• Fernanda Ezabella, de Vancouver (Canadá)
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O QUE É BONITO... Nem sempre precisa ser mostrado. Dalia foi a primeira funcionária a usar hijab na Casa Branca: “Muçulmanos acreditam que devem tornar privados aspectos de sua beleza física”. (Foto: Mark Mahaney)

O QUE É BONITO... Nem sempre precisa ser mostrado. Dalia foi a primeira funcionária a usar hijab na Casa Branca: “Muçulmanos acreditam que devem tornar privados aspectos de sua beleza física”. (Foto: Mark Mahaney)

“O que você pensa quando olha para mim?” Dalia Mogahed fez a pergunta logo de cara, ao subir ao palco do TED, evento de ideias inovadoras que acontece todo ano em Vancouver. “Sou mãe, adoro café — espresso duplo com leite separado —, sou introvertida, gostaria de ser fanática por exercícios e sou uma muçulmana praticante. Mas, ao contrário do que diz Lady Gaga, ‘não nasci desse jeito’. Foi uma escolha.”

Dalia foi a primeira religiosa que usa hijab a trabalhar na Casa Branca. Em 2009, foi convidada por Barack Obama para ser conselheira do Gabinete de Parcerias Baseadas em Fé e Vizinhança. O órgão executivo é formado por 25 religiosos e estudiosos seculares, e fez de Dalia a principal janela do presidente norte-americano para o mundo islâmico durante os dois anos em que ela integrou o conselho. No período, ela falou ao Senado sobre a percepção da comunidade em relação ao governo e contribuiu com um grupo que estudava extremismo no Departamento de Segurança Nacional.

“Quando fiz 17 anos, resolvi sair do armário. Não como gay, como muitos de meus amigos, mas como muçulmana”, disse em sua palestra. “Minhas amigas feministas ficaram chocadas. Mas não aceitei pacificamente a fé de meus pais. Eu lutei com o Alcorão. Li, questionei, duvidei. No final das contas, acreditei.”

Nascida no Egito em 1974, Dalia migrou para os Estados Unidos aos quatro anos e se formou em Engenharia Química e em árabe pela Universidade do Estado de Wisconsin. Hoje, é diretora de pesquisa do Instituto de Política Social e Compreensão, um think tank com sede em Washington criado após os ataques de 11 de Setembro para estudos sobre muçulmanos no país.

Mas tantos cargos de nomes sérios não tiram o bom humor de Dalia, que adora fazer piadas sobre as longas filas que costuma causar na segurança de aeroportos. À GALILEU ela falou sobre o medo que sente da atual corrida presidencial norte-americana, sobre o que o véu representa para as mulheres e sobre as estratégias de recrutamento do Estado Islâmico no Oriente Médio e no Ocidente.

Qualquer força mobilizadora no Oriente Médio usa a religião. Havia uma campanha para salvar um recife no Mar Morto e o slogan era “Deus espera que você cuide da natureza”. (Foto: Ryan Lash)

Qualquer força mobilizadora no Oriente Médio usa a religião. Havia uma campanha para salvar um recife no Mar Morto e o slogan era “Deus espera que você cuide da natureza”. (Foto: Ryan Lash)

Que conselhos deu ao presidente durante sua passagem pela Casa Branca?
Dei conselhos de maneira formal e pessoal. O mais recente era para que ele fizesse da islamofobia uma prioridade nacional, e não apenas restringisse as campanhas a uma pequena comunidade. Porque o preconceito com muçulmanos está degradando a nossa democracia, nosso discurso político. E acredito que Obama está levando isso a sério, fez alguns discursos sobre o assunto.

Fora os discursos, viu algo de concreto sendo realizado?
Sim. Por exemplo: neste momento, há muitas crianças sofrendo bullying, e às vezes isso parte inclusive de adultos, como no caso do garoto do relógio (Ahmed Mohamed, 14 anos, foi preso em setembro de 2015 por levar um relógio caseiro para a escola e ser denunciado por um professor, que achou que o objeto fosse uma bomba; mais tarde Mohamed foi recebido por Obama). Fizemos um encontro com o Departamento de Educação para ajudar educadores a entender melhor as diretrizes contra o bullying para que todos se sintam seguros, independentemente de religião e etnicidade.

Qual é seu sentimento em relação à atual corrida presidencial?
Estou preocupada, de fato. Não com a possibilidade de eles (os republicanos) ganharem, mas com o que vai acontecer depois dessas eleições que estão dividindo a população ao meio. Mesmo que o candidato democrata vença, ainda teremos de viver todos juntos, ainda seremos um país só. O que vamos fazer então? Como vamos criar uma ponte sobre esse abismo de desentendimento e suspeitas? Acho que é o desafio de uma vida, da nossa geração.

O que é feito pelas mesquitas e comunidades para evitar a radicalização de jovens como os terroristas de Boston, em 2013, ou de San Bernardino, em 2015?
Nossa defesa contra a radicalização é dar ensinamentos religiosos e literatura adequados. Assim você evita formar gente vulnerável a predadores online de qualquer tipo. E isso não apenas para lutar contra radicalismo. A porcentagem dos jovens que viram radicais é muito, mas muito pequena. Mesmo os policiais dizem que não podem fazer disso uma prioridade porque os números são irrisórios, e eles precisam se preocupar com gangues e traficantes. É bem mais provável que um jovem muçulmano se envolva com drogas do que com o Estado Islâmico. Entre 30% e 40% dos jovens muçulmanos nos Estados Unidos usam algum tipo de droga, uma porcentagem não muito diferente de jovens em geral no país.

E o que faz, então, um jovem se afastar da religião e virar radical?
Olhamos para extremistas ideológicos de todos os tipos e todos têm algo em comum: a alienação. Não é a posição socioeconômica que é determinante, é a alienação. Precisamos ouvir os jovens quando eles se sentem irritados com alguma coisa, precisamos ajudá-los a dar sentido às coisas em vez de simplesmente descartá-los. Olhamos para os casos de Boston, de San Bernardino, e em ambos os radicais haviam deixado a comunidade e estavam fora fazia anos quando cometeram seus atos de violência. Não é uma coisa coletiva, que a comunidade apoia. Por isso é importante manter os jovens enraizados na comunidade. Uma vez que se vão, é apenas eles e a internet.

Você comentou em sua palestra que decidiu usar hijab como forma de empoderamento feminino. Pode explicar?
Falava da minha experiência pessoal. Quando tinha 17 anos, resolvi vestir hijab. Era começo dos anos 90. Realmente, senti que o que eu estava fazendo era tornar minha aparência física mais privativa. E, ao fazer isso, estava me apropriando dela. Basicamente, tirando minha aparência física do jogo, numa discussão profissional, posso estar lá com minha mente, coração e intelecto. E todas essas coisas (gesticula ao redor da cabeça e do corpo) ficam de lado, no meu controle pessoal. Mas, primeiramente, é um ato de devoção religiosa. Muçulmanos acreditam que homens e mulheres devem tornar privados aspectos de sua beleza física. As pessoas creem que seja só com mulheres, mas é assim com homens também. Acontece que cabelos e barbas não são considerados um ornamento de beleza masculino. As mulheres gastam muito mais tempo, dinheiro e energia com seus cabelos, é parte de sua beleza, e tudo bem, não precisa brigar. Então a gente cobre.

Como muda a relação de gêneros nos dois mundos?
Em alguns casos, vejo que os muçulmanos precisam mudar, que têm que evoluir em assuntos que já foram resolvidos em sociedades ocidentais como os Estados Unidos. Em outros, sinto que a sociedade muçulmana acertou melhor que o Ocidente. Acho que a objetificação da mulher é um problema por aqui, e no mundo muçulmano há menos disso. No Oriente Médio também há muitas mulheres indo para escolas de medicina e engenharia, e aqui elas ainda são minoria. Ao mesmo tempo, acho absurda a ideia de que assédio sexual é culpa da mulher. Nos Estados Unidos isso até é uma questão, mas no Egito, onde eu nasci, é um problema gigante.

Como explica o fenômeno do Estado Islâmico e sua ligação com a religião?
Grupos como o Estado Islâmico existiriam mesmo que o islamismo não existisse, porque são produtos de uma realidade sociopolítica complexa. A religião é apenas a língua do momento. Terroristas dos anos 60 não usavam religião para recrutar pessoas na mesma região e da mesma etnicidade. Eles usavam o radicalismo do nacionalismo árabe. Atribuir o contexto como causa é errar o diagnóstico do problema.

Por que então mudaram de nacionalismo para religião?
A resposta é que o nacionalismo árabe fracassou, não funcionou depois de tantas derrotas para Israel. O que temos sobrando então? Bem, somos muçulmanos, então essa será a nossa moeda agora. Qualquer força mobilizadora no Oriente Médio usa a religião. Ouvimos apenas sobre violência, mas campanhas de literatura são muitas, e todas usam a religião. Campanha para acabar com circuncisão feminina? Só o Islã pode colocar um fim. Campanhas ambientais também. Havia uma para salvar um recife de coral no Mar Morto e o slogan era algo como “Deus espera que você cuide da natureza”. Então, quando você vê o Estado Islâmico usando a religião, é porque é algo que todo mundo faz, para qualquer causa.

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