• Oscar Nestarez*
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Retrato de Sir Arthur Conan Doyle (Foto: Reprodução)

Retrato de Sir Arthur Conan Doyle (Foto: Reprodução)

Hoje, é praticamente impossível separar o nome de Arthur Conan Doyle (1859-1930) de suas criações mais famosas: Sherlock Holmes e o doutor John H. Watson. Foram dezenas e dezenas de histórias sobre o detetive de Baker Street e seu companheiro, que surgiram para o mundo em 1887, com a publicação do romance Um Estudo em Vermelho. A partir daí, o autor britânico nascido na Escócia escreveu e publicou cerca de 60 narrativas centradas nos dois personagens, que até hoje permanecem entre os mais celebrados da literatura ocidental.

Mas há um aspecto da criação de Conan Doyle que é menos conhecido. Não nos referimos às obras religiosas, de cunho espiritualista (doutrina mediúnica que o autor seguiu até o final da vida), escritas a partir de 1916, como A Nova Revelação (1918) e A Mensagem Vital, (1919). Trataremos, aqui, de seus relatos de horror — que, assim como essa crença religiosa, expressam o fascínio do autor pelo que está além da explicação lógica, científica. Pois Conan Doyle escreveu diversas narrativas breves de horror sobrenatural, psicológico e grotesco, entre outras vertentes. Mas não são tantos os fãs da literatura sombria que sabem disto.

Preenchendo uma lacuna
No Brasil, o desconhecimento é até compreensível. Muitos desses relatos estão fora de catálogo há alguns anos por aqui — ou vêm sendo reeditados de forma esparsa em antologias. Um volume lançado recentemente pela Escotilha, clube de assinaturas da editora Novo Século, pretende ocupar essa lacuna — trata-se de Histórias de horror e mistério. A edição traz 12 narrativas breves, divididas em dois grupos: seis contos de horror e seis de mistério, à moda dos relatos detetivescos que alçaram Conan Doyle às alturas (mas sem a presença de Holmes).

As narrativas de horror reunidas na coletânea foram escritas entre o final do século 19 e o começo do século 20. E apontam para uma tradição que, já naquela época, consolidava-se e dividia-se em vertentes variadas. É importante destacarmos a semente dessa ramificação: as narrativas góticas. Originadas no século 18 com a publicação de O Castelo de Otranto, do britânico Horace Walpole, hoje essas histórias são reconhecidas como fundadoras da chamada literatura fantástica ou insólita — textos que propõem o confronto entre realidade conhecida e irrealidade, entre naturalidade e sobrenaturalidade; por isso, são textos que provocam hesitação, inquietação e assombro nos leitores.

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A influência de Poe  
A ficção literária de horror começa a se desenvolver a partir daquele momento. Ainda que a categoria “literatura de horror” só tenha sido formulada em meados do século 20, não restam dúvidas a respeito de sua derivação do gótico/fantástico. Também não se questiona que o escritor norte-americano Edgar Allan Poe tenha sido o principal responsável pela consolidação dessas narrativas, tanto na forma quanto nas temáticas exploradas.

Depois de o autor de O Corvo, as vertentes sombrias da literatura nunca mais foram as mesmas. Conan Doyle sabia muito bem disso e reconheceu a influência poeana em sua obra. Sobre a criação de Sherlock Holmes, o autor britânico foi enfático: “onde estavam as histórias de detetive até que Poe aparecesse e soprasse vida nelas?”, disse certa vez. Em outra ocasião, ele afirmou que “cada um dos contos [...] de Poe é uma raiz da qual desabrocha uma literatura inteira”.

O alcance dessa influência é evidente em algumas das Histórias de horror e mistério. Nos contos que compõem a antologia, constatamos que Poe inspirou Conan Doyle em campos temáticos que, hoje, são bastante recorrentes no horror. Entre eles, a vingança e a incontornável perversidade humana, como observado nos relatos A Nova Catacumba e O Caso de Lady Sannox.

Sir Arthur Conan Doyle (Foto: Reprodução)

Sir Arthur Conan Doyle (Foto: Reprodução)

Horror, sublime horror
Alguns dos relatos de Conan Doyle também exploram o fascínio exercido pelo desconhecido e pelo sobrenatural. Esse procedimento é relacionado ao sublime — um motivo presente em Poe e definitivamente consagrado por outro grande nome da literatura de horror, o norte-americano H.P. Lovecraft. É caso de O Horror das Alturas, que nos apresenta a um aviador decidido a quebrar um recorde de altitude, mas que acaba se deparando com… bem, chamemos de “manifestações aterradoras”.

O tema do monstruoso, tão recorrente nas histórias de horror de todos os tempos, também marca presença aqui. Em Terror da Fenda de Blue John, acompanhamos as jornadas de um homem por cavernas isoladas em busca de uma criatura “como nenhum pesadelo jamais trouxera à minha imaginação”. Da mesma forma, o confronto entre humanidade e feras horrendas será o fundamento de O Gato Brasileiro, em que a tensão e o suspense são habilmente trabalhados pelo autor.

Há espaço, ainda, para a vertente do horror psicológico. Nessa categoria literária, encontram-se narrativas nas quais a sugestão e o não dito assumem papel central; lacunares, os textos convocam a nossa imaginação a percorrer, por conta própria, os territórios ameaçadores da ficção. É o que acontece no conto O Funil de Couro, em que o narrador passa a noite — e vive uma experiência aterrorizante — na casa de um amigo interessado por ocultismo e aficionado por missas satânicas.

Na companhia dos góticos
Vale destacar, também, os elementos das narrativas góticas que permeiam as narrativas. Em maior ou menor medida, os contos de horror de Arthur Conan Doyle pagam tributo à vertente fundadora das histórias assustadoras. Sobretudo na composição de espaços e ambientes: se a ação se desenvolve em criptas, catacumbas, regiões isoladas ou espaços povoados por espectros, é graças à literatura gótica.

Se a noite e a escuridão predominam nas histórias, também. Ou mesmo se nelas encontramos personagens essencialmente maus, satânicos, assustadores, e por isso fascinantes: é a Horace Walpole, Ann Radcliffe, Matthew Gregory Lewis e tantos outros autores dos séculos XVIII e XIX que devemos agradecer. 

Nem Sherlock Holmes resolve
Por tudo isso, as histórias de horror de Arthur Conan Doyle são um importante registro de um dos mais consagrados autores da literatura inglesa. Variadas em temas e formas, exploram as possibilidades de uma tradição literária que, com o tempo, só foi se enriquecendo, incorporando transformações sociais, eventos capitais e traumas de gerações seguintes.

E mais: levando-nos para além de Baker Street, os contos iluminam meandros menos conhecidos da produção de Conan Doyle. Mas que são dignos de toda a atenção, por serem obras nas quais predomina o fascínio pelo desconhecido. Afinal, como a própria biografia do autor comprova, o universo guarda mistérios que nem as mentes mais brilhantes são capazes de decifrar. 

*Oscar Nestarez é ficcionista de horror e mestre em literatura e crítica literária. Publicou Poe e Lovecraft: Um Ensaio Sobre o Medo na Literatura (2013, Livrus) e as antologias Sexorcista e Outros Relatos Insólitos (2014, Livrus) e Horror Adentro (2016, Kazuá).

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