — fazia minha formação em psicanálise, um sonho antigo. Estava tão feliz com a minha vida que decidi fazer algo pelo próximo. Fundei, junto com outros médicos, uma ONG para ajudar as famílias carentes de crianças doentes no hospital onde eu trabalhava. Eu me dedicava às crianças da ONG, ao meu trabalho e meus estudos, mas principalmente a meus filhos e meu marido. Tudo estava aparentemente muito bem.

Lá pelo quinto ano do casamento, John começou a abusar da bebida. No começo era apenas um copo de uísque à noite. Depois, começou a beber durante o dia. Até que um dia o encontrei desacordado no chão, por conta da bebida. Levei-o para a cama e no dia seguinte era como se nada tivesse acontecido. Para ele. Pois eu fiquei preocupada e fui direto procurar ajuda. Daí para o alcoolismo foi um pulo. Encaminhei-o para terapia, psicanálise, Alcoólicos Anônimos e tudo que eu podia. E ele só afundava. Em meados da década de 90, ele perdeu o emprego na multinacional em que trabalhava. Eu achava que era por conta de competição interna, mas depois soube que foi por causa da bebida, pelo seu comportamento inapropriado. Eu não tinha como sustentar toda a família com o meu salário.

Decidimos ir para os EUA. Pensamos que a proximidade com os familiares dele o ajudaria a largar o vício. E lá, ele teria mais chance de conseguir outro emprego. Afinal, tinha um currículo de alto executivo internacional. Para isso, eu teria que abrir mão da minha vida profissional e arriscar. Deixei minhas crianças da ONG, meu emprego no hospital, meu consultório, minha sociedade de psicanálise. Além dos meus amigos e da família. Na mudança, levei apenas a babá dos meus filhos porque eles eram muito afeiçoados a ela. Deixei todos os móveis de casa aqui. Não foi fácil para meu filho, na época com 12 anos. Ele nunca reclamou de deixar a escola e os amigos, mas sofreu com as perdas. Minha filha, com quatro anos, era quem mais reclamava. Não queria ir de maneira alguma.

Chegando lá, o primeiro choque. Nada mudou em relação à bebida. Ao contrário. Ele começou a desenvolver crises severas de ciúmes. Dizia que eu tinha amantes, que estava reatando com ex-namorados. Chegou ao ponto de ligar para a mulher de um rapaz que havia ido em casa consertar um encanamento e dizer que eu estava de caso com o cara. A vontade que dava era de separar logo, mas não o fiz pelas crianças. Nosso dinheiro começou a rarear. Passei a usar minha herança para nos sustentar. Ele nunca me disse quanto tínhamos na poupança, quanto ganhava, mas vivia me dizendo que estávamos sem dinheiro. Ele parou de procurar trabalho e desistiu de cobrar dívidas antigas na Justiça. A empresa em que ele tinha trabalhado no Brasil lhe devia um bom dinheiro.

Fui procurar emprego, então. Consegui trabalho como vendedora de uma loja de departamentos. Fiquei lá por um ano, mas resolvi voltar a estudar. Aquela carreira não me daria futuro e não nos sustentaria por muito mais tempo. Para exercer a medicina nos EUA, teria que tirar uma licença local, um processo complexo. Resolvi entrar numa faculdade de psicologia. Comecei tudo de novo, aos 47 anos. Entrei na universidade e minha turma tinha a idade média de 18 anos.

Sempre tentei esconder o alcoolismo das crianças. Evitava brigas na frente delas. Mas meu filho, já adolescente, um dia falou que se eu não me divorciasse iria embora de casa ao completar 18 anos. Por diversas vezes, meu marido sumiu de casa por dias ou semanas. Para as crianças eu dizia que ele havia viajado. Às vezes viajava mesmo para o Brasil e aqui desaparecia. Numa dessas vezes, desapareceu da casa do meu pai onde estava hospedado por uma semana. Os irmãos dele me cobravam, mas eu também não sabia onde ele estava. Foi quando recebi um telefonema de uma empresa aérea, me dizendo terem sido contatados pelo meu marido de um número no Brasil. Ele queria comprar uma passagem de volta para os EUA. Liguei para o tal telefone — era de um motel. Disseram-me que ele estava hospedado ali havia uma semana. Pedi a um dos meus irmãos para buscá-lo. Ele estava machucado, desidratado... Vim ao Brasil para buscá-lo.

Em 2001, ele conseguiu um emprego. Achei que ele fosse parar de beber, o que não aconteceu. Quando foi demitido outra vez por causa da bebida, pedi a separação. Não aguentava mais. Ele não aceitou e ameaçou me matar na frente do meu filho. No Natal daquele ano, vim para o Brasil, passar as festas na casa do meu pai. Ele ficou lá, mas me ligava várias vezes ao dia, fazendo ameaças e ofensas. Dizia para eu não voltar, que a casa não era minha, que ficasse com “meus amantes”. Ao voltar, pedi que saísse de casa e ele desapareceu por um mês. Nesse intervalo, a moça que eu havia levado como babá dos meus filhos me chamou e contou que meu marido era bissexual.

Ainda quando morávamos no Brasil, o irmão dela também trabalhava em nossa casa como jardineiro. Naquela época, meu marido o assediava sexualmente com presentes e até com ameaças de demissão. Contou-me que seu irmão tinha tanto horror dele que só dormia com o quarto trancado. Disse-me que quando eu viajava, ele saía com rapazes jovens. Falou que certa vez uma de minhas amigas tinha ido para minha casa beber e dormido com ele em nosso quarto. E mais. Toda a minha família sabia, mas ninguém tinha coragem de contar. Assim como ela, tinham medo dele. Fui ligando os fatos em minha cabeça e entendendo várias coisas. Lembrei-me das diversas vezes que ele chegava em casa machucado, e entendi que eram brigas com garotos de programa no “Boa noite Cinderela”. Nesse dia me senti sem chão. Parecia que a última parede do meu mundo tinha caído.

Tudo era mentira. Todo meu mundo, pelo qual eu pagara um preço tão caro, o da renúncia, era completamente falso. Poucos dias depois, meu marido me ligou de manhã bem cedo. Estava completamente embriagado e disse que estava voltando para casa. Não me contive e disse tudo que soubera. Ele respondeu que eu estava o condenando, mas não condenava um amigo gay. Respondi que não havia me casado com meus amigos, e sim com ele. Chegou em casa ferido e com vários hematomas. Contou uma história de que estava fazendo aulas de mergulho e se machucara. Ri na cara dele. Falei que ele havia saído com um garoto de programa e se embebedado. O garoto o tinha roubado, ele havia reagido e apanhado. Ele respondeu: ‘Mas eu também bati. Ele também apanhou!’

Contou-me que estivera hospedado em um hotel cinco estrelas e me pediu para ir até lá buscar suas coisas e pagar a conta. Mandei-o embora e liguei para minha advogada, que me aconselhou chamar a polícia. Foi o que fiz. Enquanto ele dormia em nossa cama, os policiais me perguntaram se estávamos efetivamente divorciados, se ele havia saído de casa e levado todos os seus pertences ou se tinha me agredido fisicamente. Diante de minhas negativas, disseram que só poderiam aconselhá-lo a sair por vontade própria. E ele o fez. Saiu de táxi e deixou seu carro aberto na porta de casa. Eu chorava, sentada na garagem.

Dentro do carro dele descobri uma caixa de documentos. Um deles era uma consulta a um advogado americano sobre seus direitos e deveres no nosso casamento. Outro documento era o registro de nossa casa só no nome dele e com estado civil de solteiro. Compramos a casa três anos após o casamento. Nessa noite, apesar de estar com o braço engessado (eu tinha quebrado em um tombo), tive o cuidado de dobrar mais de 80 camisas sociais, os 30 ternos, as calças e todos os objetos pessoais dele. Enchi todas as malas que tínhamos. Foram 10 malas grandes que coloquei dentro do carro. Ali ficaram por um mês, até que o irmão dele ligou dizendo que iria buscar o carro, pois tinha as chaves. John viria junto. Não os vi chegar nem sair.

Depois desse dia, começamos uma briga jurídica. Mas eu estava completamente sem dinheiro. Pagava os advogados com o cartão de crédito que estava em conta conjunta. Aliás, pagava todas as despesas da casa com aquele cartão. No entanto, ele havia desaparecido. Mandava cartões para as crianças dizendo que eu o havia proibido de vê-las. Meu desespero era total. Minha resistência física e mental chegava ao fim. Cheguei a pesar 39 kg. A única vantagem imediata do divórcio é que ficamos magras sem dieta ou exercícios.

Quando a mãe dele morreu, levei meus filhos para o enterro da avó. Ele então me procurou e pediu para pararmos com aquela guerra. Disse que estávamos perdendo tudo que tínhamos com advogados. Além do sofrimento de toda a família. Propôs um acordo. Eu estava exausta com tudo aquilo. Sem saúde física e mental, sem dinheiro e sozinha, em um país estranho, com dois filhos. Aceitei qualquer tipo de acordo que me fizesse sair daquele inferno. Eu ficaria com a casa e uma pensão ínfima para cada filho (de 500 dólares), até completarem 18 anos. Ele ficaria com todo o restante (que era uma empresa de compra e aluguel de imóveis que tinha autorização legal para fazer empréstimos e financiar imóveis. Ele tinha ainda um gordo plano de aposentadoria). Aceitei desde que ele pagasse os estudos das crianças até a universidade. Assim, nos divorciamos em maio de 2002.

No dia em que fomos formalizar o divórcio, uma surpresa. Ao ler o acordo e ver a declaração de renda do meu marido, a qual eu nunca havia visto, a juíza se recusou a assinar, alegando ser totalmente injusto. Ele argumentou que estava desempregado e ela cedeu com a condição de que o acordo fosse revisto quando ele arranjasse emprego. Apesar de tudo, me senti aliviada. Livre de um pesadelo. Mas sem trabalho e sem dinheiro. Nunca me recuperei financeiramente, mas tive ajuda do meu pai. Vendi a casa de Boca Raton que ficou comigo e comprei um apartamento para meu filho, onde ele vive hoje.

Voltava ao Brasil de vez em quando para visitar minha família e antigos amigos. Nessa época, numa visita ao hospital onde havia trabalhado, reencontrei um médico, ex-namorado. Mesmo depois de 15 anos sem o ver, ainda pensava nele. No nosso reencontro, passado o susto, veio a emoção e um beijo. Todo o sentimento do passado ainda estava presente. Em ambos. Conversamos muito e lhe contei o que tinha acontecido. Ele falou que estava casado, mas que seu casamento estava um fracasso. Em busca de consolo, tinha se envolvido com outras mulheres. Mas nunca se separou.

Voltei para os EUA. Esse médico começou a me ligar, mandar e-mails. Em busca da minha felicidade, mudei com minha filha para o Rio novamente. Ficamos juntos por um tempo, mas mesmo vivendo em minha casa, ele continuou mulherengo. Encontrei e-mails de paquera entre ele e colegas de trabalho. Achei muita falta de respeito e terminamos há alguns meses. Sigo com minha vida, continuo com meu trabalho como psiquiatra e psicanalista e tratando de minha saúde, que andou fragilizada por conta de um câncer de mama.

John continua bebendo. Quase não temos contato e com muito custo consegui que ele me respondesse e-mails este ano para ajudar a tirar o passaporte de nossa filha. Ele mora na Flórida, mas quase não vê nossos filhos. Eu sinto pena dele porque sei que ele não se resolveu sexualmente. Vive com seus conflitos que, a meu ver, são a causa de seu problema com a bebida. Talvez a razão de sua repressão tenha sido fruto de uma criação rígida e tradicional. Acho que foi essa não aceitação que o fez me acusar de traições e outras maluquices. Era uma forma de justificar o esfacelamento do casamento, sem assumir sua culpa com a bebida e a busca por sexo com rapazes de programa.

* Os nomes foram trocados a pedido da leitora