• Christian-Georges Schwentzel*
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Cersei Lannister será um dos destaques do terceiro episódio da 7ª temporada de Game of Thrones (Foto: Divulgação )

Cersei Lannister, de Game of Thrones; disputa entre os Stark e os Lannister remete a entrave entre os York e os Lancaster na Inglaterra do século XV  (Foto: Divulgação )

A série Game of Thrones (HBO, 2011-), adaptada dos romances de George R.R. Martin, não é uma reconstituição histórica do passado, mas uma obra de ficção e fantasia. Ela suscita, contudo, um grande interesse por parte dos historiadores e das historiadoras

Pelo que se interessam os historiadores?
A revista Historia (abril-junho de 2019) acaba de publicar uma edição especial cujo título, à primeira vista, intriga: “Game of Thrones, a série à luz da história”. O número foi escrito por um conjunto de membros da academia: dois especialistas em literatura (o que não é de se espantar, já que George R.R. Martin é um escritor); e 12 pesquisadores em história, num espectro bastante amplo, da jovem pós-doutoranda ao professor emérito. Vemos uma maioria de medievalistas, mas também especialistas na Antiguidade e na época moderna

É claro, os historiadores não estudam apenas os textos escritos antes deles por outros historiadores. Eles podem se debruçar sobre obras literárias, objetos artísticos, filmes… Nesse sentido, tudo é história, ou pode se tornar história, desde que abordemos o assunto com um certo método e por meio de questionamentos próprios das ciências humanas.

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Assim é possível estudar a Ilíada ou a Bíblia à luz da história, isto é, tentando distinguir o que realmente aconteceu, há 3 mil anos, do que foi inventado. Algo que o historiador alcança por meio da confrontação de fontes. É dessa forma que se viu o desenvolvimento de uma arqueologia bíblica; ou ainda as pesquisas sobre a Idade do Bronze no mundo Egeu, iniciadas por Heinrich Schliemann, que descobriu a antiga Troia, provando que havia um fundo histórico nas narrativas épicas elaboradas pouco depois dos acontecimentos.

A Bíblia ou a Ilíada, que não são textos escritos a partir da perspectiva histórica, nos dão, assim, informações preciosas sobre a história dos hebreus e dos gregos na Antiguidade.

Mas qual é o interesse histórico de Game of Thrones?
Por outro lado, Game of Thrones não nos diz nada do passado, ao menos não de maneira direta, já que se trata de uma obra contemporânea. O primeiro tomo de As Crônicas de Gelo e Fogo foi lançado por George R.R. Martin em 1996, e o primeiro episódio da série foi emitido pela HBO em 2011.

Pode-se dizer que, aos olhos da história da humanidade, essas obras literárias ou audiovisuais são extremamente recentes: o autor da saga, os criadores da série (David Benioff e Daniel Brett Weiss) ou mesmo os atores são todos perfeitamente conhecidos e identificáveis. Nada parecido com Homero nem com os redatores da Bíblia.

Game of Thrones é uma obra que nos fala, antes de tudo, de hoje: de nós, leitores tão numerosos que durante os últimos anos lemos os romances de George R.R. Martin e, em número ainda maior, vimos a série e esperamos por sua conclusão, com uma impaciência crescente, por todos os cantos de nosso planeta.

Trailer da oitava temporada de 'Game of Thrones' (Foto: Divulgação/HBO)

Cena oitava temporada de Game of Thrones (Foto: Divulgação/HBO)

Game of Thrones é um fenômeno mundial, único ou ao menos o primeiro do seu gênero (não duvidemos, outras obras vão assumir esse posto). A série é evidentemente a mais vista nos anos 2010; ela foi exibida em mais de 170 países, sem contar as versões pirata, difíceis de estimar e precisar. O trailer da oitava temporada, que iniciou neste mês, foi visto por algo como 80 milhões de pessoas em apenas 24 horas.

Esse sucesso traduz a surpreendente capacidade da série em se adequar às expectativas de um público internacional. E isso certamente será uma grande fonte histórica para os pesquisadores e pesquisadoras que se interessarão futuramente pela nossa época.

O que Game of Thrones diz de nós?
Se a série Game of Thrones não diz nada da Idade Média nem da Antiguidade propriamente ditas, ela nos revela, em primeiríssimo lugar, que os fantasmas humanos continuam os mesmos passados os séculos, quiçá os milênios. Os temas que nos fascinam ainda são os mesmos, quer queira ou não: lutas pelo poder, mortes, complôs, traições, prostituição, estupro, incesto, tortura…

A esses ingredientes, velhos como a humanidade, são acrescidos temas conectados diretamente com os desafios de hoje. É por isso que o sucesso de Game of Thrones extrapolam o círculo dos apaixonados pelo gênero da fantasia. Vemos metáforas das mudanças climáticas e da crise de refugiados. O longo inverno que ameaça a humanidade ecoa diretamente o temor com as mudanças do mundo em que vivemos e o medo do outro. A angústia é materializada pelo muro, edificado por Brandon Stark, o Construtor (fundador da casa Stark): uma fortificação de gelo, com cerca de 480 quilômetros de comprimento e mais de 200 metros de altura. Algo que faria inveja a Donald Trump, cujo projeto de separação, bem real, da fronteira mexicana, oscila entre cinco e nove metros de altura. Uma dimensão ainda assim importante do ponto de vista histórico, já que a muralha edificada no século II pelo imperador romano Adriano, que inspirou George R.R. Martin, chega ao menos a 4,6 metros.

Vamos nos lembrar que nem George R.R. Martin — que imaginou a muralha de Brandon há mais de 20 anos — nem os criadores da série poderiam prever a eleição de Donald Trump. Mas o livro e a série se revelam de uma atualidade assustadora, como se, de certa maneira, a história estivesse a um passo de alcançar a ficção. Game of Thrones fala de nós hoje e talvez até de nosso futuro.

A revista Historia propõe assim uma comparação entre as barreiras de separação de Adriano e Trump (ainda não construída), passando pela Muralha da China e pelo Muro de Berlim. Nada que possa nos tranquilizar: ao estabelecer uma ligação tão direta, ainda que involuntária, entre o Império Romano e os Estados Unidos, Game of Thrones passa (ao menos até a sétima temporada) o sentimento de uma humanidade que decididamente tem dificuldade em evoluir e cujo futuro ecoa o seu passado. Como uma serpente que morde o rabo.

Buscar as semelhanças: uma atividade pedagógica e lúdica
De modo menos sombrio, Game of Thrones oferece também a todos os apaixonados por história um vasto terreno de aprendizagem, constituído de dois imensos continentes e dotado de uma longa história fantástica; porque George R.R. Martin criou não apenas lugares e personagens, mas também uma cronologia de sucessão de reinados, invasões e impérios. Assim, é tentador identificar, na ficção, os numerosos empréstimos que o autor fez da história desde a Antiguidade greco-romana até, por exemplo, a Guerra das Duas Rosas, que, no século XV, opôs os York e os Lancaster, como os Stark e os Lannister.

Procurar semelhanças entre os personagens de George R.R. Martin e figuras históricas bastante reais pode oferecer a professores e seus alunos uma atividade tão cativante quanto fecunda. Game of Thrones pode servir de pretexto ao estudo de numerosos temas históricos. Missandei é uma porta de entrada que permite abordar a escravidão e a libertação na Antiguidade. Poderíamos compará-la à mulher Spartacus, que teve um papel de conselheira ao lado de célebre chefe dos escravos numa revolta contra Roma, em 73-71 a.C.

Os Homens de Ferro poderiam integrar um curso sobre os vikings; ainda mais que a análise, em 2017, de um esqueleto encontrado numa necrópole em Birka, na Suécia, acaba de provar que mulheres muitas vezes comandavam povos nórdicos, isso há cerca de um milênio. À luz dessa descoberta, Asha (Yara na série de TV) Greyjoy torna-se ainda mais verossímil.

Game of Thrones, ou um convite bastante fantástico para a explorar a história.

*Christian-Georges Schwentzel é professor de história antiga da Universidade de Lorraine. O artigo foi publicado originalmente em francês no site The Conversation.

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