• Carlos Orsi
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Edição do Los Angeles Times anunciando a absolvição de O.J. Simpson, em 1995. (Foto: reprodução)

Edição do Los Angeles Times anunciando a absolvição de O.J. Simpson, em 1995. (Foto: reprodução)

Muitos anos atrás, militando no jornalismo diário, conheci um editor que era profundamente alérgico a estatísticas. “Se um rico come um frango inteiro, e um pobre não come nada”, argumentava ele, “estatisticamente, cada um comeu meio frango!”. O importante, insistia, eram as histórias humanas: mais relevante que a média dos frangos era dura vida do sujeito sem frango nenhum.

Trata-se de uma postura fácil de entender, não só pelo batido estereótipo do jornalista como um “cara de humanas”, mas também como reflexo de uma geração de profissionais que passou boa parte da carreira jornalística tendo que engolir a numeralha vomitada pelos tecnocratas da ditadura de 1964-1985, período em que as “histórias humanas” dos sem-frango eram forçosamente varridas para debaixo do tapete.

Há uma caricatura dessa época, feita pelo Ziraldo, que mostra um ministro do regime militar – acho que era o Mário Henrique Simonsen –, todo enrolado em casacos e cachecóis, falando para um indigente seminu, morto de hipotermia: “Não está frio! Se você levar em conta a média das temperaturas para esta época do ano...”

O fato de que estatísticas podem ser (mal) usadas para distorcer e atenuar a realidade, no entanto, não significa que sejam inúteis, ou que todo uso delas no discurso público – voltado para leigos – esconda más intenções. Jornalisticamente falando, sempre desconfiei mais de seu oposto: exatamente das tais histórias “humanas” que o editor preferia.

O drama do homem sem-frango rende uma história fantástica, é verdade, mas depois de chorarmos por ele e nos compadecermos dele, ainda restam perguntas – quantas outras pessoas estão na mesma situação? qual o modo mais eficaz de ajudá-las? é melhor dar o frango ou ensiná-las a montar suas próprias granjas? – que, para serem respondidas de modo responsável requerem, adivinhe só, boas estatísticas. Porque manipular emoções é bem simples, mas intervir na realidade são outros quinhentos.

Outro tipo de caso: principalmente em reportagens sobre saúde e bem-estar, costuma ser fácil achar alguém que atribua sua cura, beleza, barriga tanquinho ou orgasmos múltiplos a um tratamento que, à luz fria das estatísticas, é geralmente ineficaz, inevitavelmente caro e possivelmente perigoso. Mas a história do “personagem” em foco, bem como seu eventual status de celebridade, opera de modo a endossar a picaretagem. A forma ideal de lidar com uma questão complexa e de interesse humano é mesclar números e personagens, lançando um olhar crítico sobre ambos; se isso não for possível, o melhor é ficar com os números, encarando o desafio de apresenta-los de modo claro e interessante.

O que não quer dizer que os números não requeiram cuidado. Dizem, por exemplo, que O.J. Simpson tinha um advogado tão bom que conseguiu usar o fato de que o ator e ex-jogador de futebol americano espancava a mulher para convencer o júri de que era improvável que ele a tivesse matado. Como? Bem, o defensor citou uma estatística dizendo que, dos maridos que espancam as esposas, apenas 1 em 1.000 se tornam assassinos. Logo, a chance de seu cliente ser culpado era de 0,1%!

Vamos pensar um pouco isso. Os jurados foram expostos à chance de o marido vir a matar a mulher, sendo que ele a espanca: 1 em 1.000, que de qualquer forma é muito mais alta que o risco de uma mulher ser morta por um marido que não bate nela, ou por um estranho qualquer na rua. Mas a questão relevante, diante do crime já consumado, era: qual a chance de a mulher, já morta de forma violenta, ter sido assassinada pelo marido, dado que ele a espancava?  Números do FBI, da mesma época, mostravam que todos os maridos assassinos – 100% deles – tinham sido espancadores da esposa previamente.

No geral, números não mentem. O que acontece – com frequência –  é o ser humano não saber, ou não querer, formular a pergunta direito, antes de exigir repostas.