Os placozoários, seres marinhos em forma de "panqueca" e do tamanho de um grão de areia, surgidos na Terra há 800 milhões de anos, podem ter originado os neurônios dos animais mais complexos — inclusive as células nervosas dos seres humanos.
Este fato curioso foi apresentado nesta terça-feira (19) em um estudo na revista Cell. Os pesquisadores do Centro de Regulação Genômica, em Barcelona, na Espanha, notaram a relação entre os neurônios e os placozoários ao criarem um mapa de todas as células desses animais milimétricos.
O "atlas de células" permitiu que os cientistas identificassem genes responsáveis pelas funções das células dos placozoários. A equipe também fez comparações entre espécies para reconstruir como os tipos de células evoluíram.
Os placozoários se alimentam de algas e micróbios que vivem na superfície de rochas e outros substratos encontrados em mares rasos e quentes. Essas criaturas são tão simples que vivem mesmo sem partes do corpo ou órgãos. Os pesquisadores anotaram as características celulares desses seres, dividindo-os em apenas quatro espécies diferentes.
![Imagem de microscopia de núcleos, coloridos por profundidade, de Trichoplax sp. H2, uma das quatro espécies de placozoários — Foto: Sebastian R. Najle/Centro de Regulación Genómica](https://cdn.statically.io/img/s2-galileu.glbimg.com/g0T2bDB9ny_s64X9dLtPS9XDnzc=/0x0:700x700/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_fde5cd494fb04473a83fa5fd57ad4542/internal_photos/bs/2023/D/l/nlcgM3Sm6B5rgIZN3RmA/low-res-placozoan-confocal-image.jpg)
O que chamou mais atenção dos cientistas foram as células peptidérgicas desses animais marinhos minúsculos. Essas estruturas liberam pequenos peptídeos capazes de direcionar o movimento ou a alimentação dos placozoários.
Diferentemente de outras células, as peptidérgicas não apresentam tipos "intermediários" que crescem e se dividem, assim como não dão sinais de crescimento ou divisão. Surpreendentemente, os cientistas descobriram que elas compartilhavam semelhanças com os neurônios, apesar destes últimos terem só surgido muitos milhões de anos depois, em animais mais avançados.
As similaridades eram três. Para começar, as células peptidérgicas dão sinais de desenvolvimento parecidos com a neurogênese, processo de formação dos neurônios.
Em segundo lugar, essas células têm muitos módulos de genes necessários para construir a parte de uma célula nervosa capaz de enviar uma mensagem (estrutura pré-sináptica). No entanto, elas estão longe de ser um neurônio verdadeiro, uma vez que não têm os componentes para receber estímulos (região pós-sináptica) ou para conduzir sinais elétricos.
Por fim, para mostrar que as células dos placozoários também se comunicam entre si, os cientistas usaram técnicas do ramo de aprendizagem profunda (deep learning). Assim, descobriram que os sinais externos são detectados por proteínas específicas desses seres minúsculos, chamadas de "receptores acoplados à proteína G" (GPCRs). Elas recebem esses sinais e iniciam uma série de reações na célula.
Esses sinais, inclusive, são mediados por neuropeptídeos, mensageiros químicos que são usados por neurônios em muitos processos fisiológicos.
"Ficamos surpresos com os paralelos", diz Sebastián R. Najle, coautor do estudo e doutorando no Centro de Regulação Genômica. "As células peptidérgicas dos placozoários têm muitas semelhanças com as células neuronais primitivas, mesmo que ainda não tenham chegado [a esse nível de desenvolvimento]. É como olhar para um trampolim evolutivo", ele compara.
Os autores do estudo acreditam que as origens dos neurônios e a evolução de outros tipos de células ficarão cada vez mais claras conforme mais sequenciamentos de genomas de alta qualidade de diversas espécies forem feitos.
"Entender como as células surgem ou mudam ao longo do tempo é fundamental para explicar a história evolutiva da vida. Placozoários, ctenóforos, esponjas e outros modelos animais não tradicionais guardam segredos que estamos apenas começando a desvendar", conclui Arnau Sebé-Pedros, professor de pesquisa do Instituição Catalã de Pesquisa e Estudos Avançados (ICREA), autor correspondente do estudo e líder do grupo júnior no Centro de Regulação Genômica.