• André Bernardo
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Apoiadores de Bolsonaro fazem sinal de arma em manifestação no Rio de Janeiro em 2020. A liberação de armamentos era promessa de campanha do atual presidente (Foto: Bruna Prado/Getty Images)

Apoiadores de Bolsonaro fazem sinal de arma em manifestação no Rio de Janeiro em 2020. A liberação de armamentos era promessa de campanha do atual presidente (Foto: Bruna Prado/Getty Images)

Vinte e seis fuzis, três carabinas, 21 pistolas, dois revólveres, uma espingarda e um rifle. Esse arsenal de guerra foi encontrado por agentes da Polícia Civil e do Ministério Público no dia 25 de janeiro de 2022, numa casa de vila no Grajaú, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Essas 54 armas, além de caixas com farta munição, não foram apreendidas em um paiol do Exército ou numa firma de segurança. Pertencem, segundo os responsáveis pela operação, a Vitor Furtado Lopes, de 35 anos, preso um dia antes em Goiânia.

Registrado no Exército como CAC (Caçador, Atirador e Colecionador), Lopes se valia de sua licença de colecionador para comprar armas e munição legalmente e, depois, revendê-las ao Comando Vermelho. Os artefatos eram, então, distribuídos pela maior facção criminosa do estado em favelas como Jacarezinho, Parque União e Complexo do Salgueiro. Ao todo, o arsenal supera R$ 1,8 milhão, segundo o Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (GAECO), órgão do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). “O Vitor é um bom exemplo da política armamentista do governo Bolsonaro. Mostra na prática o quanto ela é nefasta”, critica o advogado Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz e autor do livro Arma de Fogo no Brasil: Gatilho da Violência (2022). “Por um descuido, ele foi preso. Mas quantos outros Vítores existirão por aí?”.

Armas e munições compradas legalmente por cidadãos estão abastecendo facções do tráfico, da milícia e de grupos de extermínio pelo país afora. Mas essa realidade traz muitos outros danos colaterais. “Com uma arma em mãos, qualquer um se sente empoderado. Numa briga de torcida ou discussão no trânsito, a primeira coisa que se faz é puxar pela arma”, ilustra o economista Daniel Cerqueira, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e coordenador do Atlas da Violência. “Em vez de proteger, a arma gera insegurança. Em casa, aumenta em até 10 vezes as chances de alguém morrer por homicídio, suicídio, feminicídio ou acidente.”

O número de registros de posse de arma no Brasil aumentou 415,3% entre 2018 e 2022, segundo o Exército. (Foto: Getty Images)

O número de registros de posse de arma no Brasil aumentou 415,3% entre 2018 e 2022, segundo o Exército. (Foto: Getty Images)

No distante 3 de abril de 2017, o então deputado federal Jair Bolsonaro foi convidado a dar uma palestra no clube Hebraica, na Zona Sul da capital fluminense. Prometeu, caso eleito, facilitar o acesso da população a pistolas, revólveres e fuzis: “Se depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa!”. Cinco anos depois, o presidente se empenha para cumprir sua promessa de campanha. Desde 2019, já publicou 38 atos normativos que facilitam a compra, o registro, a posse e o porte de artefatos bélicos.

Explosão de armas

Nenhuma outra categoria foi tão beneficiada quanto a dos CACs. Nesse caso, a aquisição de armas está vinculada às práticas de tiro esportivo, atividade de colecionador e de caça (regulamentada pelas normas de proteção à fauna e de crimes ambientais). O registro é concedido pelo Exército mediante o cumprimento de requisitos como a filiação a uma entidade de caça ou a um clube de tiro.

Antes, caçadores podiam adquirir no máximo 12 armas, sendo oito de uso restrito, como pistolas 9mm ou carabinas semiautomáticas .40, além de 6 mil balas e 2 kg de pólvora por ano. Após o decreto 9.846, de 25 de junho de 2019, eles têm acesso a até 30 armas, sendo 15 de uso restrito, e ainda 90 mil balas e 20 kg de pólvora. No caso de atiradores, podiam ter até 16 armas, 60 mil balas e 12 kg de pólvora; agora, conseguem comprar até 60 armas, 180 mil balas e 20 kg de pólvora. “A quem interessa essa política armamentista?”, indaga Langeani, que responde: “Ao crime organizado, que se aproveita das brechas na lei para recrutar ‘laranjas’ e comprar armamento pesado”.

Como o atirador precisa estar filiado a um clube de tiro esportivo para comprar e registrar armas, o número de estabelecimentos também sofreu um boom: em 2018, eram 773; em 2022, são 1.644. A anuidade de algumas unidades, que funcionam 24 horas, pode chegar a R$ 8 mil. Entre outros serviços, eles regularizam documentos, vendem armamentos e oferecem drinques temáticos, como a vodca russa Kalashnikov, batizada em homenagem ao inventor do fuzil AK-47. Quanto aos colecionadores, podem comprar até cinco armas de cada modelo. Antes de 2019, era uma.

Antes de Bolsonaro chegar ao poder, o total de novas armas nas mãos de civis era de 51 mil, de acordo com a Polícia Federal. Depois, pulou para 202,5 mil. (Foto: Andre Borges/ picture alliance/Getty Images)

Antes de Bolsonaro chegar ao poder, o total de novas armas nas mãos de civis era de 51 mil, de acordo com a Polícia Federal. Depois, pulou para 202,5 mil. (Foto: Andre Borges/ picture alliance/Getty Images)

Não bastasse ampliar a quantidade de armas e munições, o governo ainda criou outras facilidades: para ser CAC, o usuário antes precisava de laudo fornecido por psicólogos credenciados pela Polícia Federal. Com o decreto 10.629, de 12 de fevereiro de 2021, esse laudo pode ser emitido por qualquer profissional da área. Não por acaso, o número de CACs deu um salto de 415,3% — segundo dados do Exército, passou de 117.465 em 2018 para 605.313 em 2022.

Um levantamento dos institutos Sou da Paz e Igarapé revela que o total de armas de fogo em poder dos CACs bateu na casa de 1 milhão — 1.085.888, para ser mais exato. Em 2018, não passava de 255,4 mil. “O CAC é o caminho mais rápido para alguém obter uma arma de fogo. Já podem comprar modelos mais potentes que os da PM”, alerta a pesquisadora Natália Pollachi, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora de projetos do Sou da Paz. “Não queremos criminalizar ninguém. Muito menos defender a extinção dos CACs. Queremos apenas uma regulamentação responsável e coerente com a nossa realidade.”

O Exército fica a cargo do registro de armas de militares e de CACs. Somadas as duas categorias, foram 264,5 mil novas peças em circulação em 2021. Dessas, 97,6% são de CACs. Já o controle de armas adquiridas por civis é da alçada da Polícia Federal (PF). Antes de Bolsonaro chegar ao poder, o total de novas armas nas mãos de civis era de 51 mil, de acordo com a PF. Depois, pulou para 202,5 mil.

Só no ano passado, 467 mil novas armas de fogo, incluindo civis, militares e CACs, entraram em circulação no Brasil. Média de 1,2 mil por dia. “O aumento do número de armas de fogo não traz mais segurança. Traz mais risco”, observa a jornalista Cecília Oliveira, fundadora da plataforma digital Fogo Cruzado, que registra dados de violência armada no Rio e em Recife.

No último dia 25 de abril, o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro fez um disparo acidental em pleno aeroporto de Brasília. Segundo depoimento à polícia revelado pela colunista Bela Megale, do GLOBO, no balcão da companhia aérea Latam, Ribeiro abriu sua bagagem para pegar a arma e separá-la do carregador. Só que com o pouco espaço para operá-la e o receio de expor o artefato em público, apertou o gatilho sem querer. Embora tenha dito que ninguém fora atingido, estilhaços acertaram uma funcionária da GOL, que felizmente saiu ilesa. Ainda segundo o jornal, advogados de Ribeiro disseram que ele tem porte de arma e registro como CAC.

E não bastasse o acesso mais fácil da população a armas e munições, mecanismos de controle e fiscalização foram dificultados. Uma combinação, para dizer o mínimo, explosiva. O prazo para renovação de licenças, momento em que se verifica, entre outras coisas, se o portador continua apto do ponto de vista psicológico a ter uma arma de fogo, aumentou. Se antes o usuário precisava atualizar seu registro a cada cinco anos, agora só precisa revalidá-lo a cada dez. O total de licenças caiu de 126,7 mil em 2018 para 63,1 mil em 2021.

Menos armas, menos crimes

Mas, como disse o próprio presidente em 27 de setembro de 2021 se referindo à economia do país, “nada está tão ruim que não possa piorar”. Tramita no Senado um projeto de lei que, se for aprovado, tornará o cenário ainda mais desolador. O PL 3.723/2019 altera pontos importantes da legislação. Um exemplo: autoriza o transporte de armas curtas municiadas e prontas para uso por atiradores e caçadores, em qualquer local ou horário. Outro: derruba a obrigatoriedade da marcação de munições e impede o rastreamento de cartuchos.

Foi graças a essa técnica que o assassinato da juíza Patrícia Acioli, titular da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo (RJ), foi desvendado. No dia 11 de agosto de 2011, aos 47 anos, ela foi executada com 21 tiros na porta de casa, em Niterói. No local do crime, a polícia apreendeu um cartucho com a inscrição de um lote que havia sido comprado pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro dois anos antes e remetido ao 7º Batalhão da Polícia Militar (BPM), em São Gonçalo. A investigação concluiu que o crime foi cometido por 11 PMs que tinham sido presos ou condenados por decisão da magistrada — entre eles, o comandante do 7º BPM na época, o tenente-coronel Cláudio Luiz de Oliveira.

De acordo com o Atlas da Violência 2021, 67,7% dos homicídios no Brasil são cometidos por armas de fogo — a média mundial é de 54%. (Foto: Cris Faga/NurPhoto/ Getty Images)

De acordo com o Atlas da Violência 2021, 67,7% dos homicídios no Brasil são cometidos por armas de fogo — a média mundial é de 54%. (Foto: Cris Faga/NurPhoto/ Getty Images)

O PL 3.723/2019 representa também mais uma tentativa de ataque ao Estatuto do Desmatamento, em vigor desde 23 de dezembro de 2003. Aprovado pelo Congresso e sancionado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, estabeleceu regras mais rígidas para a compra e o porte de armas, além de penas mais duras para o comércio ilegal ou tráfico internacional. O estatuto ainda criou uma campanha de desarmamento — quem entregasse suas armas voluntariamente, com ou sem registro, recebia uma recompensa de R$ 150 a R$ 450, dependendo do calibre da peça. Em dez anos, quase 650 mil armas de fogo foram destruídas no país.

Quanto menos dessas armas em circulação, argumentavam os defensores da medida, menores os índices de homicídio. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2019, corrobora a posição dos desarmamentistas. Entre 1990 e 2003, o crescimento do número de crimes por armas de fogo foi de 5,44% ao ano. A partir de 2003, esse índice caiu para 0,85% ao ano. Embora a taxa de homicídios tenha continuado a subir, o instituto pondera que teria subido ainda mais sem o estatuto.

Entre 2003 e 2017, a política de controle de armas evitou a morte de 197,2 mil brasileiros. O cálculo foi baseado no número de vidas que seriam perdidas caso o aumento no total de crimes continuasse no ritmo anterior à lei. De acordo com o Atlas da Violência 2021, 67,7% dos homicídios no Brasil são cometidos por arma de fogo — a média mundial é de 54%, conforme aponta o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

A tese do “menos armas, menos crimes” não é compartilhada apenas por especialistas em segurança pública ou defensores do Estatuto do Desarmamento. Para pesquisadores, a perigosa conexão entre armas de fogo e índices de criminalidade também é quase um consenso. É o que revela o estudo Dossiê Armas, Crimes e Violência (2017). Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Thomas Victor Conti investigou 61 estudos acadêmicos realizados entre 2012 e 2017 e constatou que 90% deles são contrários à tese de que mais armas significam menos crimes. “Das 10 revisões de literatura ou meta-análises publicadas em periódicos com revisão por pares, nove concluíram que a quantidade de armas tem efeito positivo sobre os homicídios”, explica Conti, em seu site.

Um dos estudos analisados, coordenado pelo economista John J. Donohue, da Universidade Stanford (EUA), e publicado em 2017, revelou que os índices de criminalidade subiram até 15% nos estados norte-americanos que têm leis mais flexíveis de porte de arma e caíram até 42% naqueles onde as normas são mais rigorosas. “O controle de armas é uma tendência mundial”, garante o sociólogo Antônio Rangel Bandeira, autor do livro Armas Para Quê? (2019). “Os países mais pacíficos do mundo, como Singapura, Japão e Reino Unido, já proíbem armas para civis. Investem em boa polícia.”

Ameaça à democracia

Em 30 de março de 2022, o presidente Jair Bolsonaro compareceu à inauguração de uma estação de trem em Parnamirim (RN), na região metropolitana de Natal. A certa altura, discursou contra as urnas e a favor das armas: “Votos serão contados no Brasil. Não serão dois ou três que decidirão como serão contados esses votos”. E arrematou, em tom de ameaça: “Povo armado jamais será escravizado”. Dois dias depois, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Edson Fachin, acionou o alerta vermelho: “A Justiça Eleitoral está sob ataque. A democracia está ameaçada”.

Esse é mais um dos efeitos do incentivo ao armamento. “Além do impacto na segurança pública, o aumento do poderio bélico por grupos criminosos aumenta os riscos para a democracia”, alerta Michele dos Ramos, mestre em Segurança Internacional pela universidade Sciences Po, na França, e assessora especial do Instituto Igarapé. “A democracia não é o regime da lei do mais forte. Tampouco do mais armado”. A jornalista Cecília Oliveira, do Instituto Fogo Cruzado, vai além. “O bolsonarismo não acabará com uma eventual derrota de Bolsonaro nas urnas. Suas bandeiras seguirão vivas”, adverte. “As pessoas não vão entregar suas armas. Pelo contrário. É possível que, com a máquina de fake news alardeando a ‘volta da ameaça comunista’, se armem ainda mais.”

Estudos mostram que leis de porte de arma mais flexíveis contribuem para o crescimento dos índices de criminalidade. (Foto: DAX Images/ NurPhoto/Getty Images)

Estudos mostram que leis de porte de arma mais flexíveis contribuem para o crescimento dos índices de criminalidade. (Foto: DAX Images/ NurPhoto/Getty Images)

Capitão reformado do Exército, Jair Bolsonaro vive disparando frases do tipo: “Quando alguém invadir sua casa, dê um tiro de feijão nele!”, “Quanto mais armado estiver o povo, melhor para todo mundo” e “Se não quer comprar fuzil,não enche o saco de quem quer”. Mas o homem que gosta de fazer arminha com as mãos, postar fotos em estandes de tiro ou vestir gravata com imagens de fuzil não foi capaz de impedir o próprio assalto.

No dia 4 de julho de 1995, o ainda deputado federal foi rendido por dois homens em um semáforo em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio. Perdeu a moto, uma Honda Sahara de 350 cilindradas, e a arma, uma pistola Glock 380. “Mesmo armado, me senti indefeso”, confessou ao Jornal do Brasil, no dia seguinte ao ocorrido.

Bolsonaro agiu corretamente. Um estudo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) alerta: de cada 10 brasileiros que reagem a um assalto à mão armada, sete são baleados. Nos EUA, para cada vez que uma arma é usada sob a justificativa de matar um criminoso, 35 vítimas são assassinadas, de acordo com o último levantamento feito pelo Violence Policy Center.

Alguns dos especialistas consultados na reportagem se preocupam com a possibilidade de Bolsonaro se reeleger. “Mais quatro anos desse ‘liberou geral’ serão extremamente perigosos”, admite Natália Pollachi. Revogar os decretos, portarias e resoluções será razoavelmente fácil; difícil será tirar de circulação pistolas, revólveres e fuzis que entraram em uso nos últimos anos. “O governo Bolsonaro é irresponsável e negacionista. A arma de fogo está para a segurança pública como a cloroquina para a Covid-19. Não resolve nada”, critica Cerqueira. “Para piorar, podem durar por 40 ou 50 anos. Uma arma vendida, roubada ou extraviada hoje pode matar um pai de família lá adiante. Mais cedo ou mais tarde, essa conta vai chegar.”