• Paola Deodoro
Atualizado em
Mudança de hábito (Foto: Getty Images)

Mudança de hábito (Foto: Getty Images)

Há algo no ar que aponta mudanças nos padrões de beleza. Das pequenas oscilações que o conceito do belo sofreu ao longo da história, uma é inédita na vida moderna: a pele escura como marcador estético. Muitos fatores entram nessa conta. A demografia racial do mundo mudou. Para se ter uma ideia: a projeção é de que em 2045, como nunca antes, a população não-branca seja maioria nos Estados Unidos. A ascensão social e econômica de minorias e maiorias minorizadas abriu uma nova conversa com o mercado estético – aumentando vertiginosamente seus consumidores. A publicidade e a mídia também mexeram seus pauzinhos e trataram de incluir muito mais gente preta em seu conteúdo, aumentando em quase dez vezes a visibilidade dessa população entre 2015 e 2021 no Brasil. E sobrevoando todos os fatos está a internet, em especial as redes sociais, que convida a todos para esse debate.
O fenômeno que faz com que a quênio-mexicana Lupita Nyongo figure nas listas das mais bonitas do mundo e que a indiana Deepika Padukone se torne estrela de campanhas de marcas de luxo impulsiona a percepção de beleza e mexe com o imaginário da sociedade. Latinos, indianos, africanos e indígenas, com traços fenotípicos raramente considerados na conta do bonito, passam a fazer parte desta reconfiguração, trazendo novas perspectivas, cores e, até, influenciando no conceito de diversidade.

Mudança de hábito (Foto: Getty Images)

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A vitrine está diferente
Ter pessoas não-brancas nas vitrines do mundo estabelece uma conexão com uma sociedade educada, em ampla maioria, com um olhar restrito sobre beleza. Aline Maia, mestre em antropologia e pesquisadora de conteúdo na Rede Globo, vê esse reajuste de modelo passando pela mudança dos pontos de partida: “O que faz esse padrão de beleza mudar é o aumento de pessoas em espaços de visibilidade, de poder, de criação de novas referências. Isso muda o imaginário”.
A pesquisa anual Todxs, que mapeia a representatividade na publicidade brasileira, realizada pela Aliança Estereótipos, da ONU Mulheres, mostra que, em 2015, 3% das campanhas na TV tinham mulheres negras. Em 2020, subiu para 27%. Um número ainda pequeno, mas crescente. “No Brasil, podemos considerar 2003 como um marco inicial, com as primeiras políticas de ações afirmativas das universidades que realocaram pretos e pardos no mercado de trabalho. A ascensão social faz com que as pessoas sejam percebidas como consumidoras”, contextualiza a antropóloga.
Para além da movimentação, há o desafio de manter tais ideias a longo prazo. Aza Njeri, escritora e pós-doutora em filosofia africana, lembra que a reafirmação da estética afrodescendente é recorrente, mas cíclica. O Garveyismo, fundado pelo jornalista jamaicano Marcus Garvey e difundido nos Estados Unidos nos primeiros anos de 1900, tinha ligação profunda com a estética. No início da década de 1930 o Négritude, movimento literário afro-franco-caribenho estabeleceu vínculos culturais horizontais entre a diáspora. E, claro, na década de 1960, o vigoroso movimento Black Power que exaltava o lema Black is Beautiful (Negro é Lindo), foi um recurso para expressar o orgulho da origem africana e da imagem física. “Os movimentos sempre foram conectados e o que está acontecendo agora, sobre a cor, pode ser poderoso. Mas é preciso estar de mãos dadas com ferramentas de educação para se tornar sólido. Só mudar o padrão estético no marketing, mudar a representatividade, e não a representação, é frágil”, pontua Aza.

Mudança de hábito (Foto: Getty Images)

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E, do nada, as redes
E então, chegam as redes sociais, possivelmente as maiores aliadas para a longevidade da onda estética atual. “Elas tornaram mais firmes os movimentos de ação identitária e afirmativa e disseminam de forma abrangente. A internet democratiza, dá velocidade à informação, capilariza e a faz chegar onde não chegava”, diz a psicanalista Joana de Vilhena Novaes, professora do programa de pós-graduação em psicanálise, saúde e sociedade da Universidade Veiga de Almeida.
É também na internet que se cria um espaço de troca e criação de referências visuais. É onde artistas culturalmente nichados transitam mais amplamente. A atriz indiana Deepika Padukone, a cantora colombiana Karol G e a cantora nigeriana Yemi Alade, por exemplo, cresceram seus públicos para dezenas de milhões de admiradores, e levam suas estéticas cada vez mais longe. Mas ainda que ganhem mais potência como referência visual, é fundamental prestar atenção na reafirmação de outros padrões. “Até que ponto as pessoas em espaços de visibilidade carregam seus traços étnicos primários? Como são esses biotipos? Que tipo de beleza é aceita para protagonizar um filme, uma novela?”, questiona Aline.

Colorismo e a mística da pele escura
A fotógrafa romena Mihaela Noroc percorreu o mundo com sua câmera apontada para diferentes belezas nos últimos dez anos com o “Atlas of Beauty” e já registrou mais de duas mil mulheres. Observando a diversidade, percebeu que a pele escura é uma questão profunda em diferentes culturas. “Não acredito que o padrão mudou. Mas estamos em ajustes. Em 2014 eu fotografei Isabela, uma brasileira com a pele bem escura, no Rio de Janeiro. Linda. Mas ela não se sentia bonita justamente por ser escura. Disse que se eu fosse a uma banca de revistas aí no Brasil eu nunca veria uma mulher da cor dela. Hoje isso já mudou.”
A discussão sobre o colorismo é ampla e enraizada. Como bem lembra a escritora Meeta Rani Jha no livro The Global Beauty Industry, Colorism, Racism, and the National Body (“A Indústria da Beleza Global: Colorismo, Racismo e o Corpo Nacional”), há uma cultura que associa pele escura a doença, a uma disfunção de feiura. Comportamento da branquitude eurocêntrica capaz de transformar sociedades únicas, como Índia e alguns países da África.
Aza Njeri fala sobre a teoria da diluição genética: “É um pensamento da supremacia contemporânea. É sobre o medo de uma substituição dos brancos pelos não-brancos no território anglo-europeu em breve, pois quando há mistura, geneticamente o resultado não é mais branco. E a estrutura excludente e racista tenta garantir este distanciamento”.

Mudança de hábito (Foto: Getty Images)

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Volume, relevância e consciência
A Skin of Color Society, entidade que promove estudos relacionados à dermatologia para peles pigmentadas, tem intensificado sua abrangência e complexidade por conta da nova demografia mundial. Dados de recenseamento dos Estados Unidos projetam que a população branca, pela primeira vez na história do país, não será mais maioria em 2045. À época, serão 24,6% de hispânicos, 13,1% de negros, 7,9% de asiáticos e 3,8% de populações multirraciais – com uma minoria branca de 49,7%. Isso exige adaptação do mercado.
A dermatologista Katleen Conceição, chefe do Ambulatório de Pele Negra da Santa Casa do Rio de Janeiro e primeira brasileira mentora da Skin of Color Society, conta que sempre houve resistência de seus colegas ao estudo das peles escuras. “Em geral, no Brasil, as peles pigmentadas são tratadas da mesma forma que as peles brancas, não há interesse em estudar as nuances do povo que é maioria da população. Mas existem diferenças fundamentais, principalmente com relação ao risco de manchas”, alerta.
A maioria racial brasileira não é novidade. O fenômeno atual diz respeito ao aumento da autodeclaração. Segundo o IBGE, de 2012 a 2019 o país aumentou em 36% a população preta e em 10% a parda. No censo de 2019, 42,7% dos brasileiros se declararam brancos, 46,8% pardos, 9,4% pretos e 1,1% amarelos ou indígenas. “Os negros sempre foram maioria numérica. A novidade é o aumento da autodeclaração, fruto de políticas públicas, construídas através das lutas dos movimentos, de reforçar a identidade negra”, resume a antropóloga Aline Maia.
Não que volume, necessariamente, signifique relevância. A importância está na localização social. Joana de Vilhena Novaes lembra a ideia da Multidão de Minorias, ou de maiorias minorizadas, descrita pelo filósofo marxista Antonio Negri. O termo, originalmente relacionado à classe operária, passou a ser adotado para grupos como povos originários e população preta recentemente. “Para aumentar consumidores, o mercado entrega reconhecimento e avaliza novas representações para que as pessoas se sintam menos estigmatizadas”, conclui a psicanalista.
Um ajuste de olhar
Cimentar mudanças é um trabalho em evolução. Ainda que longe da resposta definitiva, já existe lucro: o alargamento da consciência reforça a autoconfiança e gera uma sensação de conforto, sobretudo em pessoas que nunca foram bem-recebidas esteticamente. “Desde o início do Atlas of Beauty percebo uma melhora na relação das mulheres com sua imagem. E até com a minha câmera. Já recebi mensagens de pessoas que passaram a se sentir mais bonitas depois de ver as histórias, corpos e cores no meu livro, como maneira de identificação”, conta a fotógrafa Mihaela Noroc.
Enxergar o belo em novos lugares é um exercício de percepção que também dimensiona outros valores para beleza. “As pessoas não passaram a achar tudo bonito, não é isso. A discussão é sobre ajustes de olhar. O grande ganho dessa reconfiguração é chegar a um olhar que não discrimine e que não crie horror pelo diferente”, reflete Joana. Se conviver com padrões estabelecidos é uma questão inseparável da vida contemporânea, que eles sejam mais largos e generosos. Para a sociedade, a sugestão é exercitar essa abertura. Você aí, tem visto mais beleza no mundo ultimamente?