• Naiara Albuquerque
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Caso mantenha o ritmo, número de liberações de novos agrotóxicos neste ano superará o recorde de 2018. Saiba como essas medidas afetam a agricultura (e a saúde) no Brasil (Foto: Ilustração: Marcelo Moreno)

(Ilustração: Marcelo Moreno)

A variedade e a abundância de alimentos disponíveis nas barracas de feira e nas gôndolas dos supermercados seriam bem diferentes sem a “Revolução Verde”, que se iniciou nas primeiras décadas do século 20 e empregou os conhecimentos industriais para aumentar consideravelmente a produção agrícola em todo o planeta. Isso tem um preço, é claro: atualmente, as substâncias químicas utilizadas para exterminar fungos e insetos que atacam as lavouras estão presentes em praticamente tudo que comemos.

E como os estudos científicos comprovaram ao longo das últimas décadas, os agrotóxicos (ou “defensivos agrícolas”, na linguagem corporativa) são remédio, mas também veneno: presente em 90% das plantações de soja no Brasil e nos principais cultivos agrícolas, o glifosato foi classificado como “provável carcinógeno humano” pela Agência Internacional de Pesquisa Sobre o Câncer (Iarc), em 2015.

Com mais de 20% de participação no Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, o agronegócio é interessado direto no desenvolvimento de produtos capazes de aumentar a eficiência de seus negócios. E ao que tudo indica, as tendências ultraliberais do atual governo também chegaram ao campo: apenas em julho de 2019, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) liberou a utilização de 51 agrotóxicos. Ambientalistas criticaram as medidas e acertaram na previsão — o país fechou o ano com recorde de aprovações de agrotóxicos: foram 474 ante 450 de 2018.

O Mapa e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmam que boa parte dos produtos liberados são “genéricos” daqueles que já eram usados. Carlos Venâncio, coordenador de Agrotóxicos e Afins do Ministério da Agricultura, alega que a maior parte desses itens são a base de substâncias já autorizadas em outros produtos. Além disso, o Mapa informou que nenhum dos agrotóxicos registrados em 2019 teve o processo iniciado no governo Bolsonaro, e foram gestados em administrações anteriores.

caso mantenha o ritmo, número de liberações de novos agrotóxicos neste ano superará o recorde de 2018. saiba como essas medidas afetam a agricultura (e a saúde) no brasil (Foto: Ilustração: Marcelo Moreno)

(Ilustração: Marcelo Moreno)

No ano passado, por exemplo, foi concedido registro ao pesticida que chegou ao mercado com o nome de Roundup Original Mais. Segundo a fabricante, a Monsanto, esse novo item que tem o glifosato como princípio ativo pode ser usado em uma quantidade 30% menor em relação aos produtos anteriores.

Para Leonardo Melgarejo, vice-presidente da regional sul da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e membro da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, as afirmações das agências do governo em relação às aprovações das substâncias são uma meia verdade. “O glifosato é o princípio ativo de uma série de outros produtos, sendo destinado a remover uma célula de proteção das plantas para que as substâncias sejam mais rapidamente absorvidas”, diz. De acordo com ele, existem produtos mais baratos e mais caros que utilizam o mesmo princípio ativo. Porém, a aprovação de “genéricos” não significa que estarão disponíveis agrotóxicos semelhantes do ponto de vista do impacto na saúde das pessoas. “Algumas substâncias serão mais perigosas do que outras”, ressalta Melgarejo.

Baixou a régua
Além da liberação dos produtos, a Anvisa aprovou recentemente um novo marco regulatório que muda a classificação das substâncias. A partir de agora, apenas aquelas que trazem risco iminente de morte serão rotuladas como “extremamente tóxicas”. Os defensivos agrícolas com potencial de causar úlcera ou corrosão de pele, por exemplo, serão reposicionados com uma classificação menos perigosa.

A decisão da Anvisa acata a adoção de um sistema de classificação internacional chamado de GHS (sigla para Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos). Especialistas ponderam que a mudança levará ao registro de novas substâncias com classificações mais baixas e brandas do que as adotadas anteriormente. Para Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Fiocruz e ex-diretor de Toxicologia da Anvisa e do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a adoção do GHS é um retrocesso. “Do ponto de vista da segurança dos trabalhadores [do campo], não avançamos. Essa mudança vem com uma capa de modernidade, mas as substâncias vão continuar com a mesma periculosidade”, explica.

Em nota, a Anvisa afirma que a adoção do novo padrão aplica-se à classificação de perigo de substâncias químicas e não à avaliação de seu risco. “A classificação sobre o perigo das substâncias será feita seguindo uma metodologia padrão que leva em consideração as características intrínsecas do produto, e continuará sendo feita pela Anvisa.”

Um levantamento recente organizado pelo Greenpeace Brasil mostra que 25% dos produtos aprovados pelo governo em 2019 não são permitidos na União Europeia. Segundo Marina Lacôrte, coordenadora da campanha de agricultura e alimentação da organização ambiental, há um interesse claro das indústrias e empresas nesse processo. “Existe um movimento mundial das indústrias nos países em desenvolvimento para aderir ao GHS”, considera. O estudo do Greenpeace categorizou as substâncias aprovadas de acordo com o Potencial de Periculosidade Ambiental (PPA) de um produto, um sistema formulado e desenvolvido pelo Ibama.

Meirelles explica que as medidas adotadas pelos órgãos do governo federal são falhas principalmente no que diz respeito à fiscalização. “Um marco regulatório tem de abarcar questões de fiscalização, monitoramento de mercado, capacitação de profissionais de saúde e trabalhadores, monitoramento de água potável e alimentos; nisso, caminhamos muito pouco”, afirma.

Questionado sobre os planos de fiscalização e cuidado com a saúde dos trabalhadores no campo, Carlos Venâncio, coordenador de Agrotóxicos e Afins do Ministério da Agricultura, reconhece a importância da temática e propõe um tipo de cadastro nacional para os trabalhadores que lidam diretamente com os agrotóxicos. “Temos a proposta de criar um cadastro nacional de aplicadores, que será feito em nível estadual. A ideia é ter um canal direto com os trabalhadores para que possamos monitorar a saúde deles”, explica.

Em nota, a Anvisa afirma que 1.942 produtos foram avaliados pela Agência e 1.924 foram reclassificados. Na nova classificação, 43 itens foram enquadrados na categoria de “extremamente tóxicos”, 79 na de “altamente tóxicos”, 136 como “moderadamente tóxicos”, 599 como “pouco tóxicos” e 899 foram classificados como “improváveis de causar dano agudo”. Além disso, outros 168 produtos foram considerados “não classificados”.

Agrotóxicos (Foto: Ilustração: Marcelo Moreno)

(Ilustração: Marcelo Moreno)

Modernização necessária?
A Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), entidade que representa as empresas que atuam em pesquisa e desenvolvimento de defensivos agrícolas no país, defendeu, em nota, a adesão da Anvisa ao novo marco regulatório. “É importante que o país avance na modernização dos regulamentos acompanhando os avanços científicos, consequentemente garantindo a segurança dos trabalhadores e consumidores, bem como tornando o sistema mais forte e ágil, com maior transparência e previsibilidade às decisões tomadas pela Anvisa.” A visão da Andef é compartilhada pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), que reúne algumas gigantes do mercado de agrotóxicos como Basf, Dow Brasil, Dupont e Monsanto.


Segundo um estudo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) feito em parceria com a consultoria de mercado Phillips McDougall, o Brasil está em sétimo lugar entre os países que mais utilizam agrotóxicos no mundo. Essa informação, porém, considera o consumo por hectare e não em números absolutos e, por isso, é bastante questionada por pesquisadores e organizações ambientais. A necessidade de reunir dados recentes sobre o uso de agrotóxicos no país, por sinal, é uma das principais demandas levantadas por grupos e entidades ouvidos pela reportagem.

Marina Lacôrte, do Greenpeace Brasil, ressalta a necessidade de maiores informações sobre o impacto dos agrotóxicos na água e nos produtos que chegam ao consumidor final. “Há um programa de análise de alimentos que está parado desde 2016”, destaca. A coordenadora da organização se refere ao Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), que desde 2016 não está mais disponível no site da Anvisa.

Segundo a agência, o PARA passou por uma reformulação a partir do ano de 2016, o que levou a uma mudança na forma de divulgação dos dados nos anos seguintes. “O programa continua em funcionamento e uma nova rodada de dados anuais deve ser apresentada até o fim deste ano [2019]”, afirmam. A Anvisa diz ainda que os dados do programa de monitoramento foram utilizados nas reavaliações recentes de alguns agrotóxicos, como o glifosato e o carbofurano.

Agrotóxicos (Foto: Ilustração: Marcelo Moreno)

(lustração: Marcelo Moreno)

Vivos, mas doentes
Uma pesquisa recente formulada pela Fiocruz, que é um órgão do Ministério da Saúde, concluiu que os agrotóxicos são extremamente tóxicos à vida, independentemente da concentração e da dose. O estudo foi desenvolvido com base na análise de dez substâncias: abamectina, acefato, alfacipermetrina, bendiocarb, carbofurano, diazinon, etofenprox, glifosato, malathion e piriproxifem. A imunologista Mônica Lopes-Ferreira, que foi convidada a realizar a pesquisa, explica que utilizou a Plataforma Zebrafish para testar o nível de toxinas presentes na água de um reservatório de peixes-zebra (Danio rerio). O método, como ela explica, é referência mundial e foi usado para analisar os impactos dos produtos no desenvolvimento dos animais.

No estudo, os agrotóxicos que causaram mais mortes dos peixes foram o malathion, o glifosato e o piriproxifem. Os demais produtos testados resultaram em anomalias diversas, como problemas de má-formação dos olhos e das nadadeiras.

De acordo com a pesquisa, mesmo quando os agrotóxicos são utilizados em doses de até um trigésimo do recomendado pela Anvisa, não existe uma dose mínima não letal. “Sou filha de um agricultor, sei da importância da agricultura para este país”, ressalta a pesquisadora. Justamente por isso, Ferreira chama a atenção para um detalhe importante do estudo: a dosagem das substâncias. “Testamos isoladamente os agrotóxicos, agora imagine só o que aconteceria ao misturar essas substâncias. Nós estamos vivos, mas doentes”, enfatiza a pesquisadora.

Após a publicação dos resultados da pesquisa, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, criticou os resultados. “Há pesticidas que são usados aqui e não na Europa porque eles não têm a mesma cultura. O Brasil não utiliza nada que não pode ser usado”, afirmou na ocasião. Após as declarações da ministra, Renato Porto, diretor da Anvisa, disse que dos dez agrotóxicos citados no estudo, um foi proibido em 2017, outro nunca teve autorização e o terceiro tem uso restrito. “Estamos bastante equivalentes aos outros países”, diz.

Mônica Lopes-Ferreira rebateu as críticas da ministra e do diretor da Anvisa e explica que as substâncias testadas no estudo foram enviadas e escolhidas pela Fiocruz, e não objetos de uma escolha própria. “Não estou dizendo para não usarmos agrotóxicos, mas vamos pensar direito. Não vamos brigar com os dados, e sim trabalhar a partir deles.”

Outro caminho é possível?
Se a suspensão do uso de agrotóxicos nas lavouras é uma realidade pouco factível para o futuro próximo, pesquisadores e entidades acreditam na viabilidade de um caminho mais ecológico e sustentável que pode ser colocado em prática agora mesmo. Ao lado de outras entidades, o Greenpeace lançou a campanha Chega de Agrotóxicos, cujo intuito é pressionar autoridades a discutir essa questão. No site da iniciativa, mais de 1,7 milhão de pessoas assinaram o abaixo-assinado que apoia o Projeto de Lei nº 6.670/2016, para instituir a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA).

Leonardo Melgarejo, do ABA, defende a mudança do atual modelo agrícola, que se baseia em grandes propriedades com monoculturas. “No início, logicamente haveria uma crise com as indústrias do agronegócio, mas precisamos de uma transição gradativa”, pontua. Atualmente, o Brasil é o maior exportador de soja no mundo; a previsão para a colheita 2019-2020 é de 123 milhões de toneladas. 

Enquanto mudanças estruturais não são observadas no campo, inovações tecnológicas são uma alternativa na racionalização do consumo das substâncias. Bernardo de Castro, presidente da divisão de agricultura da empresa de tecnologia industrial Hexagon, explica que o emprego de sistemas de precisão de aplicação de agrotóxicos evita desperdícios e falhas. “Com esses sistemas é possível racionalizar o uso de pesticidas em até 25%, além de aumentar a produtividade em 10%.” Quem topará o desafio de realizar uma agricultura saudável e sustentável?