• Thiago Tanji
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A utilização dos meios de comunicação foi essencial para que a propaganda nazista chegasse à sociedade alemã (Foto: Wikimedia Commons/ Arquivo Federal da Alemanha)

A utilização dos meios de comunicação foi essencial para que a propaganda nazista chegasse à sociedade alemã (Foto: Wikimedia Commons/ Arquivo Federal da Alemanha)

Há pouco mais de um ano, escrevi um texto neste blog que dizia 'por que você deveria ler o livro Minha Luta, de Hitler'. Ao conferir os comentários no Facebook, me arrependi de escolher aquele título para iniciar a publicação: sem ler o restante do texto, muitas pessoas apenas conferiram a manchete e afirmaram que gostariam de ler Minha Luta por considerarem Adolf Hitler um gênio, ainda que tenha utilizado suas habilidades para o "mal".

Com boa intenção, alguns outros leitores criticaram o título e acusaram um suposto elogio ao nazismo. Mas, certamente, eles também não chegaram a ler os primeiros parágrafos da publicação. O texto afirmava que a leitura do livro de Hitler era importante justamente para que o horror do nazi-fascismo não se repetisse com os mesmos falsos argumentos e teorias rasas utilizadas pelo ditador austríaco. 

Naquela época, Donald Trump ainda era considerado uma piada pela imprensa norte-americana, que tratava de sua candidatura à presidência dos Estados Unidos na seção de Celebridades. A expressão "pós-verdade" também era pouco utilizada, ainda que as redes sociais mantivessem um território fértil para a publicação de notícias falsas, discursos de ódio e ataques raivosos contra "inimigos" ideológicos. 

Um ano depois, este blog volta a escrever sobre Adolf Hitler e a ascensão do nazismo. Mas agora por razões muito mais urgentes do que a efeméride de publicação do livro Minha Luta: com a marcha racista que tomou a cidade norte-americana de Charlottesville e as declarações vagas de Trump diante do ocorrido, o debate sobre as razões do supremacismo e a origem de movimentos como o nazismo voltaram à tona.

O problema é que, ao conferir o teor dessa discussão, voltamos ao problema citado no início deste texto. Com muitas convicções e pouco conteúdo para ajudar na formulação de argumentos, o debate na esfera pública também foi tomado pela "pós-verdade": no Brasil, personalidades que habitam as redes sociais, youtubers e comentaristas de portais não tiveram muitas dúvidas em sustentar que o nazismo tinha origem nas forças sociais de esquerda. Como justificar, afinal, que um movimento de extrema-direita pudesse receber o nome de Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães?

Desconhecer episódios históricos e o desenvolvimento de processos políticos e sociais não é pecado algum: cabe aos veículos de comunicação sérios e aos pesquisadores o papel de trazer à tona informações para que cada vez mais pessoas tenham acesso a esse conhecimento. O problema é quando pessoas ou grupos semeiam informações incorretas, como a associação do nazismo à esquerda, para legitimar um determinado discurso e desqualificar seus adversários. Essa tática de propaganda, por sinal, foi extensamente utilizada pelo Partido Nazista parar afirmar sua ascensão entre a sociedade alemã durante as décadas de 1920 e 1930.

E é justamente por conta disso que precisamos retomar alguns episódios históricos para entender o fortalecimento do nazi-fascismo. 

Contra tudo que está aí
A ascensão de Adolf Hitler não se deu da noite para o dia. Em 1923, quando tentou liderar um golpe de Estado em um episódio conhecido como Putsch (Golpe) da Cervejaria, o austríaco que lutou pelo exército do Império Alemão durante a I Guerra Mundial era visto como uma figura bizarra pela imprensa e pelo establishment político. Acontece que nove anos depois, o Partido Nazista conquistaria mais de 13 milhões de votos para a eleição presidencial, obtendo a segunda colocação no pleito — o vencedor, Paul von Hindenburg, nomearia Hitler para a função de chanceler da Alemanha em 1933 e daria plenos poderes ao austríaco no mesmo ano.

Muitos mitos cercam a história de Adolf Hitler e sua importância para o fortalecimento do Partido Nazista: a infância e juventude conturbadas, a tentativa frustrada de tornar-se pintor, a participação na I Guerra Mundial. Todos esses fatos, no entanto, importam menos do que a realidade econômica e social da Alemanha nos anos que seguiram a derrota germânica no conflito mundial. O quadro era crítico: destruição das grandes cidades, hiperinflação, desemprego crônico e a submissão diante da França e do Reino Unido. Para piorar, o Partido Social-Democrata da Alemanha, historicamente ligado à classe trabalhadora, havia chegado ao poder, mas não apresentava propostas capazes de resgatar o país da crise.

(Cabe aqui uma pequena história para explicar como os significados políticos são diferentes de acordo com o contexto histórico: durante o final do século 19 e início do século 20, os partidos sociais-democratas reuniam as forças sociais que sustentavam sua prática política a partir da teoria de Karl Marx. Na Rússia, Vladimir Lenin era uma das lideranças do Partido Operário Social-Democrata Russo, que se dividiria entre bolcheviques e mencheviques. Ao longo do século 20, no entanto, a social-democracia se afastou da teoria marxista — até que se diga o contrário, João Dória, Aécio Neves, Geraldo Alckmin, Beto Richa e outros políticos do PSDB não parecem grandes entusiastas da leitura de O Capital...) 

A tensão social motivada pela crise permitia a circulação de ideias que propunham rupturas no sistema político e econômico: inspirados pela Revolução Russa de 1917, militantes descontentes com os rumos do Partido Social-Democrata fundaram o Partido Comunista da Alemanha, apostando que as condições sociais permitiriam o início de uma revolução. Em 1923, com apoio da União Soviética, militantes comunistas tentaram insuflar o movimento operário a iniciar uma insurreição, mas não obtiveram sucesso. 

E é justamente a partir desse ponto que desfazemos o nó entre a ideologia nazista e sua associação às palavras "socialista" e "trabalhadores". Inspirado em ideiais ultra-nacionalistas e de supremacia racial, Adolf Hitler se mostrava como a figura política que lutava "contra tudo o que está aí". Ao mesmo tempo em que expunha as ameaças de uma revolução comunista em território alemão, atacava o sistema financeiro e a ganância dos bancos — personificados na população judaica. Denunciando o complô "judeu-bolchevique", o futuro ditador prometia a retomada de empregos e um horizonte glorioso. Para afastar a classe trabalhadora da influência dos sociais-democratas e comunistas, iniciou um movimento de massa que ganharia cada vez mais adeptos. 

O golpe de misericórdia contra os partidos políticos formados por trabalhadores aconteceu no dia 27 de fevereiro de 1933, em episódio conhecido como o "Incêndio do Reichtasg": os nazistas acusaram os comunistas de incediarem criminalmente o Parlamento Alemão — denúncia nunca confirmada pelos historiadores. Para trazer "paz à nação", o presidente Hindenburg baixou um decreto que suspendia uma série de direitos civis e dava plenos poderes ao chanceler Hitler. Após a morte de Hindenburg, em 1934, o austríaco acumulou as funções de presidente e se autodenominou Führer (Líder em alemão). 

Hitler e Joseph Goebbels (à direita) utilizaram a indústria cinematográfica para transmitir sua propaganda (Foto: Wikimedia Commons)

Hitler e Joseph Goebbels (à direita) utilizaram a indústria cinematográfica para transmitir sua propaganda (Foto: Wikimedia Commons)

Fábrica de fake news
Afastada a influência comunista sobre os trabalhadores alemães, Hitler continuou seu plano nacionalista para manter o poder. Defensor da propriedade privada, o Partido Nazista proibiu as greves e extinguiu os sindicatos, unificando os trabalhadores organizados em um braço partidário do nazismo. 

As grandes empresas do país, por sua vez, agradeceram a retomada da política industrial, que investiu cada vez mais dinheiro em pesquisa e produção de tecnologia bélica: no início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, a Alemanha contava com armamento superior aos seus inimigos europeus. 

Enquanto a economia crescia, o Partido Nazista silenciava seus inimigos: no dia 10 de maio de 1933, milhares de livros foram queimados em praça pública, sob a justificativa de iniciar uma "purificação da literatura alemã". Obras de Albert Einstein e Sigmund Freud tiveram como destino o fogo da pira montada por estudantes alemães. O regime também perseguiria intelectuais e artistas considerados "degenerados": em uma mostra de 1937 realizada em Munique, obras modernistas foram expostas ao público para serem ridicularizadas — escolas artísticas como o cubismo, expressionismo, surrealismo e o design Bauhaus estavam na lista de obras perseguidas pelos nazistas. 

Para manter sua relação de proximidade com a maior parte da população, os nazistas utilizavam o entretenimento como ferramenta para controle da opinião pública. Sob a tutela de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda, os meios de comunicação reproduziam dia após dia o discurso de supremacia racial e o ultra-nacionalismo. Em grandes exibições públicas, filmadas e fotografadas por profissionais, o Partido Nazista acusava os "inimigos internos" judeus, ressaltava a superioridade ariana e iniciava sua plataforma rumo à expansão militar. 

O resultado disso é bem conhecido: o início da Segunda Guerra Mundial, responsável por ao menos 50 milhões de mortes, além da perserguição e extermínio sistemáticos de judeus, ciganos, homossexuais, portadores de deficiências físicas e opositores políticos. Em tempos de pós-verdade, apenas a História pode nos ajudar a entender e superar os discursos de ódio e fantasmas que de vez em quando voltam para nos assombrar.