• Thiago Tanji
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"Os povos indígenas não negam o direito de serem brasileiros", afirma Costa 

O Dia do Índio de 2016 foi histórico para o povo Munduruku. Em 19 de abril, a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicou um relatório no Diário Oficial da União que delimitava a terra indígena Sawré Muybu, no Pará, e dava continuidade ao processo de demarcação do território de 173 mil hectares. Historicamente ocupada pelos Munduruku, a região estava ameaçada pelo projeto de construção da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, que previa a inundação de parte das terras indígenas. Com a divulgação do estudo da Funai, a construção da obra ficou mais difícil.No fogo cruzado entre os interesses do setor energético e as demandas indígenas, João Pedro Gonçalves da Costa decidiu pela demarcação das terras Munduruku. “Foi uma angústia: no dia seguinte à publicação, foram uns cem telefonemas a favor e outros cem contra”, afirma o ex-presidente da Funai.

Exonerado do cargo no início de junho do ano passado, após o afastamento de Dilma Rousseff, Costa esteve à frente da Funai por pouco menos de um ano — assumira a presidência do órgão em 17 de junho de 2015. Nascido na cidade amazonense de Parintins, exerceu cargos legislativos pelo Partido dos Trabalhadores. Como senador, entre 2007 e 2011, elaborou projeto de lei para a criação de universidades para os povos da Amazônia.

O ex-presidente da Funai se mostra preocupado com o cenário político: no final de dezembro, o Ministério da Justiça estudava uma proposta que paralisaria 280 processos de demarcação, além de modificar a legislação que garante o reconhecimento das terras indígenas. De acordo com o decreto, locais previamente demarcados poderiam ser contestados na Justiça por pessoas interessadas em ocupar a mesma região. “O perfil desse governo é de retrocesso para os povos indígenas”,  afirma Costa. Confira a entrevista completa a seguir: 

Por que existe essa invisibilidade em relação à luta dos povos indígenas?

Com a expansão do agronegócio, há uma narrativa que esconde os direitos indígenas. É um processo sutil, que vem das escolas, de negação da pluralidade étnica que compõe a sociedade brasileira. No Brasil, temos 305 povos reconhecidos, com mais de 270 línguas faladas. Há uma grande diversidade. A Constituição de 1988 avançou nesse reconhecimento, mas tem sido uma luta dura reconhecer aquilo que está em nossa Carta Magna.

A Constituição de 1988 estipulava um prazo de cinco anos para fazer a demarcação de todas as terras — e isso não foi realizado...

A Constituição colocou o prazo de cinco anos, mas há um jogo político na demarcação das terras, além do Poder Judiciário, que se apresentou como um espaço de dificuldades. É contraditório: ao mesmo tempo que precisamos ir à Justiça para reconhecer a ancestralidade dos povos indígenas, é na Justiça que o agronegócio tem barrado os estudos legítimos do reconhecimento dessas terras.

Quais são as principais dificuldades enfrentadas para realizar a demarcação?

Há toda espécie de tentativa de impedir esse reconhecimento, até com a presença de grupos armados a serviço do latifúndio e dos madeireiros. Em algumas regiões, como no sul do Amazonas e norte do Maranhão, encontram-se milícias para intimidar servidores da Funai e os índios. Outra dificuldade é a suspensão de trabalhos de pesquisa para demarcação das terras por conta de decisões judiciais.

Há algum momento marcante que recorda do período que passou na presidência da Funai?

Em um acampamento no Rio Grande do Sul, encontrei-me com o povo Kaingang, que há 11 anos vivia acampado na margem da estrada. E decidi pelo reconhecimento de uma terra daquele povo tradicional, a contragosto dos fazendeiros. Por 11 anos, cem famílias ficaram acampadas na estrada, sofrendo com frio, calor, agressões, intimidações. Também foram marcantes minhas visitas ao povo Guarani-Kaiowá: ao andar por aquelas terras, você sente o choro e, ao mesmo tempo, a resistência e a convicção de que eles têm direito àquelas terras no Mato Grosso do Sul.

Como avalia o seu trabalho à frente da Fundação?

A agenda dos povos indígenas no Brasil não tem nenhuma facilidade, é absolutamente tensa. Há sempre uma disputa pelo reconhecimento dos direitos desses povos. Foi uma passagem com todas as dificuldades, com pressão do agronegócio, do latifúndio, dos madeireiros. Um ano de muita luta e esforço, atuando ao lado do movimento indígena e também acompanhando o Congresso Nacional, que tem muitos parlamentares conservadores e ligados ao agronegócio. No Brasil, existe uma pressão em não reconhecer a cultura, os povos e a terra indígena.

O plano de “governabilidade” da gestão petista travou a demarcação das terras?

Poderia se fazer mais? Poderia. Mas é uma correlação de forças e isso acaba influenciando no resultado da política indigenista no país. Tivemos a experiência de composição de forças políticas, com partidos de esquerda e até de centro-direita, como PTB, PP, PMDB. Houve avanços significativos no reconhecimento das terras, mas foi um processo difícil. A disputa é dura, desleal: o Estado brasileiro precisa olhar com mais responsabilidade para isso, não podemos negar o direito à terra e à cultura dos povos indígenas.

Em seu mandato foram delimitadas apenas 12 terras, todas elas durante a conclusão do processo de impeachment de Dilma Rousseff...

Se não tomasse a decisão naquele momento, quem a tomaria depois? Nunca mais. Espero estar enganado, mas a minha avaliação é de que não haverá nenhum avanço; o perfil desse governo é de retrocesso para os povos indígenas.

E como foi a publicação da demarcação de terras na região do Rio Tapajós, que inviabilizou a construção da hidrelétrica?

Eu havia conversado com lideranças dos Tapajós, lido o relatório do povo Munduruku. E acompanhei a discussão com o Ministério de Minas e Energia, que tinha uma concepção de expandir e executar os projetos energéticos. Estou confessando aqui pela primeira vez: tomei a decisão de que assumiria a demarcação daquelas terras. O que calçou minha canetada foi o compromisso com os povos indígenas. E foi um susto, uma angústia: no dia seguinte à publicação, foram uns cem telefonemas a favor e outros cem contra. Não foi fácil, mas a decisão foi tomada.

Os povos indígenas desejam se integrar à sociedade brasileira ou apenas querem o direito de viver em paz em suas terras, sem a interferência do Estado?

Os povos indígenas não negam o direito de serem brasileiros. Mas eles exigem o direito à cultura, o respeito à língua, às crenças, à dança, à pintura, à terra. Nós precisamos, como sociedade branca, conviver com essas diferenças. Temos de ter essa relação respeitosa, reconhecendo as culturas, e não olhando de forma exótica, como se fosse um povo de segunda categoria. É importante o Estado brasileiro reconhecer as terras e a tradicionalidade dos povos indígenas.