• Luiza Monteiro
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Entrevista Marcelo Gleiser (Foto: Eli Burakian)

Marcelo Gleiser foi vencedor do Prêmio Templeton (Foto: Eli Burakian)

Para muita gente, ciência e espiritualidade são opostos que jamais se atraem. E isso é ainda mais comum entre a comunidade científica. Não é o caso do físico carioca Marcelo Gleiser, professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos. O brasileiro, de 60 anos, é um dos principais defensores da ideia de que o mundo espiritual não é distante do científico — ao contrário: eles se complementam.

Em função de seus trabalhos nessa área, Gleiser foi homenageado, em março, com o Prêmio Templeton 2019. É a primeira vez que um brasileiro recebe a distinção, acompanhada da quantia de 1,1 milhão de libras esterlinas (cerca de R$ 5 milhões). Personalidades como Dalai Lama e Madre Teresa de Calcutá já foram laureadas com o “Nobel” da espiritualidade. Cientistas que, assim como Gleiser, unem o conhecimento técnico ao religioso — a exemplo do norte-americano Charles Hard Townes e do brit��nico Freeman Dyson — também integram o grupo de vencedores. “Ganhar esse prêmio é de profunda importância para mim, como intelectual público, cientista e pessoa que trabalha muito para fazer uma pequena diferença no mundo”, diz Gleiser em um papo exclusivo com a GALILEU, da qual foi colunista até 2015.

A premiação inspirou o físico a lançar, em junho, o livro O Caldeirão Azul. A obra reúne textos do cientista publicados nos últimos anos no jornal Folha de S.Paulo e em veículos dos Estados Unidos, a rádio pública National Public Radio (NPR) e a revista científica Orbiter Magazine. “São ensaios que falam um pouco das minhas ideias sobre ciência e espiritualidade, futuro da humanidade e do planeta, além da nossa relação com a tecnologia”, explica. Os artigos selecionados têm uma pegada mais filosófica e social do que científica. Assim como em outros livros dele, a ideia é escrever para o público leigo.


Aliás, aproximar-se de pessoas que não trabalham em um laboratório (ou até mesmo nunca pisaram em um) é um dos caminhos que Gleiser considera essenciais para combater movimentos contemporâneos como os que defendem que a Terra é plana e que vacinas fazem mal. “Muitos têm medo porque equacionam ciência com poder e controle”, analisa.

Um levantamento do instituto de pesquisa britânico Welcome Trust, feito em 144 países, aponta que 64% das pessoas que são adeptas de alguma religião acreditam mais no que diz a entidade religiosa a que estão ligadas do que a ciência, quando há alguma divergência de posicionamento. Mas será que é preciso mesmo escolher um lado? Gleiser quer provar que não.

O que significa o tal caldeirão azul?

É a Terra. Quando a gente coloca os ingredientes num caldeirão, eles se transformam. É um processo dinâmico que tem uma intenção por trás: um cozinheiro, um mago ou até uma bruxa misturam diversos elementos para fazer uma poção mágica. Essa “poção mágica” seria a nossa sobrevivência; e o caldeirão azul, nosso planeta, onde todas essas transformações estão ocorrendo. É a essência de quem nós somos.

Ciência e religião sempre foram encaradas como áreas do conhecimento com interesses opostos?

Há mais ou menos 300 anos — antes de Galileu, [Nicolau] Copérnico, [Johannes] Kepler —, as pessoas se relacionavam com o mundo de forma mais unificada: não só por meio do pensamento científico mas também pela espiritualidade. Então, o mundo não era só um lugar para extrair bens e gerar riqueza; era também um espaço para se relacionar com deus, não importa qual fosse esse deus. E isso foi se perdendo com o avanço da ciência.

No século 17, Francis Bacon, o cara que desenvolveu a ideia do método científico, argumentou que a natureza deveria essencialmente ser explorada pelo homem. E isso ressoava muito bem com a Bíblia, que dizia que Deus criou os animais para nos alimentarmos. Assim, houve uma espécie de distanciamento entre as pessoas e o mundo.

PRESTÍGIO INTERNACIONAL (Foto: Felipe Hanower/Agência O Globo)

Marcelo Gleiser se formou em física na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1981. Fez mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado no King’s College de Londres. Desde 1991, dá aulas e conduz pesquisas no Dartmouth College, nos EUA. (Foto: Felipe Hanower/Agência O Globo)

Quais foram as consequências desse afastamento?

Quando a ciência se separou da religião e da filosofia e virou algo muito mais racional e adequado à exploração material do mundo, as pessoas ficaram meio desnorteadas. Se tudo era explicado pela causa e pelo efeito, relacionado com forças atuando em partículas, como ficava o amor? A moralidade? A nossa busca por sentido? A ciência veio com uma força incrível e, obviamente, fez coisas sensacionais. Eu sou cientista porque admiro e gosto de participar desse processo de descobrimento. Por outro lado, ela provocou uma crise espiritual na humanidade, que vem de um foco muito intenso no materialismo. O que tento fazer é resgatar essa espiritualidade.

E o que é espiritualidade para você?

É uma emoção que você sente quando entende de uma forma visceral, e não racional, que existem coisas muito mais profundas e essenciais na nossa existência que a gente nem percebe. Tem a ver com o homem em busca de uma transcendência da matéria, do corpo. É a nossa relação com o desconhecido.

A ciência tem algo a ensinar sobre religião?

A palavra religião vem do latim religare. É uma religação, portanto. Mas com o quê? Para mim, com o mundo natural. À medida que o homem foi desenvolvendo a civilização industrial, ocorreu um distanciamento entre as pessoas e a natureza. E a ciência é um portal para nos conectarmos com ela de novo. Afinal, o que a ciência quer? Entender como a natureza funciona. Esse tipo de questionamento sobre o mundo tem um lado espiritual muito profundo.

O criacionismo erra ao negar totalmente a evolução?

O criacionismo volta ao que chamamos de “Deus dos vãos”. É a ideia de que aquilo que a ciência não entende, Deus explica. Os “vãos” são as lacunas no conhecimento científico. “A gente não sabe exatamente como aconteceu”, “Ah, foi Deus que fez”. É totalmente inaceitável. Vemos diariamente como a teoria da evolução funciona. Não é à toa que estamos preocupados com a possibilidade de antibióticos se tornarem obsoletos — existem mutações que estão tornando as bactérias mais resistentes.

Em que pontos, na sua opinião, a teoria evolucionista peca?

Nenhuma teoria criada pelo homem é perfeita — todas têm limites. Mas, com base nas explicações já propostas sobre como a vida evoluiu na Terra, a teoria da evolução certamente é a que melhor esclarece o que a gente tem descoberto. É a única teoria? Não sei.

E ela não é um fóssil: está mudando constantemente. A questão da epigenética [quando fatores externos ao DNA influenciam nossos genes], por exemplo, é uma descoberta recente e mostra que a teoria da evolução vai se enriquecendo à medida que aprendemos mais. Não vejo pecado algum aí.

"A palavra religião vem do latim religare. Portanto, é uma religação. Mas com o quê? Para mim, com o mundo natural”"

Marcelo Gleiser sobre o que o conhecimento religioso significa para ele

Você publicamente se considera um agnóstico. Sempre foi assim?

Cresci em uma família judia no Rio de Janeiro, então tive uma formação monoteísta. Isso mudou para um ateísmo um pouco mais radical quando eu tinha meus 20 e poucos anos. Nessa época, estava mais preocupado em fazer meu doutorado, escrever meus artigos, conseguir um emprego como professor nos Estados Unidos... Mas, conforme fui ficando mais maduro, percebi que certos colegas estavam fazendo asserções muito radicais — Richard Dawkins e Stephen Hawking dizendo coisas como “A ciência matou Deus”, “Deus não existe”, “Nós provamos como o Universo começou”. Passei a me questionar sobre isso. Sempre fui uma pessoa espiritualizada, ligada com a natureza e o mistério da existência. Concluí que o agnosticismo tinha muito mais a ver com meu modo de pensar do que o ateísmo.

Quais são as diferenças entre eles?

Ateus mais radicais negam categoricamente a existência de qualquer tipo de divindade ou de presença sobrenatural no mundo. O agnosticismo também nega, mas não categoricamente.
O agnóstico diz: “Eu não tenho nenhuma evidência para afirmar que Deus existe, mas também não tenho como afirmar que não existe”. Ocorre a mesma coisa com os alienígenas: o fato de não termos indícios de que eles existam não significa que isso seja verdade. O agnóstico tem uma cabeça bem mais aberta. Até porque negar uma coisa que você não consegue provar também é uma forma de crença. Você acredita no não acreditar.

O ensino religioso nas escolas tem sido um tema bastante debatido no Brasil. Você é a favor de a religião estar no curriculo escolar?

Se você falar da religião cristã especificamente, não, porque essa é uma forma de doutrinar as crianças. O que deveria estar na grade curricular são temas como a história das religiões e a importância delas para a humanidade. Afinal, não dá para negar que elas têm um papel essencial para nossa espécie.

Movimentos como terraplanismo e antivacina vêm ganhando cada vez mais força. A que se deve isso?

Eu vejo como um ato de desespero de um grupo de pessoas que se veem manipuladas pela ciência e pela tecnologia. Elas se sentem ameaçadas e tentam resgatar algum tipo de controle sobre suas vidas. Tudo bem criticar a ciência e a intervenção da tecnologia no nosso dia a dia, mas desde que isso seja feito com informação, e não de uma maneira ignorante. Como pode, no século 21, alguém ter coragem de falar em Terra plana?

Você acredita que seja possível combater essa tendência? Como?

Uma das coisas que está faltando na comunidade científica do mundo inteiro é se interessar em falar com as pessoas sobre o que é a ciência e como ela funciona. Essa ideia de o cientista se tornar um intelectual público é muito importante. Mas, principalmente no Brasil, acontece pouquíssimo. Se os cientistas visitassem mais escolas públicas, contassem às crianças o que eles fazem  em áreas como biologia, geologia, química… É um processo de longo prazo, porém essencial. A maioria das pessoas cresce sem conhecer um único cientista na vida. Eu mesmo me tornei cientista sem nunca antes ter conhecido um. Outro caminho importante seria fazer uma revisão no currículo escolar para ensinar ciência de uma forma interessante, que motive os alunos a querer aprender mais.

Como você avalia a postura do governo brasileiro de questionar o papel e a credibilidade das universidades?

O que está acontecendo no Brasil em termos de política científica e tecnológica, cortes no orçamento e perseguição dos intelectuais brasileiros das áreas humanas é absolutamente trágico e profundamente errado. Mostra quanto o Brasil está olhando para o passado, e não para o futuro. Os países que hoje controlam a economia mundial apostaram durante décadas no desenvolvimento da ciência e da tecnologia, por isso estão no comando. Estados Unidos, China, França, Inglaterra, Alemanha, Coreia do Sul, Japão — todos você correlaciona com tecnologia, e não com soja, galinha, carne. Para mim, o Brasil não apostar em ciência e tecnologia é se condenar a continuar sendo um país de extração mineral e agropecuária.

Você é o único brasileiro a ganhar o prêmio Templeton. Como foi ter esse reconhecimento?

O Templeton é um dos prêmios mais importantes do mundo — está junto com o Nobel e poucos outros. É profundamente transformador. Primeiro porque é uma honra gigantesca fazer parte da lista de pessoas que ganharam esse prêmio. Não só líderes religiosos, como Dalai Lama e Madre Teresa [de Calcutá], mas também outros cientistas.

Agora... dá um certo medo. Você tem que tomar mais cuidado com o que fala ou escreve, porque sua palavra ganha um peso ainda maior. Vejo que isso já está acontecendo: minha voz alcança um público muito maior hoje, no Brasil e em outros países. E isso é legal porque tenho muita coisa a dizer, especialmente sobre o futuro da humanidade.

Poderia falar um pouco sobre como você acha que  será nossa vida no futuro? Quais serão os maiores problemas que enfrentaremos?

Daqui a 20 anos, acredito que o mundo vai ser profundamente diferente, por vários motivos. As mudanças climáticas, por exemplo, já estão afetando de forma muito séria o planeta como um todo; a população está crescendo e temos de pensar em como vamos alimentar e gerar energia para todos.

Tem também a questão da inteligência artificial e do mercado de trabalho: nós vemos uma automação cada vez maior das linhas de produção. Como consequência, certas profissões podem deixar de existir, porque esse processo vai acontecer em um ritmo tão rápido que não vai dar tempo de treinar as pessoas para novas funções. E como vamos lidar com esse cenário? Todas essas questões me preocupam.

O CALDEIRÃO AZUL  Marcelo Gleiser. Editora Record. 224 páginas. R$ 49,90  (Foto:  )

O CALDEIRÃO AZUL Marcelo Gleiser. Editora Record. 224 páginas. R$ 49,90 (Foto: Divulgação)