• Redação Marie Claire
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Mulher; anorexia; bulimia (Foto: Thinkstock)

Eu, leitora: “Fui drogada e bulímica por sete anos” (Foto: Thinkstock)

"Comecei a vomitar para tentar anular o excesso de calorias ingeridas. Queria ser magra por causa do balé. Comecei a dançar com 2 anos e 10 meses. Era considerada um talento, mas acima do peso. ‘Você é uma bailarina perfeita e tem o diferencial da graciosidade, por favor, emagreça’, dizia a professora. Nas apresentações, ela fazia questão de me colocar à frente das outras meninas e eu ouvia as mães das colegas dizendo: ‘Não entendo como a mais gordinha ficou na frente’. Embora meu peso fosse o de uma criança normal, estava acima do de uma bailarina. Por admirar a professora e por amar a dança, eu acreditava que com esforço conseguiria emagrecer e fazer uma linda carreira no balé. Só que esse esforço aparecia em todos os aspectos da minha vida, menos na dieta, o que me deixava frustrada. Comia como uma criança comum e, como todas, não resistia a doces. A verdade é que eu não tinha o biótipo de bailarina. Minha mãe tentava me ajudar. Mas, no fundo, me atrapalhava. Lembro de ficar constrangida em um jantar quando ela disse, na frente dos outros, que eu tinha comido demais.

A bulimia chegou aos 14 anos e era um segredo. Eu já era considerada uma bailarina clássica. No início, vomitava apenas quando cometia o que eu encarava como exagero — uma sobremesa ou um pouquinho mais de feijão no almoço. Nessa fase, provocava vômitos colocando o dedo na garganta de maneira discreta e sem grilos. A ideia de vomitar surgiu de forma instintiva. Nesse período, descobri que as dançarinas tomavam anfetaminas para ficar magras. Meu primeiro cachê como profissional, aos 15 anos, foi gasto com o endocrinologista mais caro de Brasília, onde eu morava. Ele me receitou as tais pílulas e consegui perder os cinco quilos que tanto queria. Como efeito colateral, me sentia poderosa. Além de tirar a fome, a anfetamina me deixava acordada, bordando fantasias do balé durante toda a noite e estancava meu impulso de provocar vômitos. Mas quando achava que tinha exagerado, em uma festa ou jantar com amigos, voltava para casa para vomitar.

Nessa idade, passava boa parte do tempo sozinha. Além da bulimia e das anfetaminas, comecei a beber escondido. Meus pais se separaram quando eu tinha 13 anos. Meu irmão se mudou para o Rio de Janeiro com meu pai e eu fiquei com a minha mãe, em Brasília. Com a separação, ela começou a trabalhar mais e se distanciou de casa, o que nos afastou ainda mais — minha relação com ela sempre foi distante. Imigrante de guerra do Oriente Médio, ela sempre viu a sobrevivência como a coisa mais importante da vida. Seus esforços eram para manter os filhos numa boa escola e com a barriga cheia. Não havia proximidade. Nossa casa era um lugar de cobranças. Não de diálogo.

Ela nunca soube que, enquanto estava dando aulas à noite, eu me embebedava em casa com vinho, vendo filmes de dança e depois ia dormir. A bebida anestesiava minha tristeza. Certa vez, para aliviar essa angústia e chamar a atenção da minha mãe, cheguei a mentir sobre um assalto para justificar um ataque que fiz ao meu corpo. Cortei desesperadamente meus cabelos e dei socos violentos no meu rosto. Os telejornais noticiavam “roubo de cabelos” e simulei isso. Cheguei a ganhar um colinho, um consolo. Ela teve de parar o trabalho para me levar à delegacia. Na época, não tinha noção de que esses eram sintomas de que algo não ia bem no meu interior.

Quanto estava com 15 anos, mamãe resolveu morar com a família no Sul do país. Ela estava bem financeiramente, mas não conseguia superar a separação, queria ficar perto dos irmãos, ter uma vida familiar. Aquilo foi um balde de água fria. Eu teria de desistir da carreira de bailarina e, consequentemente, da minha independência. Não houve argumento que a fizesse mudar de ideia. Precisei dar adeus à companhia de dança, aos amigos e à forma física.

Mantinha meu peso graças às anfetaminas compradas sem que ninguém soubesse. Quando mudamos para Porto Alegre, parei de ir ao médico e de tomar os remédios. Engordei 10 quilos em menos de dois meses. Com a autoestima baixa, não tive forças para buscar um novo grupo de dança. Entrei em depressão. Na escola, era agressiva com colegas e professores: respondia mal, dava foras, afastava as pessoas. Com a família, tentava ser cordial, mas era difícil escutar os comentários sobre meu rápido ganho de peso: ‘Seu bumbum explodiu para os lados’, me disse uma tia. Me liguei ao grupo barra pesada da escola. Às 7 da manhã, bebíamos uísque para espantar o frio. À tarde, bebia sozinha em casa. Nos finais de semana, encontrava os amigos na boate mais doida e underground da cidade. Eu adorava. Me identificava com os doidões: hard rock, punk e cachaça pura.

Em meio a essa loucura, perdi as referências: não tinha planos, não gostava de mim. Comecei a ter brigas horríveis com a minha mãe. Em vez de dar o amor e a atenção que eu precisava, ela partia para o embate. Dizia ter certeza de que a amizade com minha melhor amiga era uma relação lésbica e que eu fumava maconha, o que não era verdade. Brigávamos aos berros. Eu passava a maior parte do tempo na rua. Voltava para casa só para dormir. Hoje percebo que ela também estava assustada e perdida.

Aos 16 anos, num movimento de rejeição à minha mãe e de fuga de uma realidade difícil, abandonei a escola e fui para a casa do meu pai, no Rio. Disse que ia passar 15 dias e não voltei mais. Ele só fez duas exigências para que eu ficasse: deveria caminhar na orla todos os dias e voltar a estudar. Topei as regras e, de quebra, busquei ajuda, por conta própria, nos Alcoólicos Anônimos. Com a mudança de ambiente e com o trabalho do AA, parei de beber facilmente. Voltei ao 2o grau e entrei numa escola de teatro. Não perdi os 10 quilos ganhos com a falta das anfetaminas e permaneci com a autoestima baixa. Não pintava as unhas, não me maquiava, não comprava roupas.

Quando terminei o 2o grau, comecei a praticar aulas de circo, o que me trouxe forças. Me apaixonei pelo picadeiro e meu sonho virou entrar para o Cirque du Soleil. Voltei a ter esperança, a sorrir e a me esforçar. Acordava cedo e me exercitava muito. Comecei a ler sobre alimentação natural e macrobiótica. Meu café da manhã era um suco de cenoura e salsa, o almoço era um prato pequeno de arroz integral (às vezes com caldo de feijão) e à noite uma fruta ou um shake emagrecedor. É claro que com o gasto calórico que tinha, quase não suportava essa alimentação. Acabava atacando uns biscoitos no meio da tarde. Quando isso acontecia, tratava de me livrar deles o mais rápido possível pelo vômito. Consegui emagrecer não pela bulimia, mas pelos exercícios: treinava sete horas por dia. Quatro horas na escola de circo e mais três de academia.

Embora estivesse obstinada a fazer carreira circense no exterior, não pude contar nem com o apoio moral nem financeiro da família. ‘Trabalho no circo é limpar cocô de elefante’, foi um dos absurdos que ouvi de um tio. Meu pai achava minhas apresentações lindas, se emocionava, mas não me incentivava a seguir porque não podia me bancar — eu precisava ser sustentada por ele até conseguir uma boa colocação. Como eu tinha 18 anos, ele dizia que eu precisava ter meu próprio dinheiro para transporte, alimentação e tudo que não fosse um teto. Fui garçonete, recreadora, professora particular. Vendia shows de bandas de amigos e participava de algumas peças de teatro. Queria crescer como circense, mas não conseguia pelo excesso de tarefas. Por isso, a ansiedade tomou conta de mim e as crises de bulimia ficaram diárias.
Parei de ir para a academia e passava as tardes sozinha, em casa, vomitando. Comia compulsivamente e depois vomitava. Fazia tudo com a maior discrição possível: limpava o banheiro, tomava banho e ia ao mercadinho para repor a geladeira. Ninguém imaginava o que acontecia. Sentia que a bulimia era um grande alívio para a angústia, mas sabia que não era normal. Não conseguia evitar a primeira mordida compulsiva, muito menos o que vinha depois. Antes de as crises de vômito começarem, sentia um torpor. Pensava que não podia fazer aquilo, mas o impulso era mais forte do que eu. E, depois que começavam, achava que tinha de ir até o fim. Em seguida, ficava deprimida e entediada. Prometia nunca mais repetir aquilo. Meu pai e meu irmão não imaginavam o que estava se passando. Me distanciei dos amigos e, completamente infeliz, voltei a Brasília.

Minha mãe tinha voltado para a cidade por causa do trabalho. Lá, parei de vomitar. Em compensação, voltei a beber, passei a fumar maconha todos os dias e usar cocaína nos fins de semana, em festas. Produzia peças, shows e eventos. Ganhava dinheiro e torrava na balada. Aos 20 anos, estava no Rio a trabalho e me apaixonei por um ator que também se drogava. Depois de um mês de namoro a distância, fui morar com ele no Rio e comecei a misturar drogas e bulimia. A bulimia continuava a ser segredo e o uso de drogas, compartilhado com amigos. Eu não estava trabalhando nem estudando. Estava fora de forma e o desejo de retomar a vida no circo era distante da realidade. Quando meu namorado foi fazer um trabalho em Salvador, pela primeira vez me vi sozinha, sem perspectivas, cercada de drogas e com a compulsão da bulimia batendo forte. Ali, tive vontade de morrer antes que ele voltasse. Pensei em provocar uma overdose.

Num domingo à noite, carregada por amigos que iam me deixar em casa depois de uma balada, lembro de ouvir alguém fazer uma piada sobre uma clínica de reabilitação a 300 metros da minha casa. Quando acordei na segunda-feira, tomei um banho, coloquei minha melhor roupa e fui até lá. Uma psicóloga me atendeu. Contei o que estava passando e os meus planos de viagem sem volta. Ela me convidou para almoçar e para conhecer o local, depois pediu para alguém me acompanhar até em casa e tirar as drogas de lá (coisa que não é usual). Me fez prometer que voltaria no dia seguinte.

Quando meu namorado voltou de viagem, eu não estava mais na casa dele, me internei na clínica. Nem nos falamos mais. O afastamento das pessoas e dos ambientes tóxicos faz parte do tratamento. Na clínica, havia artistas, intelectuais, gente com quem eu me identificava. Em casa, deu tudo certo: a equipe me ajudou a contar para o meu pai, que teria de pagar o tratamento. Aos quatro meses de clínica, numa reunião, abri sobre minha compulsão pela comida e a bulimia. Foi uma experiência estranha porque aqueles dependentes químicos, com suas histórias superpesadas, ficaram chocados com meu depoimento. Alguns choraram. Outros saíram da sala.

Durante o tratamento, a clínica me encaminhou a um psicanalista que dedicava a vida aos pacientes com distúrbios alimentares, minha dificuldade maior. Ficar sem drogas e álcool não era um problema. Voltei para a casa do meu pai e comecei a terapia. Por vários meses, as sessões de análise foram diárias. As recaídas, que não aconteceram com as drogas, foram terríveis com a bulimia. Passava três meses sem vomitar e, depois, duas semanas vomitando direto. Aí, mais dois meses limpa e uma semana sem conseguir sair do banheiro. No fim de um ano com esse médico, tive uma recaída de um mês seguido, vomitando oito horas por dia. Não saía de casa para nada. Entrei em depressão. Não comia, não dormia, não saía de cima da cama. Não sabia que rumo tomar. Foi quando consegui contar toda a verdade para minha mãe e ela pôde me amparar. Ela tinha de ir à Paris por causa do doutorado e fui junto. A convivência pacífica com ela foi fundamental para minha melhora e, quando voltamos ao Brasil, eu já estava recuperada. O gesto dela de me acolher, aliado ao comprometimento na análise, fez com que eu permanecesse sem crises durante um ano, dois, cinco, dez...

Nesse tempo aprendi sobre mim e sobre a estrutura familiar propícia ao desenvolvimento de transtornos alimentares: pai ausente e mãe controladora. Entendi que ingeria substâncias para aliviar angústias: doces na infância, comida em excesso e álcool na adolescência, drogas no início da vida adulta. Outros calmantes de ansiedade são os exercícios exaustivos, as crises de vômito e até os episódios de violência física ao próprio corpo. Que angústias e ansiedades são essas? As de todo mundo: o desejo de corresponder às expectativas, raiva contida, dinheiro, amores. A diferença é que eu era uma pessoa de sensibilidade extrema sem estrutura para lidar com as pressões da vida. Como num vômito, meus sentimentos estavam misturados dentro de mim, não conseguia identificá-los, falar sobre eles nem pedir ajuda. Me curei por um longo processo de análise, que me ajudou a entender o meu núcleo familiar sem pressa, sem remédios psicotrópicos e sem fórmulas mágicas. Nunca conversei sobre padrões de beleza com meu médico. Os motivos da bulimia não estavam fora, mas dentro de mim. Não tinham a ver com necessidade de magreza, mas de acolhimento, proteção, contenção. Reconhecer isso requer paciência e coragem.

Ainda em análise, estou em outra fase: buscando estabelecer vínculos profissionais e afetivos, aprendendo a me relacionar e a lidar com sentimentos, me livrando da baixa autoestima. E, principalmente, respeitando os limites, meus e dos outros. A bulimia é uma doença sem fronteiras, você não para de comer, não para de vomitar. Ainda vivo as consequências daquela época: uma gastrite que se apresenta facilmente se meu estômago não estiver forradinho de coisas leves — e que não me permite nenhuma fritura —, dentes megassensíveis e corroídos; uma carreira que começou perto dos 30 — me formei em jornalismo em 2005. Hoje não sou magra. Mas também não sou gordinha. Não virei atriz nem bailarina. Vivo de escrever. Adoro meu corpo, amo minha vida, sou muito grata ao médico que me acolheu. Das poucas vezes que contei para algum amigo que já passei por rehab, ninguém acredita. Felizmente, a imagem que transmito é totalmente diferente de uns anos atrás. E a única coisa que faço sozinha, sem ninguém em casa, é dançar. Coloco música clássica alta e danço até cansar. Algumas vezes, de olhos fechados. Não tenho mais segredos."