• Giuliana Viggiano
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História de bar em bar (Foto: Ilustração: Fernando Molina)

(Ilustração: Fernando Molina)

Em 2016, pesquisadores britânicos descobriram uma placa com símbolos cuneiformes — uma das primeiras técnicas de escrita desenvolvidas pela humanidade — em uma região do Iraque onde viveu a civilização Assíria há mais de 5 mil anos. O objeto arqueológico revelava uma particularidade curiosa: na placa estavam registradas as palavras equivalentes a “cerveja” e a “holerite”, o que levou os cientistas à conclusão de que a bebida alcoólica era o pagamento dos trabalhadores da época.

Nada como um happy hour animado após um dia duro de labuta. Mais do que uma ode às alegrias (e às tragédias) vividas pela humanidade, entender a relação das primeiras civilizações com a cerveja é também uma maneira de estudar como o conhecimento humano foi capaz de desenvolver tecnologias que solidificaram as relações econômicas, sociais e culturais ao longo da História.

Reproduzida com uma receita do Egito Antigo, a cerveja feita em laboratório ficou com gosto  frutado e semelhante ao de um queijo (eca!) (Foto: Ilustração: Fernando Molina)

Reproduzida com uma receita do Egito Antigo, a cerveja feita em laboratório ficou com gosto frutado e semelhante ao de um queijo (eca!) (Ilustração: Fernando Molina)


Obtido por meio da fermentação de açúcares, o álcool etílico acompanha a humanidade há pelo menos 10 mil anos: pesquisadores descobriram vestígios da bebida em jarros encontrados no Irã. A data coincide com o advento da agricultura, quando a humanidade passou a dominar a terra e conseguir produzir em larga escala as matérias-primas que dariam origem a alimentos como o pão e à cerveja.

No Egito Antigo, consumir o “pão líquido” era uma questão de pura necessidade. De acordo com o especialista Michael Klutstein, da Universidade de Jerusalém, todos bebiam cerveja, até mesmo as crianças. “A água era contaminada e imprópria para consumo. Cada pessoa ingeria entre 3 e 6 litros de cerveja por dia na época”, afirmou em entrevista à GALILEU.

Klutstein faz parte da equipe israelense que recriou a “cerveja dos Faraós”, de 5 mil anos de idade. O feito foi possível porque os pesquisadores descobriram uma levedura da época utilizada no processo de fermentação da bebida, o que lhes permitiu atingir um resultado parecido com a gelada feita no passado. “Degustadores profissionais descreveram o gosto como ‘frutado’ e ‘caseoso’”, conta.

Para quem não está acostumado com a linguagem gourmet, caseoso significa uma aparência ou um gosto similar ao de um queijo (e você pensando que as cervejas artesanais diferentonas eram exclusividade do século 21). Klutstein também explica que a produção de cervejas era vital para a sociedade egípcia daquele período, mais importante até que a fabricação de pães.

Tal particularidade, entretanto, não era exclusiva dos povos que viviam naquela região do planeta. Um time de arqueólogos dos Estados Unidos publicou, no início de 2019, um estudo que revela a importância do consumo da bebida local, conhecida como chicha, para o fortalecimento de traços culturais e a estabilidade política do império Tiauanaco-Huari. Esse povo viveu nas montanhas de Cerro Baúl, ao sul do Peru, estabelecendo seu poder na região entre 500 d.C e 1000 d.C. De acordo com as análises realizadas, as mulheres da elite local eram responsáveis pela preparação da bebida — que provavelmente só era consumida por pessoas da mesma classe social e em comemorações.

Segredo medieval
Enquanto ditava costumes e castigava os fiéis que fugiam da retidão moral apregoada durante a Idade Média, a Igreja Católica produzia litros e mais litros de cerveja em suas abadias na Europa. Detentores do conhecimento, os monges eram responsáveis por criar receitas para a produção de cervejas de boa qualidade (a bebida era considerada mais segura do que a água infectada dos castelos e vilarejos).

A tradição se manteve com o passar dos séculos (veja abaixo). Em maio de 2019, monges de uma abadia na Bélgica encontraram um caderno recheado de receitas para fermentação alcoólica. Segundo Michael Parker-McCrory, porta-voz da abadia, os registros foram escondidos por padres em 1798, quando o templo foi incendiado.

Encontrar o livro motivou os membros da cervejaria belga Grimbergen a lançar uma edição especial da bebida dos monges, que será vendida em uma rede de mercados na Europa. “A nova microcervejaria apresentará a fabricação de cervejas de volta ao seu ponto de partida medieval”, relatou McCrory. A ideia, diz, é “combinar a tradição com técnicas modernas”. Isso porque, sem a utilização de ingredientes contemporâneos, o sabor da cerveja seria literalmente parecido com o de um “pão líquido”. Afinal de contas, nem sempre aquilo que é retrô é necessariamente gostoso.

Cervejarias antigas que ainda estão na ativa

WEIHENSTEPHAN
Fundada em 1040 em um mosteiro alemão na região da Baviera. É considerada a cervejaria mais antiga do mundo ainda em operação.

WELTENBURG
Instalados em um convento alemão desde o século 7, os monges iniciaram a produção da cerveja em 1050.

AUGUSTINER-BRÄU
É a cervejaria mais antiga da cidade de Munique: foi fundada em 1328 na terra do Oktoberfest.

GROLSCH
Cervejaria criada em 1615 na cidade holandesa de Groenlo, passou pelo controle de diferentes famílias e hoje faz parte do grupo japonês Asahi.

SMITHWICK'S
Fundada na Irlanda em 1710, utiliza uma receita típica da região para produzir uma cerveja mais “encorpada” em relação ao gosto brasileiro.