• Adriana Ferreira Silva
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Abre - Mulheres de 22 (Foto: reprodução)

Patrícia Galvão, Anita Malfatti, Benjamin Peret, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Elsie Houston, Álvaro Moreyra e Eugênia Álvaro Moreyra em 1922 (Foto: Instituto Moussia / Acervo MAC-USP/Divulgação)

Quando Tarsila do Amaral e Anita Malfatti revolucionaram o cenário das artes nos anos 1920, as brasileiras não podiam votar (o sufrágio feminino foi garantido em 1932), nem trabalhar sem a autorização do marido, nem tinham direito a herança ou à guarda dos filhos (conquistas de 1962), tampouco estavam aptas a pedir o divórcio (lei aprovada em 1977).

Nada disso impediu que as duas artistas se tornassem as responsáveis pelo fato de o modernismo ser hoje tema de tantos eventos sobre os 100 anos da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo de 13 a 17 de fevereiro de 1922.

Considerada pelo crítico e escritor Mário de Andrade a “iniciadora do movimento artístico moderno no Brasil”, Anita Malfatti (1889-1964) foi quem primeiro chacoalhou a cena, em 1917, ao exibir obras sob a influência de vanguardas europeias como o expressionismo, numa exposição que escandalizou intelectuais como Monteiro Lobato.

Ícone pop do movimento, Tarsila do Amaral (1886-1973) não participou da Semana de 22,  juntando-se ao grupo meses depois para, segundo Mário de Andrade, ser a “primeira que conseguiu realizar uma obra de realidade nacional”, graças a uma “brasileirice imanente”, com destaque para o “caipirismo de formas e de cor”.

Tarsila é não só a artista mais cara do Brasil – em 2020, seu quadro A Caipirinha foi leiloado por R$ 57,5 milhões –,  como também referência para produções que vão da moda ao cinema (a exemplo da animação Tarsilinha, que estreia em 10/2).

Anita Mafalti em 1912, Noemia Mourão e Moussia Pinto Alves em 1967 (Foto: Reprodução)

Anita Mafalti em 1912, Noemia Mourão e Moussia Pinto Alves em 1967 (Foto: Instituto Moussia / Acervo MAC-USP/Divulgação)

Mas elas não eram as únicas. A mineira Tereza Aita (1900-1967), conhecida como Zina, e a paulista Regina Gomide Graz (1897-1973) também participaram do evento no Teatro Municipal, mas quem hoje ouviu falar delas?

“Zina é uma ilustre desconhecida, muito porque, em 1924, ela foi morar em Nápoles [Itália], onde montou uma fábrica de cerâmica”, revela Regina Teixeira de Barros, uma das curadoras da mostra sobre modernismo que ocupou o Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2021.

“Sabemos pouco de sua produção, mas eram criações supermodernas, porque Zina estudou belas-artes em Florença numa época em que seus professores estavam renovando o modernismo. Sua obra tem características do futurismo tanto no tema quanto na técnica.”

Abre - Mulheres de 22 (Foto: Divulgação / INSTITUTO MOUSSIA / ACERVO MAC USP)

Obra O Pão Nosso de Cada Dia, de Anna Bella Geiger (Foto: Instituto Moussia / Acervo MAC-USP/Divulgação)

Abre - Mulheres de 22 (Foto: Divulgação / INSTITUTO MOUSSIA / ACERVO MAC USP)

Anna Bella Geiger (Foto: Instituto Moussia / Acervo MAC-USP/Divulgação)

Abre - Mulheres de 22 (Foto: Divulgação / INSTITUTO MOUSSIA / ACERVO MAC USP)

Fayga Ostrower em 1956 (Foto: Instituto Moussia / Acervo MAC-USP/Divulgação)

Se Zina Aita “desapareceu” da história da arte brasileira por ter deixado o país, Regina Gomide Graz foi ofuscada pela parceria com o marido, o suíço John Graz, que ela conheceu quando estudava arte na Suíça.

“Não temos certeza se Regina expôs ou não porque o nome dela não está no catálogo da Semana de 22, mas há indícios de que esse material não inclui todos que participaram, como é o caso de [Oswaldo] Goeldi”, diz Regina.

“Suspeitamos que ela tenha exposto porque, nos anos 1960, a [curadora] Aracy Amaral entrevistou um dos artistas, Yan de Almeida Prado, que desenhou a posição das obras no saguão do Municipal, mostrando que havia um quadro do casal Regina e John Graz.”

Irmã do também artista Antonio Gomide, Regina Gomide Graz trabalhava com o marido, que desenhava vitrais, luminárias, maçanetas, varões e outros itens que modernizaram as casas da burguesia. A Regina cabia a parte “feminina”: transformar os protótipos de John em tapeçarias, almofadas etc. “Mas isso é o que diz a história da arte, que ela executava projetos do marido, como se não tivesse poder criativo próprio”, fala a curadora.

Mais ou menos (re)conhecidas, essas pioneiras não fizeram escola. Pelo menos não naquele momento. Entre os motivos para isso está o fato de pertencerem à elite: à exceção de Anita, de uma família de classe média e que estudou na Alemanha graças ao patrocínio de um tio, as outras frequentaram escolas europeias, realizaram mostras internacionais e tiveram aulas com criadores como o francês Fernand Léger, caso de Tarsila do Amaral.

"Nos anos 1920, estamos num país muito mais patriarcal, onde as mulheres eram tratadas como propriedade. Elas são exceções: Tarsila ficou conhecida por seu trabalho e não por ser ‘a mulher do Oswald [de Andrade]’. Aliás, ela se casou mais de uma vez. E Anita era solteira. Estavam fora dos padrões."

Heloisa Espada, curadora do Instituto Moreira Salles
Tarsila do Amaral na Inglaterra no início da década de 20; Anita Mafalti em Veneza; Maria Martins em seu ateliê em Paris (Foto: Instituto Moussia / Acervo MAC-USP/Divulgação)

Tarsila do Amaral na Inglaterra no início da década de 20; Anita Mafalti em Veneza; Maria Martins em seu ateliê em Paris (Foto: Instituto Moussia / Acervo MAC-USP/Divulgação)

Por isso, foram décadas ainda para outras se destacarem. “Nos anos 1930, por exemplo, nossa historiografia da arte continuava muito masculina”, explica Regina Teixeira de Barros.

“Existiam mulheres como Noemia Mourão, grande desenhista que ficou à sombra do marido, Di Cavalcanti; Moussia Pinto Alves, Maria Martins e Fayga Ostrower. Aos poucos, vão sendo vistas e comentadas, mas, até alcançarem o status de seus contemporâneos, ainda leva um tempo”, diz Regina.

Mas, ainda que não tenham deixado aprendizes, a brasilidade alardeada por Mário de Andrade na produção de Anita e Tarsila impregnou todas as esferas da arte, como mostra Brasilidade Pós-Modernismo 2022, exposição em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, que pontua esse legado.

"Estamos falando da atualidade, resultado de vestígios, traços e ideias almejados em 1922. A própria Semana de 22 não foi um único fator, pois estava num contexto ligado às raízes eurocentristas. Buscava-se já naquela época uma autonomia do idioma português, de linguagens estéticas e de uma produção. Não apresentamos um legado aqui, mas um processo."

Tereza de Arruda, curadora

Entre as artistas que sintetizam essa evolução estão mulheres que atuaram sob a influência da revolução feminista da década de 1960 – esse, sim, um movimento que deixou herdeiras –, superando não só a falta de acesso às instituições como a necessidade de se desdobrar entre o trabalho e a família, caso da carioca Anna Bella Geiger, hoje com 88 anos.

“Anna Bella trata de questões globais criando dentro de um universo trivial, a exemplo da colagem que exibimos, de 1977, com fotografias que comparam sua realidade com a de povos originários. Como é casada, mãe de quatro filhos, ela tinha dificuldade para produzir na década de 1970, então fez tudo na cozinha de casa, representando seu entorno”, explica a curadora, Tereza de Arruda.

Das criadoras influenciadas pelo modernismo, há a carioca Beatriz Milhazes, cuja obra é marcada pela exuberância tropical que remete à obra de Tarsila, não por acaso uma de suas influências.

“Tenho um triângulo de referências principais para o desenvolvimento da minha pintura: Matisse e o modernismo europeu; Tarsila do Amaral, que estudou na Europa e, ao retornar ao Brasil, se uniu ao pensamento antropofágico, alimentando-se de outras culturas; e Mondrian, na ideia de construção e criação de uma nova ordem de sistemas no plano da pintura”, revela Beatriz.

Abre - Mulheres de 22 (Foto: VICENTE DEPAULO / REPRODUÇÃO / DIVULGAÇÃO / INSTITUTO MOREIRA SALLES)

Obra da carioca Beatriz Milhazes é marcada pela exuberância tropical que remete à obra de Tarsila, não por acaso uma de suas influências (Foto: Vicente Depaulo/Instituto Moreira Salles/Reprodução)

Contraponto

Se alguns dos processos iniciados pelas modernistas reverberam até hoje, o movimento inspira também reavaliações e contrapontos, como no trabalho da maranhense Gê Viana, cujas obras em cartaz no CCBB fazem referência à sua ancestralidade.

Em depoimento em vídeo à instituição, ela protesta: “A partir deste centenário, é importante começar a remodelar essa história: cadê os artistas indígenas, os negros da Semana de 22?”.

Vênus Revisitando Abaporu, de Val Souza, obra que integra a série Lembrança à Brasileira, Uma Seleção Pitoresca de Imagens (2021), parte do projeto Bolsa de Fotografia ZUM/IMS 2020 (Foto: Vicente Depaulo/Instituto Moreira Salles/Reprodução e Divulgação)

Vênus Revisitando Abaporu, de Val Souza, obra que integra a série Lembrança à Brasileira, Uma Seleção Pitoresca de Imagens (2021), parte do projeto Bolsa de Fotografia ZUM/IMS 2020 (Foto: Vicente Depaulo/Instituto Moreira Salles/Reprodução e Divulgação)

Além da falta de representatividade, o fato de ter sido um movimento com integrantes da elite, como Tarsila e Oswald, coloca em dúvida representações realizadas por eles. “Para mim, não existe modernismo no Brasil”, diz a paulista Val Souza, artista multidisciplinar e bolsista do IMS.

“A ideia modernista brasileira é uma atualização das viagens das missões artísticas franco-germânicas, que trouxeram em sua maioria homens brancos europeus, como Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas”, diz ela.

"As imagens dos modernistas atualizam as feitas por franco-germânicos, seja no gesto, seja nas poses. Além disso, eles vinham de uma elite cafeeira que explorava corpos negros e cujas referências europeias eram cheias de exotismo. É importante entendermos essas múltiplas camadas raciais, sociais e culturais."

Val Souza, artista multidisciplinar


Val chegou a essas conclusões porque pesquisa como se constroem as imagens de mulheres negras desde o século 17. Um dos resultados desse estudo é uma série de autorretratos de Val, em diálogo com obras de Di Cavalcanti e Tarsila.

“Quando comparamos o autorretrato de Tarsila com a pintura A Negra, vemos uma distinção evidente sobre a relação do humano. No autorretrato, as feições são humanas. Em A Negra, isso fica borrado, distorcido”, afirma Val. Isso não quer dizer que ela não reconheça a importância dos modernistas.

“É uma produção que atualiza esse período de descobrimento do mundo novo, de paraíso tropical, e ainda vai dizer muito sobre esse momento brasileiro. Há ideias importantes colocadas ali para entender o país.”

Atualizações Traumáticas de Debret, de Gê Viana (Foto: Vicente Depaulo/Instituto Moreira Salles/Reprodução e Divulgação)

Atualizações Traumáticas de Debret, de Gê Viana (Foto: Vicente Depaulo/Instituto Moreira Salles/Reprodução e Divulgação)

“Caipirinha paulista vestida de Poiret…”

É assim que Oswald de Andrade se refere à companheira Tarsila do Amaral em um verso escrito em 1925. O francês Paul Poiret (1879-1944), um dos estilistas mais desejados do início do século 20, era o criador preferido do então casal mais badalado das artes, que via nas roupas uma maneira de se expressar, como mostra o livro O Guarda-roupa Modernista – O Casal Tarsila e Oswald e a Moda (Cia. das Letras, 288 págs., R$ 109,90), com farta pesquisa de Carolina Casarin, doutora em artes visuais, figurinista e professora. Tarsila mal podia imaginar que, tantos anos após sua morte, ela própria se tornaria referência de grifes como Osklen, Água de Coco e Melissa.

Tarsila do Amaral mal poderia imaginar que, após tantos anos de sua morte, se tornaria referência de grifes como Osklen, Água de Coco e Melissa (Foto: Vicente Depaulo/Instituto Moreira Salles/Reprodução e Divulgação)

Tarsila do Amaral veste Paul Poret; Peças da coleção da Osklen inspirada em Tarsila (Foto: Vicente Depaulo/Instituto Moreira Salles/Reprodução e Divulgação)

*Nota da edição: Na edição impressa desta reportagem, algumas sentenças faziam incorretamente referência ao bicentenário da Semana de 1922. O texto foi corrigido.