• por Manuela Azenha
Atualizado em
Carla Gobel  (Foto: Divulgação CTC/PUC-Rio)

Carla Göbel no CERN (Foto: Divulgação CTC/PUC-Rio)

A cem metros debaixo da terra, na fronteira entre a França e a Suíça, situa-se a mais complexa máquina já criada. Trata-se do Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), o maior laboratório de partículas do mundo, em um túnel de 27 quilômetros de extensão, da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN).

E pela primeira vez na história, uma brasileira faz parte da Coordenação Geral de Física de um dos experimentos feitos ali, como coordenadora adjunta. Essa cientista é Carla Göbel, 53, professora e pesquisadora do Departamento de Física do Centro Técnico Científico da PUC-Rio, que assumiu o cargo em agosto para um mandato de dois anos.

Dentro do túnel, a uma temperatura de -271 graus °C (estrutura mais gelada que existe), feixes com bilhões de prótons, partículas de átomos, são lançados na velocidade da luz para colidir uns com os outros e explodirem em uma chuva de novas partículas. O objetivo dessa sofisticada operação é estudar as partículas fundamentais e suas interações, ou seja, os menores elementos que existem na natureza.

“Em última instância, queremos entender por que as coisas são como são, a matéria, as forças. E aí você me pergunta: ‘Muito lindo tudo isso, mas para que serve?’”, provoca Carla, em conversa por videoconferência com Marie Claire.

LHCb  (Foto: Divulgação)

Experimento LHCb (Foto: Divulgação)

“Você usa celular? Todos os avanços tecnológicos que temos hoje são subprodutos da pesquisa de pessoas que ficaram se perguntando por que as coisas são como são. A pesquisa básica não é feita para ter uma aplicação. Eletricidade, magnetismo, tudo que descobrimos foi nos perguntando ‘por quê’? A partir desse entendimento criamos aplicações práticas para isso. Para que saber que os elétrons são nuvens? Não existe celular ou semicondutores sem mecânica quântica. Sem a teoria da relatividade geral, o GPS não te daria a localização exata”, argumenta.

Nos últimos 70 anos, diversas descobertas científicas foram realizadas no CERN, incluindo três que levaram o prêmio Nobel a seus pesquisadores. A World Wide Web (o famoso “www” que nos conecta a páginas da Internet), por exemplo, foi criada ali,  inicialmente como um sistema de comunicação entre computadores. O laboratório também tem um centro de estudos de tratamentos oncológicos.

+ Para Mulheres na Ciência: prêmio busca o equilíbrio de gênero no meio científico

Ao longo do túnel do LHC, por onde esses prótons circulam, há quatro grandes experimentos. Um deles é o LHCb,  com quase 1.500 membros, entre alunos, professores, técnicos e pesquisadores, e 89 instituições parceiras, de 19 países. Os resultados das colisões de cada experimento são coletados, analisados e por fim as descobertas físicas são publicadas em revistas internacionais. A Coordenação Geral de Física do LHCb, da qual Carla faz parte, é a responsável última pela qualidade das publicações, acompanhando os diferentes grupos de trabalho.

A pesquisa dos cientistas é feita de forma remota, ao redor do mundo. As colisões acontecem no laboratório e os dados são compartilhados virtualmente.

Após 12 anos de negociações, em maio deste ano o Brasil assinou um acordo de adesão para tornar-se membro do CERN, tratado que ainda passará por aprovação do Congresso. O país terá de contribuir financeiramente com os custos operacionais do centro europeu e, em contrapartida, poderá intensificar o intercâmbio de pesquisadores e ter empresas brasileiras contratadas para fornecer equipamentos necessários nos experimentos.

+ Para Natalia Pasternak, ciência vai muito além da vacina: "Chamada para a realidade"

Carla desenvolve pesquisas no experimento LHCb desde 2006, e foi chamada para ser adjunta pela Coordenadora de Física, a francesa Yasmine Amhis, primeira mulher a ser eleita para o cargo. “Ela me convidou e eu aceitei, mas morrendo de medo”, conta a brasileira. “É um desafio imenso, e muita responsabilidade. E, claro, há uma visibilidade como mulher e brasileira, e fica essa sensação de que não se pode errar”, continua.

Quando criança, queria ser atriz ou poeta. A paixão pela ciência se deu nas aulas de química do ensino médio. “Quando aprendi sobre os átomos, pensei ‘Nossa, é isso que eu quero fazer da minha vida’. Queria estudar as menores coisas da natureza”, relata Carla. “Não sei te explicar o porquê, não conhecia ninguém da minha família que era cientista”. Então cursou Química na faculdade, até se dar conta de que na verdade as “menores coisas” estavam de fato na Física, área na qual mais tarde fez mestrado e doutorado.

Depois disso, engravidou e teve duas filhas gêmeas. “Sabia que só poderia ter filhos depois do doutorado. Tipo de coisa que homem não precisa planejar. Se saía do país para estudar, a mulher o acompanhava e teria os filhos lá”, afirma. “E eu só consegui conciliar as coisas porque tive suporte. Para quem não tem recursos ou ajuda familiar, é complicado”.

+ Jacinda Ardern: quem é a premiê da Nova Zelândia que chamou a atenção do mundo

Fora o trabalho, Carla medita diariamente e faz ginásticas pelas manhãs durante a semana. Além disso, pratica tênis uma vez por semana - esporte que adora.

“Sou apaixonada pelo que pesquiso, mas quantas vezes já quis desistir. O trabalho te dá grandes alegrias, mas na maior parte do tempo, que não é dita, é muito sofrimento, noites viradas, choro, desespero, muitas horas de trabalho”, relata Carla. “E então, em certos momentos, eu dou uma aula de mecânica quântica, ou falo do que é a relatividade, ou tento explicar do que o mundo é feito, e volto a me emocionar uma e outra vez com a beleza das leis da natureza”.

LHC (Foto: Divulgação)

Grande Colisor de Hádrons, o LHC (Foto: Divulgação)

As colisões de partículas que ocorrem nos laboratórios do CERN nos permitem entender do que a matéria é constituída em seus mais fundamentais elementos. Mas além disso, ou “mais bonito do que isso”, nas palavras de Carla, a energia gerada nessas colisões pode se converter em massa e criar novas partículas a partir dos prótons originais. É a célebre equação de Albert EinsteinE = mc². “Cria-se uma variedade de partículas que vivem por muito pouco tempo e depois se desintegram, mas que existiam no início do universo, a altas energias”, explica a cientista.

Isso significa que no laboratório são recriadas condições energéticas do universo primordial, ou seja, logo após o Big Bang - fenômeno que deu origem a tudo que conhecemos. “Dessa forma podemos estudar como surgiu o universo e entender de que forma chegamos até aqui”, conta Carla.

O convite para a cientista brasileira trabalhar na Coordenação Geral de Física do LHCb ocorreu justamente em um momento do Brasil em que investimentos em ciência e tecnologia nunca estiveram tão baixos.“O que está acontecendo agora é resultado do investimento que o país fez em ciência e tecnologia desde os anos 1980, não é algo de agora. O problema é que nos últimos anos, crise atrás de crise, começou a ter uma queda de investimentos nessas áreas e tem ido ladeira abaixo. O que a gente tem visto nos últimos tempos é a fuga de cérebros. Os bolsistas são muito mal remunerados, não conseguimos segurar essas pessoas. O cientista é movido pela paixão, mas tem uma hora que a paixão não paga o pão”, denuncia.

“Para fazer ciência você tem que gostar muito, se dedicar muito. É quase como viver num monastério, tamanha a entrega”, define. “Ainda mais na atual situação brasileira, com dificuldades de financiamento.  Ficar no Brasil fazendo ciência é um ato de amor e resistência.”