• Depoimento a Luíza Karam
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Eu leitora (Foto: Colagem: Pamella Moreno)

Eu, leitora (Foto: Colagem: Pamella Moreno)

"Fazia cinco anos que estava casada e sonhava dar à luz um monte de filhos. Como tudo em minha vida, já havia traçado o roteiro: aquele 2008 seria o ano de engravidar. Eu tinha 28 anos, era louca pelo meu marido (Damian, um tatuador quatro anos mais velho do que eu) e a fase intensa de estudos para passar em um concurso público havia acabado: meses antes, tinha sido aprovada para trabalhar num cartório em Itapema, litoral de Santa Catarina. Seria bom para Damian – na cidade havia poucos tatuadores, ele poderia se destacar no mercado, e também para mim – para uma advogada recém-formada, nascida no interior do estado (em Curitibanos, de apenas 50 mil habitantes), a estabilidade de um cargo público e um escritório na praia pareciam o cenário perfeito para construir uma família.

Antes de suspender o anticoncepcional, passei por um check-up minucioso. Minha saúde estava ótima! Por isso, quando, quatro meses depois, senti as primeiras dores no seio direito, previ boas novas: ‘Sintoma de gravidez’, concluí, correndo para comprar um exame de farmácia. Estranhei não aparecerem os dois tracinhos no teste, mais ainda quando a dor persistiu nos dias seguintes. E foi aumentando...

Não tive escolha senão procurar um mastologista. Foi preciso apenas um ultrassom para ele atestar: havia em minha mama um caroço grande e ‘estrelado’. ‘Entre as categorias do resultado, que vão de 1 a 5, e as suspeitas de malignidade, a partir de A até C, já posso afirmar que você está em 4C’, cravou o médico. Torcendo para ser corrigida, disse: ‘Suspeita quase máxima’. Ele assentiu com a cabeça. Fiquei em choque, sem saber o que pensar ou sentir, e mantive silêncio. Sem derramar uma lágrima, entendi que não haveria tempo para descobrir o porquê daquilo, muito menos para lamentar. Retomei o fôlego. “E como podemos resolver?”, indaguei. O médico disse que teria de retirar um quadrante da minha mama e encaminhá-lo para biópsia, para, a partir dali, definir o tratamento. Mas já adiantou que, o quanto antes, eu teria de colocar um DIU de cobre – se estivesse doente, uma gravidez atrapalharia o tratamento. Naquela mesma tarde, passei pelo procedimento. Deitada na maca, enquanto inseria o DIU, me ocorreu que o que eu sentia naquele momento talvez fosse o substituto da dor do parto que eu nunca sentiria. E como me doeu! Chorei, enfim.
Em casa, Damian recebeu a notícia com a mesma serenidade que eu. Foi muito amoroso, disse que ficaria ao meu lado o tempo todo. Quando eu falei que muito provavelmente cairia todo o meu cabelo, ele brincou: “Vamos fazer uma tattoo linda na sua careca”. Saí de casa cheia de esperança.

Em menos de um mês, as suspeitas se confirmaram: teria de tirar um câncer avançado, que se espalhava com rapidez pelo meu corpo – e cujo tratamento me deixaria estéril (a químio diminui os hormônios que produzem óvulos saudáveis). Por causa da metástase, retiraria a mama toda mais os gânglios linfáticos da axila. Agendei a operação para dali a quatro dias. Nem sequer teria tempo para digerir a notícia ou refazer os planos... Não haveria mais filhos na minha história. Só me restava a certeza do apoio e afeto do meu amor.

A cirurgia foi tranquila. Com tantos remédios, mal senti dor quando acordei da anestesia. No lugar da mama direita, eu tinha agora uma prótese expansora: a cada 60 dias, os médicos injetariam soro por meio de uma válvula, na lateral; em seis meses, ela estaria cheia, imitando o volume do meu seio esquerdo, mas seria dura tal qual uma laranja. Não me impressionei com isso e fui tão acolhida por todos que a mastectomia não me abateu. Pensava que, assim que recebesse alta, pegaria mais firme na academia – quem sabe compensasse aquela lacuna com um corpo supersarado?

Não demorou até eu perceber que levaria tempo para conseguir voltar à rotina fitness. Por causa do corte da cirurgia, que tomou uma área considerável do meu braço, meus movimentos sofreram certa limitação. Além disso, ainda tinha pela frente todas as sessões de químio e radioterapia.

Foram quase cinco meses da chamada quimioterapia vermelha, a dos piores efeitos colaterais, das náuseas à queda do cabelo. Na primeira vez, não encontrei forças nem para abrir os olhos. Tive enjoos seguidos, passei muito mal. Mas valeu a pena. A partir dali, passei a me concentrar exclusivamente na minha saúde. Cada vez mais fraca, destruída depois de cada sessão, procurei abstrair totalmente o fato de ter ficado careca e sem sobrancelhas, parei de pensar nos filhos que não teria, na academia, e foquei na recuperação. Para minha surpresa, a doença me trouxe uma excitante sensação de vida nova.

Nesse período, também fui para a terapia. Ali entendi que todo esse processo me levara a uma ‘reprogramação psíquica’, que o câncer havia mudado minhas prioridades. Acima de tudo, eu me preocupava agora em estar bem e aproveitar a vida. Mas sentia que precisava externar aquilo na prática.

Por indicação de amigos, me matriculei na escolinha de surfe da praia. Mas eu não tinha intimidade alguma com o mar. É completamente diferente ser banhista e estar no outside, depois da última rebentação, onde é preciso paciência e atenção para coordenar os movimentos. Se as mulheres têm cuidado com o biquíni, eu precisava ter em dobro: qualquer deslize exporia minha cicatriz – e toda a minha história. Tinha muita dificuldade com o braço direito, mas, mesmo com dor, às vezes frio e vergonha do pessoal na areia, insisti. Me sentia compensada pela endorfina.

Passados alguns meses, eu tinha acabado de comemorar 11 anos de casada, já havia superado a ausência dos filhos, passado por algumas promoções no trabalho e, aos poucos, via alguma evolução no surfe e na retomada da rotina de exercícios. Estava recuperada, apesar da medicação preventiva e dos exames frequentes. Minha vida estava perfeita. Só que naquele 12 de junho tive que trabalhar. Damian avisou que sairia com os amigos, mas, como era Dia dos Namorados, havia comprado um lindo presente para mim: quando cheguei em casa, vi um cartão cheio de declarações acompanhando um pacote – que nem tive tempo de abrir. Por mensagem de celular, uma amiga me enviou a foto de meu marido com outra mulher. De repente, tomou conta de mim uma sensação de desespero e impotência, como se perdesse o equilíbrio. Aos prantos, encaminhei o retrato a ele e pedi que viesse me encontrar. Assim que chegou em casa, assumiu que mantinha aquele caso havia meses. Não entrou em mais detalhes, pediu desculpas e foi embora. Sem nunca mais aparecer – assim mesmo, como se mais de uma década de relacionamento se esvaísse num estalo.

Naquele término brusco, foi como se a tal reprogramação psíquica tivesse entrado em pane. Não encontrava motivação para nada além do cobertor e da luz apagada. Pedi uma licença no trabalho e passei a dormir dia e noite, completamente deprimida. Nas poucas vezes em que trocamos mensagens, foi para organizar os trâmites da separação. Coloquei as coisas dele numa mala e mandei entregar no endereço que ele me passou. Assinamos o divórcio no mês seguinte. Era o fim do maior vínculo que havia tido até então e, mais uma vez, me entreguei à tristeza e à desilusão.

Passei mais um mês todo quase sem ver a luz do dia. Até que, na manhã de um sábado de setembro, alguns amigos se juntaram para me telefonar. Insistiram tanto que me deixei convencer a ir à praia. Queriam que eu voltasse às aulas de surfe. “Vai te fazer melhor!”, disseram. Com a sensação de que eu não tinha mais nada a perder, topei. Desanimada, assisti às instruções na escolinha, ainda na areia, como se estivesse recomeçando do zero. Repeti os movimentos que já sabia fazer e tentei disfarçar a vontade de chorar. Lá estava ela: a velha dor no braço direito. Surpreendentemente, aquele incômodo foi me fazendo sentir melhor, me relembrou de que eu já havia passado por tanta coisa... e superado. Despertou um friozinho na barriga. Me mandaram pro mar. Em alguns minutos, a tristeza e todo o resto se dissiparam nas ondas. Eu estava feliz, não pensava em mais nada.

Aquela sensação de tranquilidade fez mais sentido que nunca. Resolvi que passaria a treinar diariamente. Fizesse chuva ou sol, eu acordava às 6h30; corria na praia; fazia aulas de fortalecimento muscular, equilíbrio, respiração; caía no mar e pegava ondas até dar a hora do trabalho. Assim, fui ficando mais forte, as dores diminuíram, e consegui finalmente focar no melhor daquela experiência. A sensação do mar batendo na cara, o sol refletindo, o bem-estar que dava subir direitinho na prancha... Era a realização de (mais) um sonho. Fui entendendo que, assim como a vida, o surfe compensa: havia dias em que só tomaria caldo, que estaria frio, apanharia do vento; noutros, conseguiria dropar [pegar a onda da crista até a base], aproveitar cada segundo daquela sensação de liberdade. O preço era justo.
Depois de um câncer, ainda que se tenha feito tratamento, para sempre seus exames apresentarão algum ‘nível tumoral’ – na linguagem médica, a probabilidade de a doença voltar. Hoje, o meu caso é estudado no mundo todo porque meu nível tumoral é inferior ao das pessoas que nunca tiveram câncer. Minha predisposição a um tumor é menor do que a média. Os médicos atribuem essa evolução à prática física, que reverbera nos hormônios, no corpo, no funcionamento cerebral. O surfe foi o empurrão que faltava para me ver livre de minhas limitações. Naquela nova rotina, não havia espaço para choro ou reclamações. Não só dentro d’água, minha vida foi voltando a acontecer.

Para me dedicar mais ao esporte, abri mão do salário gordo e me mudei para Balneário Camboriú. Também pelo surfe conheci gente maravilhosa, com quem me relacionei e senti a liberdade de dividir minha história. Tive quatro namorados depois do meu ex. A parte sexual, no início de cada relação, é mais delicada, claro. Para não ter de parar de surfar, nunca troquei minha prótese. Também não refiz minha auréola. Por isso só tiro o sutiã para tomar banho, mas isso nunca foi um limitador. Pelo contrário, meu seio esquerdo é tão bonito que aprendi a desviar a atenção para ele.

Há quatro meses, comecei a namorar Paulo, um shaper brasileiro de 50 anos reconhecido mundialmente. Acabamos de voltar de Punta de Lobos, um dos maiores picos de surfe do Chile, cheio de golfinhos e leões-marinhos. Sou a primeira diretora da ala feminina da Associação de Surfe de Balneário Camboriú. É um trabalho voluntário, para abrir frentes para as surfistas. O esporte que salvou minha vida pode ajudar muitas outras. Essa é a minha onda.”