• Priscilla Geremias
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Ilustração das artistas francesas Aline e Célia (Foto: Reprodução/Instagram @sacree_frangine)

Ilustração das artistas francesas Aline e Célia (Foto: Reprodução/Instagram @sacree_frangine)

48,5% européia; 45,1% africana; 6,3% americana. Esses são os resultados do meu teste de DNA de ancestralidade. Antes de sair o resultado do teste fui atrás da minha origem, filha de pai negro e mãe branca, conversei com meus avós sobre "da onde vocês vieram". Não há recordações em registros e poucas na memória sobre seus antepassados. “Não tinha foto naquela época”, disse meu avô materno - até tinha, mas não tinha chegado à região da Serra do Cipó em Minas Gerais. O mesmo em Araras, interior de São Paulo, onde nasceu minha avó paterna: “Era tudo moreninho, mas a gente pegava muito sol panhando (sic) café”.

Se você se reconhece dentro dessa trajetória familiar, provavelmente você é negra. “Pessoas brancas crescem ouvindo histórias que seus antepassados vieram da Itália, Alemanha… A gente tem que fazer teste de ancestralidade que custa de R$ 200 a R$ 1000. Vocês têm noção do privilégio que é não precisar pagar para saber suas origens?”, escreveu uma usuária do Twitter.


Essa publicação caiu na minha timeline enquanto aguardava o resultado do meu teste. Sempre quis saber das minhas origens, já imaginava que não poderia seguir com um processo de dupla cidadania europeia, mas se eu pudesse saber algo da minha história, seria pela ciência.
 

Os testes de DNA começaram a se popularizar no Brasil na metade de 2019, mas não entenda popular por acessível. Meu teste foi feito a convite da meuDNA, laboratório pioneiro no uso de sequenciamento genético no país, e custa R$ 499. Embora superinteressante (recomendo a quem puder!), esse valor é fora da realidade de mulheres negras brasileiras, que ganham menos da metade do salário de homens brancos no Brasil.

Para Alessandra Devulsky, advogada, professora e autora do livro Colorismo (Ed.Jandaíra, 208 págs., R$ 24,90), no contexto brasileiro, qualquer maneira de se traçar nossas origens, tanto por meios culturais como por meios biológicos são válidos. “A cultura indígena e africana são fundamentalmente orais. A queima dos documentos ligados à escravidão capitaneada por Rui Barbosa no fim do século XIX foi só umas das maneiras que o Estado brasileiro institucionalizou o ‘apagamento’ das nossas raízes, de modo que os recursos teconlógicos disponíveis podem amenizar o que se tornou uma política pública de desenraizamento de uma parcela muito importante da nossa história”, explica.

Alessandra Devulsky, advogada, professora e autora do livro Colorismo  (Foto: Divulgação)

Alessandra Devulsky, advogada, professora e autora do livro Colorismo (Foto: Divulgação)


Alessandra também fez o teste de ancestralidade. “Ganhei como presente de Natal de uma grande amiga franco-beninense, Abikè Yacoubou, advogada e pesquisadora da Universidade de Montreal, que desde a primeira vez que me viu no campus jurava de pés juntos que eu tinha sangue beninense. Ficamos muito amigas, e a brincadeira entre nós virou aposta. Finalmente, o exame confirmou o que ela dizia sempre: eu tinha muitos ancestrais da região do Benin”, revela.

Chega a ser emocionante recuperar nossa história, apesar de não ter dúvidas sobre minha negritude, poderia um teste ancestral definir que eu não sou negra? A intelectual afirma que isso não define raça. “Considerando que o pertencimento racial envolve também fatores sociológicos e culturais, sendo tributário do modo pelo qual o genoma se expressa no fenotipo do indivíduo. Sendo assim, eu diria que em virtude desse contexto histórico a que me referi, o exame pode ser de muita valia”, explica.

Mas então o que define raça? Alessandra afirma que depende do projeto de colonização de cada país, já que a constituição racial dos indivíduos é uma construção cultural. “No Brasil, o fato do casamento interracial não ter sido objeto de proibição, mas que as expressões religiosas de matriz africana, ou culturais como a capoeira tenham sido interditas, revela que o caso brasileiro evoca um apartamento racial insidioso que se funda na cultura; no apartamento de negros dos espaços; no encarceramento em massa de negros como modo de controlar a população residente em favelas e periferias. A etiqueta racial no Brasil é sempre apontada pelo outro, de maneira que a substância cultural no qual os indivíduos são socializados faz parte desse processo de identificação. O pertencimento racial não é um ato volitivo, é uma imposição em uma sociedade racializada”.

Priscilla Geremias com 1 ano de idade e atualmente, aos 27  (Foto: Arquivo pessoal)

Priscilla Geremias com 1 ano de idade e atualmente, aos 27 (Foto: Arquivo pessoal)


Me encontro nas palavras de Alessandra. Demorei para tornar-me negra, me redescobri aos 21 anos, com as novas imposições colocadas sobre mim em um ambiente universitário, mercado de trabalho e um processo de pertencimento durante a transição capilar e quando passei a entender o colorismo. O termo foi cunhado por Alice Walker, nos Estados Unidos, no começo da década de 1980, e diz  respeito à necessidade de se estabelecer critérios para dizer quem é branco e quem não é.

“O colorismo é o elefante na sala de estar na casa de toda família brasileira que todo mundo sabe que está lá, mas sobre o qual é difícil de falar. Um elefante toma espaço, impede a circulação da conversa, por isso é importante nomeá-lo para que possamos finalmente conversar sobre algo que afeta nossas relações no espaço público e no espaço privado. O racismo é baseado em um falseamento de superioridade racial de um grupo sobre o outro, na criação de políticas públicas que reforçam disparidades socioeconômicas com base na ideologia racial. O colorismo responde a essa necessidade de hierarquizar os indivíduos, de organizar o espaço público segundo critérios atinentes a essas ideia/práticas de superioridade branca. Em um país altamente miscigenado, de maioria negra, o colorismo é uma chave importante de compreensão das nossas estruturas raciais”, explica Alessandra.

Um passo para tirar o "elefante da sala" é buscar conhecimento racial, seja da sua negritude ou branquitude. "Por muito tempo, tempo demais, as pessoas – muitas vezes até bem intencionadas –, preferiam evitar falar em racismo. A recusa a essa conversa também estava fundada no problema que é reconhecer o privilégio branco. De fato, essa conversa implica reconhecer a dominação racial que tem como repercussão um privilégio adquirido e exercido por pessoas lidas como brancas. Entender no que consiste ser branco em 2021, em um país no qual a pobreza e a vulnerabilidade tem cor, repercute no exercício desse privilégio, no questionamento das suas causas", diz Alessandra.

"A ideia de negritude surge com Senghor, Damas e Césaire, intelectuais ligados à diáspora africana sob o jugo do colonizador francês, justamente para responder ao esmagamento das identidades negras sob opressão colonial de cunho racial. A ideia de negritude, ao contrário do que consiste o aparato da superioridade branca, arroga-se somente o desejo de igualdade, e não de dominação. De maneira bastante similar ao feminismo, que coloca a mulher em posição de igualdade ao homem, sem arrogar-se uma posição superior, a negritude torna-se uma categoria que evoca a ideia de igualdade material, que leva em consideração o passado colonial. A negritude é uma reação à dominação racial que não visa ocupar o espaço de quem explora ou domina, mas tão-somente instaurar a tão sonhada igualdade racial."