• Oscar Nestarez*
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Cena do filme 'It' (Foto: Reprodução)

Cena do filme 'It' (Foto: Reprodução)

Na nova versão cinematográfica de It, em certo momento, a trupe de heróis adolescentes toma coragem para invadir um enorme casarão abandonado. De madeira escurecida, coruchéu piramidal e para-raios sinistros no telhado, o edifício emana maldade. E uma vez lá dentro, a moçada desce até galerias úmidas, onde a trama se desenvolve.

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Trata-se de um dos trechos mais tensos do filme. E grande parte dessa força se deve a elementos que, há mais de 250 anos, estão à disposição dos criadores das histórias de horror: aqueles reunidos sob a denominação da literatura gótica, que teve sua origem na Inglaterra do século XVIII. Mais especificamente em 1764, com a publicação de O Castelo de Otranto, de Horace Walpole.

A que elementos nos referimos? Bem, no caso de It, à própria mansão desolada, que faz o dia anoitecer; às galerias subterrâneas no melhor estilo de catacumbas medievais; e à própria escuridão que domina o filme de um certo momento em diante. Mas, se fôssemos mencionar todos os recursos que surgiram a partir da novela de Walpole — e que são intensamente usados até os dias atuais —, precisaríamos de um espaço muito maior do que este que nos cabe.

Contra as luzes do racionalismo
Pois foi um vasto universo que, naquele momento, teve origem -- e que fez tremendo sucesso com o público leitor da época. A renda gerada pelas vendas do livro permitiu que Walpole, já em ótimas condições financeiras por ser o filho do Primeiro Ministro britânico de então, montasse seu próprio “parque gráfico” para imprimir futuros livros. Mas nenhum tão bem-sucedido, é verdade. 

Os motivos do êxito de O Castelo de Otranto -- e da ficção gótica -- não são difíceis de serem compreendidos.

Basta lembrarmos que o século XVIII foi aquele do chamado “Iluminismo”, ou “Ilustração”, como ficou conhecido o movimento cultural e filosófico europeu em que a razão e a ciência imperaram. Foi o século progressista, em que figuras como John Locke, Isaac Newton, Voltaire e tantos outros procuraram clarear, com as tochas do racionalismo, os territórios povoados por superstições da era medieval. Que, não por acaso, era por eles chamada de “Idade das Trevas”.

Pois bem: foi justamente no imaginário, na arquitetura e em outras fontes desses séculos "escuros" que Walpole buscou inspiração para a história. Medievalista convicto (que chegou a construir um “castelo gótico falso”, em 1749), o autor recheou sua criação com elementos associados à Idade Média: além do próprio castelo misterioso, cavaleiros espectrais, enormes tapeçarias cujos motivos enganam os olhos, esqueletos envoltos em mantos, calabouços mefíticos, criptas gotejantes e um enorme etcetera.

A pedra fundamental do castelo dos horrores
Nesta inquietante mise-en-scène, desenvolve-se a trama. Que começa com a estranha morte de Conrado, filho de Manfredo, o tirânico senhor do Castelo de Otranto.

No dia de seu casamento com a donzela Isabella, Conrado é esmagado por um elmo gigante. Então, para impedir que uma antiga profecia se realize, Manfredo decide se casar, ele próprio, com a ex-futura-nora (!). E, conforme a história progride, as maquinações do vilão tornam-se mais e mais satânicas — e o castelo, mais e mais assombrado.

Ainda que, hoje, a narrativa de Walpole seja considerada um tanto desajeitada, estudiosos e críticos concordam sobre o seu papel fundamental no desenvolvimento da chamada “literatura fantástica” -- e, em consequência, “de horror”.

O que não significa que antes de sua publicação não houvesse relatos com passagens sobrenaturais. Pelo contrário: desde a epopéia do rei sumério Gilgamesh (datada do séc. XXVII a.C.) até Shakespeare, o horror sempre deu o ar da (des)graça.

“Um novo tipo de romance”
No entanto, foi somente em O Castelo de Otranto que o horror assumiu o papel principal. Pretendido como “um novo tipo de romance” (nas palavras do próprio Walpole), o relato confrontou as luzes da ciência com as trevas do sobrenatural pelo puro prazer de desorientar, de desamparar, de chacoalhar o leitor. “É o terror”, lembra-nos Walpole no prefácio da primeira edição, “a principal engrenagem usada pelo autor no relato, aquela que impede que a história perca força”.

Ou seja, na contramão de escritores contemporâneos seus, que estavam comprometidos com a realidade em que viviam, Horace Walpole investiu contra ela. E abriu fissuras pelas quais cada vez mais autores se aventuraram.

Ele pode ter inaugurado, mas elas melhoraram
Na verdade, o certo seria dizer “cada vez mais autoras”. Pois foram as mulheres as principais responsáveis pela consolidação do fenômeno gótico na Inglaterra de então, e fora dela pouco depois.

As também britânicas Clara Reeve e Ann Radcliffe figuram na proa deste movimento. Autoras, respectivamente, de O Velho Barão Inglês (1777) e de Os Mist��rios de Udolpho (1794), ambas enriqueceram a estética inaugurada por Walpole com personagens mais densos, histórias mais coesas e horrores mais intensos -- servindo-se sempre dos mesmos recursos cênicos medievais e de elementos sobrenaturais.

Reeve, aliás, tornou-se uma forte influência para aquela que hoje é considerada a maior autora da literatura fantástica de todos os tempos: Mary Shelley. Lembremos que seu Frankenstein: ou o Prometeu Moderno (1818) é, em vários aspectos, também uma narrativa gótica.

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Já Ann Radcliffe tornou-se a mais famosa autora do gótico a partir dos anos 1790. Bem remunerada e reconhecida, chegou a escrever ensaios críticos sobre a corrente artística à qual pertencia. Foi, inclusive, a responsável por uma das primeiras diferenciações entre “terror” e “horror”: “o primeiro expande a alma e eleva as nossas faculdades a um novo patamar de vida; o outro as contrai, congela-as e quase que as aniquila”, afirma Radcliffe em “A respeito do sobrenatural na poesia”, publicado em 1826.      

As invasões (cada vez mais) bárbaras
Hoje utilizado para descrever manifestações artísticas das mais diversas, o termo “gótico” tem origens um tanto pejorativas. E foi cunhado por aquele que é considerado o fundador da história da arte: o italiano Giorgio Vasari.

No século XVI, quando os ideais da antiguidade clássica ditavam os rumos do Renascimento, Vasari considerou a estética medieval como uma “invasão” nociva e obscurantista, uma ameaça àqueles ideais. Associou essa estética, assim, aos bárbaros germânicos que, em 410 d.C., saquearam Roma. Pois bem: esses bárbaros eram os godos (goths) -- donde, arte gótica (gothic).

Ou seja, já no século XVI, os góticos ameaçavam o equilíbrio e a moderação  de todo um continente renascentista. Cerca de dois séculos depois, essas ameaças desembarcaram na literatura, na forma do sobrenatural. E marcaram profundamente as gerações seguintes de autores -- entre eles, aquele que é considerado o “pai” da ficção literária de horror: Edgar Allan Poe.

E não parou por aí: quatrocentos anos depois, as “ameaças” espalharam-se pelas mais diversas modalidades artísticas, e além. Chegaram à música, à moda, à cultura comportamental. Transformaram e continuam transformando gerações, sem dar sinal de que vão levantar acampamento.

Por isso, seja você fiel ao movimento, seja simpatizante, fã da música, dos looks ou simplesmente fã de It e de tantas outras histórias que se servem do vinho tinto do gótico, não se esqueça: na próxima visita ao cemitério, acenda para Walpole, Reeve, Radcliffe e tantos outros uma vela de sete dias. Ou melhor, de sete noites.

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