• Bianka Vieira
Atualizado em

De um lado, mulheres que, nos anos recentes, se conciliaram com seus ciclos e agora veem na menstruação autoconhecimento. Do outro, aquelas que escolheram dar um adeus (quase) definitivo à cólica, à TPM, aos inchaços e sangramentos mensais. Como outros tabus que foram revistos após a eclosão dos movimentos feministas – e aí considere a chegada da pílula anticoncepcional no mercado, no início dos anos 1960 –, a menstruação deixou de ser uma conversa que só pode ser tida ao pé do ouvido e foi alçada ao debate público. Como era de se esperar, fez nascer inquietações e divergências não somente entre as mulheres, as maiores interessadas, mas entre a comunidade médica. É preciso mesmo menstruar todo mês?

Menstruação (Foto: Ilustração Raquel Thomé)

Menstruação (Foto: Ilustração Raquel Thomé)

A pergunta volta a ser posta à mesa graças à ginecologia natural, corrente que ganhou campo com os partos humanizados e se fortaleceu com a onda de sagrado feminino dos últimos tempos. Alguns livros coroam o momento. Viva a Vagina (Pararela, 312 págs., R$ 44,90), das educadoras sexuais norueguesas Nina Brochmann e Ellen Støkken Dahl, e Ask Me About My Uterus (em tradução livre “Pergunte sobre o meu útero”, ainda sem publicação no Brasil), da norte-americana Abby Norman, são dois bons exemplos que incluem em seus questionamentos a necessidade ou não da menstruação.

Dos 14 aos 28, a historiadora e cineasta Daniella Talarico, 34, teve uma “relação bélica”, descreve, com o próprio ciclo. “Odiava menstruar com todas as forças. Para mim, era sinônimo de alergia, cheiro ruim, sujeira e produção de lixo por causa dos absorventes”, lembra. As pazes com a menstruação ocorreram após a decisão de engravidar, quando começou a praticar a percepção de fertilidade (ou a tradicional tabelinha). E teve um detalhe importante: na época, trocou o absorvente pelo coletor menstrual. “Veio um contato diferente com meu sangue. Via a cor, sentia a temperatura e tinha enfim noção do quanto sangrava. Depois do copinho, passei a sentir o corpo de um jeito novo e perceber o quanto o ciclo diz sobre mim.”

A estudante de fisioterapia Lorena Olliveira, 23, não pode dizer o mesmo. “É difícil lidar com a cólica menstrual e os seios doloridos. Também tem o fato de que tenho enxaqueca, enjoo, tontura e costumo sangrar por cerca de dez dias. Menstruar sempre foi um verdadeiro pesadelo”, conta. Não à toa, há um ano, desde que decidiu tomar a pílula de modo contínuo, tudo passou. E isso, garante, “nada afeta” a relação com seu corpo. “Vivo como uma mulher que não menstrua e estou bastante satisfeita assim.” 

Como no caso da estudante, a menstruação para algumas mulheres é sinônimo de sofrimento e mais nada. Uma pesquisa divulgada em 2017 pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, a Febrasgo, mostrou que 55% das brasileiras prefeririam não precisar passar por isso e, dentre as 2.004 ouvidas, 15% já faziam uso de medicamentos para não sangrar. Outro levantamento, feito em 2014 pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com mulheres entre 18 e 40 anos nas cidades de São Paulo, Campinas (SP), Porto Alegre (RS), Recife (PE) e Belém (PA), mostrou que 65% das entrevistadas “detestam” menstruar. O principal motivo é o desconforto, envolvendo cólicas, inchaço e alteração de humor.

Mas se menstruar quando se bem entende é uma conquista no âmbito dos direitos reprodutivos das mulheres, abrir mão por completo dessa experiência significa estar alheia aos processos naturais dos nossos corpos, correndo o risco de ocultar sintomas, inclusive de doenças, que poderiam demonstrar? Há quem acredite piamente que sim. Há quem deboche dessa teoria. Vamos aos lados.

Interromper ou não interromper, eis a questão
Para dois dos quatro especialistas ouvidos por Marie Claire, suspender a menstruação, seja por alguns meses ou até cinco anos ininterruptos (dá pra fazer isso com o DIU de Mirena, por exemplo), é não só uma medida válida como segura. “Menstruação é um endométrio que está descamando devido à privação de hormônios causada por uma não fertilização do óvulo. A mulher que não está tentando engravidar não precisa passar por esse efeito fisiológico”, diz Rodrigo da Rosa Filho, ginecologista e obstetra membro da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Estado de São Paulo (SOGESP).

Elsimar Coutinho, ginecologista e autor de Menstruação: a sangria inútil (ed. Gente, 216 págs., R$ 39,90), livro de posicionamento polêmico sobre a menstruação e “sua real necessidade”, é mais radical. Segundo ele, que estuda o tema há cinco décadas e teve a tese em defesa do fim da menstruação reconhecida mundo afora, trata-se de “uma sangria inútil e ainda uma invenção da sociedade civilizada”. 

Menstruação (Foto: Ilustração Raquel Thomé)

Menstruação (Foto: Ilustração Raquel Thomé)

“Nos tempos das nossas avós e bisavós, as mulheres menstruavam poucas vezes na vida, nem 1/10 do que uma mulher pode hoje”, explica. Ou seja, enquanto elas sangravam 40 vezes em uma existência toda, você, no mesmo período, deve menstruar cerca de 400. É simples calcular o tamanho da diferença. No século passado, a maioria da população feminina em fase reprodutiva quando não estava grávida, estava amamentando. E quando não estivesse em nenhuma das condições, estava pronta para gestar novamente. Nota: se está grávida, a mulher não menstrua; se está amamentando, em geral também não (porque não produz estrogênio). Como as mulheres de gerações passadas engatavam uma gravidez na outra, quase não sobravam intervalos para menstruar. Sangrar todo mês era algo inimaginável. 

Olhando por esse lado, a menstruação mensal foi um fenômeno que “surgiu” com a mulher moderna, que não se restringe apenas a parir. Mas o ginecologista vai além e entende que para essa mulher, inserida no mercado de trabalho e que não enxerga na maternidade e no ambiente doméstico seus únicos destinos, a ideia de menstruar mensalmente é não somente “inútil”, mas “maléfica”. “Sangrar afasta as mulheres de uma vida plena, sem dores ou limitações, e traz incômodos periódicos e até mesmo doenças.” De acordo com ele, endometriose, anemia e até câncer de mama estão ligados ao sangramento mensal. Apesar de polêmica, e por isso questionada por alguns profissionais, a teoria é bastante difundida na medicina.

Sangre, por favor
Enquanto nos consultórios de Rodrigo e Elsimar a procura por métodos para interromper o fluxo seja constante, nos das ginecologistas e obstetras Aline Calixto e Ana Thais Vargas, ela avança no sentido inverso. Suas pacientes preferem manter a menstruação. “Há tempo existem teses de que os hormônios usados para paralisar o sangramento modificam os ciclos, o humor e o organismo. Eles tiram a naturalidade dos processos do corpo”, diz Aline, que enxerga na menstruação um termômetro natural de bom funcionamento do organismo feminino que deve ser mantido – a não ser, é claro, em casos onde há riscos para a saúde, como quando a mulher tem um ciclo muito longo, hemorragias, anemia, endometriose e distúrbio de coagulação. “Aí se torna deletério menstruar”, continua.

Menstruação (Foto: Ilustração Raquel Thomé)

Menstruação (Foto: Ilustração Raquel Thomé)

“O ciclo menstrual é parte da fisiologia da mulher e uma maneira que o corpo tem de renovar os ciclos, regulados por um mecanismo integrado de órgãos reprodutores, glândulas e sistema neurológico. Não consigo imaginar quais riscos a menstruação mensal, em quantidades normais e aceitáveis de sangue e com cólicas moderadas, pode acarretar”, questiona Ana Thais. Dessa forma, menstruar acaba sendo muito mais que um indicador para você saber se está grávida. Até porque deixar de sangrar naturalmente pode sinalizar alguns males, como cistos e DSTs. “E você só consegue perceber esses sinais se está em um ciclo natural. Ter domínio dos nossos processos é integrador da gente mesma”, diz.

A única convergência entre as fontes médicas ouvidas aqui é a de que parar de sangrar ou não deve depender da escolha de cada mulher. Afinal, prescrever um modus operandi para o ciclo menstrual de todas seria impossível e um movimento contrário à emancipação feminina conquistada nas últimas décadas.

Questão de gênero
Aline e Ana Thais, que não são necessariamente pró-suspensão, ainda levantam a bola de que interromper ou não a menstruação é uma questão mais de gênero do que propriamente médica. Ana Thais diz que o movimento pela interrupção endossa um pensamento que faz mulheres pensarem que seu sangue é sujo – a ideia teria origens comportamentais e seria revestida por motivações comerciais. “‘Para que estar à mercê de sensações e sintomas todo mês se você não produz a mesma coisa que um homem? Iguale-se a um homem. A menstruação fragiliza você’, eles dizem.”

Controlar o ciclo menstrual de tal maneira seria uma forma de controlar as mulheres, acredita Aline. “Parte de nossa sociedade vê na TPM e na menstruação histeria, vulnerabilidade, mimimi e motivo para fazer das mulheres menores. Então vêm os hormônios para bloquear tudo isso. Mas hormônios têm consequências. Muda de forma artificial o humor da mulher, diminui a libido absurdamente, a afasta do natural. Tenho pacientes que, após abandonarem os remédios, tiveram a vida sexual restaurada. Até mesmo se viram outras pessoas.”

E se eu quiser interromper, qual é o caminho?
Os métodos disponíveis são todos hormonais. E além dos contraceptivos orais, há o DIU, anticoncepcionais injetáveis trimestrais e implantes contraceptivos subcutâneos, com duração de três anos. A maioria das pílulas, o método mais usual e barato, funciona com dois hormônios: um estrogênio e uma progesterona. O efeito anticoncepcional está na progesterona. Existem pílulas só de progesterona e com elas é possível interromper a menstruação. Funcionam de modo contínuo.

O que pode acontecer com meu corpo se decido interromper?
Os anticoncepcionais hormonais tendem a baixar a libido. Mas você pode esperar também, dependendo da progesterona que vai tomar, uma diminuição do inchaço no corpo e uma melhora na oleosidade de pele e cabelo. TPM, cólica e alteração de humor e outras sensibilidades emocionais devem ser atenuadas. E, ao contrário do que muita gente pensa, usar hormônios de forma contínua não têm impacto algum na fertilidade.

“A partir do momento em que a mulher para, a chance de gravidez é igual à de uma mulher que usa outro método contraceptivo sem hormônio, como o preservativo”, explica Rodrigo. “Não faz sentido achar que usar por muito tempo vai comprometer a fertilidade. Se o risco de engravidar é esquecer uma pílula, e se você precisa tomá-la todo dia, é porque ela não estará mais no seu corpo a partir de 24 horas”, diz Ana Thais.

Menstruação (Foto: Ilustração Raquel Thomé)

Menstruação (Foto: Ilustração Raquel Thomé)

Os especialistas ainda alertam que, seja para interromper a menstruação ou não, hormônios sempre têm seus riscos. Trombose, alteração hepática e renal, diabetes e aumento da glicemia e do colesterol. É por isso que nem toda mulher pode interrompê-la e se faz imprescindível consultar um ginecologista antes de embarcar em qualquer método.