• Djamila Ribeiro
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Em setembro, passei cinco dias na África do Sul na companhia das queridas amigas Camila Pitanga, Nátaly Neri, Carol Rocha e Milly Lacombe. O convite para a viagem, por meio da agência de turismo governamental, foi feito como forma de apresentar o país, que fica a oito horas de distância de voo do Brasil e possui uma riquíssima história, muito além de safáris – o que é óbvio, mas necessário de ser dito, uma vez que brasileiros em geral apenas procuram esse destino para essa prática, acredite se quiser.

Djamila Ribeiro (Foto: Caroline Lima)

Djamila Ribeiro (Foto: Caroline Lima)

Logo na chegada, em Johannesburgo, encontrei minhas companheiras de viagem, que já estavam lá, e nos dirigimos a Soweto, um dos bairros mais famosos do mundo, por ser onde se concentravam os negros e negras segregados, bem como por ser o único lugar do mundo onde residiram dois prêmios Nobel da Paz: Nelson Mandela e Desmond Tutu. Ambos moraram na mesma rua, a Nobel Square, e foram dois dos líderes na luta contra o apartheid, regime oficial que durou mais de 40 anos e previa um país somente para brancos, com segregação legal de negros e negras. Algo parecido com o Brasil, só que com leis determinando expressamente isso. Em uma das partes mais urbanizadas da região, o Museu do Apartheid se anuncia frente a monumentos que lembram e honram pessoas assassinadas pelo regime. Entre elas, o Memorial de Hector Peterson, de apenas 13 anos, assassinado pelas forças policiais na manifestação da população negra contra a exclusão dos idiomas dos povos africanos da grade educacional, em meados dos anos 1970. Vale lembrar que a África do Sul conta, hoje, com 11 idiomas oficiais, como khosa e zulu, além do inglês.

No museu, não é permitido filmar e fotografar, o que por um lado é ótimo, pois há maior entrega na visita. O saldo do passeio é digno de nota, muda a humanidade das pessoas relembrar o passado e forma outro tipo de cidadania. O Brasil, por exemplo, nem sequer se envergonha da escravidão e, por isso, é um país condenado às maiores atrocidades e injustiças, à premiação de situações injustas, pelo simples fato de que não conta sua história, não relembra as pessoas do quanto de sangue negro e indígena construiu essa suposta nação. Confesso que minha ida ao Museu do Apartheid foi enriquecedora, claro, mas, ao mesmo tempo, me causou desânimo. Quando é que as vidas negras importarão por aqui? Vale destacar que o museu é um lugar de muita dor, mas de muita resistência política. Como dizia Lélia Gonzalez, a gente não compartilha somente a dor, a gente compartilha legados de luta. Por isso, foi importante conhecer os movimentos políticos que, por mais diferentes que fossem, lutavam contra a mesma opressão.

Fomos também à Cidade do Cabo, lugar de belezas naturais estonteantes, como a table mountain, uma das sete novas maravilhas do mundo, com vista para o Oceano Índico. Impossível descrever, há que se ir para ver como é belo. Visitamos ainda Robben Island, ilha onde Mandela passou 18 dos 27 anos preso. Os guias locais foram seus companheiros de cela e têm muito a dizer sobre o tempo em que Madiba esteve lá, tendo de enterrar suas próprias cartas (publicadas no livro Cartas da Prisão, Todavia, 656 págs., R$ 46,90), assistindo ao assassinato de companheiros e companheiras, lidando com a morte dos próprios filhos. Foram longos anos de resistência, até que uma série de fatores pressionou o regime do apartheid a soltá-lo e fundar novos parâmetros de sociedade.
Acredito que seja importante relembrar a história e o legado de luta dos sul-africanos pela afirmação histórica de humanidade da população negra, em face de um regime ditatorial, sobretudo quando um político que mede quilombolas por arroba; afirma que seu filho teve educação, logo não se relacionaria com mulheres negras; que vai acabar com todos os ativismos; com a demarcação de terras indígenas; que afirma que não estupraria uma parlamentar, pois ela não mereceria; entre outros absurdos, está em alta. Relembrar os horrores de governos intolerantes pode ser uma saída para não cometer um grave erro do qual a população brasileira se arrependerá, e muito.

Djamila Ribeiro é mestre em filosofia política e feminista, autora dos livros o que é lugar de fala e quem tem medo do feminismo negro? (@djamilaribeiro1)