• Nathan Fernandes
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Pintura do filósofo francês Michel Foucault  (Foto: Flickr/thierry ehrmann/Creative Commons)

Pintura do filósofo francês Michel Foucault (Foto: Flickr/thierry ehrmann/Creative Commons)

Em outubro de 1975, o filósofo francês Michel Foucault estava em São Paulo para ministrar um curso sobre a história da sexualidade, na Universidade de São Paulo (USP), quando agentes da ditadura militar iniciaram uma série de prisões de alunos, professores e jornalistas. Os estudantes organizaram uma assembleia em protesto e contaram com o apoio do famoso pensador, que cancelou o curso em solidariedade à situação.

“Uma universidade que não é plenamente livre não passa de uma empresa de servilismo. Não dá para lecionar sob o tacão das botas; não dá para falar diante dos muros das prisões; não dá para estudar quando as armas ameaçam. A liberdade de expressão e de pesquisa são sinais de garantia de liberdade dos povos. (...) Saiba a Universidade de São Paulo que sua luta hoje relaciona-se à luta pela liberdade em todos os países do mundo. Presto minhas homenagens à sua coragem e me associo de bom grado às decisões que vocês possam tomar para conseguir que a justiça aqui não seja uma palavra ultrajada”, afirmou ele em um pronunciamento, registrado no livro Impressões de Michel Foucault (n-1 Edições), de Roberto Machado, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e amigo do filósofo francês.

Dois dias depois do pronunciamento, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nos porões do Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Foucault, então, cancelou o curso que daria e, em protesto, afirmou que não ensinava em países onde jornalistas eram torturados e mortos nas prisões.

A posição de um dos maiores intelectuais do século 20 em relação à ditadura reflete o fascínio que ele tinha por um tema, que era recorrente em sua obra: as relações de poder.

“O poder em Foucault não é uma divindade filosófica”, escreve no periódico online Aeon Colin Koopman, professor de filosofia da Universidade do Oregon, nos Estados Unidos. “A afirmação mais crucial de Foucault sobre o poder é a de que devemos nos recusar a tratá-lo como os filósofos sempre trataram seus temas centrais, como uma coisa unitária e homogênea que é tão familiar consigo mesma que pode explicar todo o resto.”

Apesar de ser bastante associado ao conceito de poder, Foucault jamais forneceu uma teoria unificada sobre o tema. Seu trabalho recai mais sobre a análise do tema e seus reflexos na sociedade, oferecendo uma visão única.

Para compreender o que Foucault entendia por “poder” é preciso ter uma ideia de como os filósofos antes dele interpretavam o conceito: o pai da sociologia, Max Weber, por exemplo, acreditava que o poder do Estado consistia no “monopólio do uso legítimo da força física”; já o inglês Thomas Hobbes acreditava na possibilidade de um “Estado Soberano”, em que todos abdicariam de sua liberdade em favor da paz civil, e chamou isso de Leviatã.

Seguindo a lógica hobbesiana, Foucault concebia a ideia de violência exercida pelas corporações sobre os trabalhadores; da violência dos homens sobre as mulheres no patriarcado; e da violência dos brancos sobre os negros através do racismo estrutural. Para ele, essas demonstrações de força são amostras do poder soberano descrito por Hobbes. Mas ele duvidava que o poder só poderia assumir uma forma única, e chegou a propor outras formas que podem coexistir ou mesmo entrar em conflito umas com as outras.

No livro em que disserta sobre como a sexualidade persiste em uma sociedade que a reprime, História da Sexualidade, Volume Um, o filósofo apresenta uma dessas formas de poder: o biopoder, o qual não proíbe o sexo, mas o reduz a questões de reprodução e saúde. Para ele, a ideia de classificar a homossexualidade como “perversão”, no século 19, por exemplo, foi uma manifestação desse biopoder.

O filósofo Michel Foucault (Foto: Divulgação)

O filósofo Michel Foucault (Foto: Divulgação)

Em Vigiar e Punir, uma de suas obras mais influentes, Foucault apresenta outra forma de poder: o poder disciplinar. Segundo suas análises históricas e filosóficas, a disciplina é uma maneira de fazer as pessoas se adequarem a uma determinada norma. Ao contrário da soberania, que derruba quem não a obedece, a disciplina se baseia em outras formas de agir. “Ela trabalha de maneira mais sutil, com um cuidado requintado, a fim de produzir pessoas obedientes”, explica Koopman. “Foucault chamou os produtos obedientes e normais da disciplina de 'sujeitos dóceis'.”

Para representar essa forma do poder disciplinar, Foucault usou como exemplo o antigo e quase esquecido conceito de “Panóptico”, criado pelo filósofo Jeremy Bentham, no século 19. A ideia consiste em um modelo de prisão, no qual todas as celas estão arranjadas em forma circular. No meio do círculo, uma torre alta é colocada, de forma que quem esteja lá consiga ver o interior das celas. Mas, apesar de conseguir ver a torre, quem está dentro das celas não consegue perceber se está sendo vigiado ou não, por conta do modelo da janela (parecido com uma persiana). Com isso, os prisioneiros passam a se auto vigiar e a evitar cometer infrações porque nunca sabem se há alguém olhando ou não.

A não ser por testes isolados, esse conceito de prisão nunca saiu do papel, mas ajudou Foucault a entender que uma pessoa não precisa estar trancada em uma cela para ser submetida a esse tipo de poder disciplinador e vigilante do Panóptico. Em Vigiar e Punir, ele questiona: “É surpreendente que prisões se pareçam com fábricas, escolas, quartéis e hospitais?”.

Complexa e provocativa, a obra de Foucault permanece como uma das mais importantes contribuições da filosofia para os dias de hoje. Além das relações de poder, a obra do filósofo francês também traz ensinamento sobre a própria vida. “Aqueles que temem a liberdade acham Foucault muito arriscado. Mas aqueles que estão dispostos a decidir hoje o que deve começar a ser entendido como liberdade amanhã, acham-no (...) libertador”, escreveu Koopman. “A abordagem de Foucault em relação ao poder e à liberdade, portanto, é importante não apenas para a filosofia, mas também em como a filosofia pode contribuir para a mudança de ordem das coisas nas quais nos encontramos.”

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