• Marilia Marasciulo
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O que ainda falta para a telemedicina evoluir no Brasil — e quais as áreas mais se beneficiariam com isso (Foto: Anna Shvets/Pexels)

O que ainda falta para a telemedicina evoluir no Brasil — e quais as áreas mais se beneficiariam com isso (Foto: Anna Shvets/Pexels)

Pouco mais de um mês do primeiro caso de Covid-19 registrado no Brasil, o Governo Federal e o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizaram o uso da telemedicina durante a pandemia. A lei nº13.989, de 15 de abril de 2020, permite o exercício da medicina mediado por tecnologias, em caráter emergencial, para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, e promoção de saúde.

Os atendimentos no período cresceram exponencialmente. Até julho, na Doctoralia, líder mundial de agendamento online de consultas que passou a oferecer serviços de telemedicina após a autorização, mais de 10 mil profissionais de saúde aderiram à tecnologia e 200 mil pacientes usaram a ferramenta. No mesmo período, o Hospital Albert Einstein registrou aumento de 1758% nos atendimentos remotos — com uma base de quase 1,6 milhão de usuários de 1,2 mil cidades brasileiras, o hospital chegou a atender 22,3 mil pessoas de forma remota em maio.

“A pandemia fez com que a área médica não ficasse mais na zona de conforto, ela nos empurrou para a água para que aprendêssemos a nadar. Quem ainda tinha dúvidas em relação à aplicação da telemedicina não teve mais desculpas”, diz o professor da Universidade de São Paulo (USP), Chao Lung Wen, líder do Grupo de Pesquisa USP em Telemedicina, Tecnologias Educacionais e eHealth no CNPq/ MCTI e um dos maiores pesquisadores brasileiros sobre o tema.

Embora a maioria das pessoas — inclusive médicos — acredite que a telemedicina seja um recurso recente, ela, na verdade, surgiu nos anos 1960, com a corrida espacial e a Guerra Fria. Na época, era necessário garantir o atendimento de saúde tanto para as forças armadas posicionadas em lugares isolados, quanto para astronautas em missões espaciais. Isso contribuiu para que houvesse um impulso no desenvolvimento e no uso de tecnologias para fornecer serviços de saúde de forma conectada, sem a necessidade da presença física do médico.

O que aconteceu nas últimas duas décadas, porém, foi a popularização das telecomunicações e da computação, melhorando o acesso de grande parte da população a tecnologias até então nunca imaginadas — hoje, muitas pessoas carregam no bolso smartphones, supercomputadores capazes de se conectarem a acessórios e aplicativos que podem ajudar no monitoramento da saúde. “Esta é a década da hiper-realidade, hiperinteligência e hiperpresença”, observa Wen. Com a medicina, não haveria de ser diferente.

“Nossa maior dificuldade hoje não é técnica. Temos profissionais em São Paulo dando assistência para o Amazonas, por exemplo. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mantém um convênio no Alto Xingu”, diz o engenheiro eletrônico Luiz Ary Messina, coordenador nacional da Rede Universitária de Telemedicina (Rute), que hoje tem 139 unidades. “O maior problema sempre foi a falta de conhecimento de gestores dos hospitais e dos municípios, e dos próprios médicos”, completa.

Entre alguns profissionais, ainda existe uma certa resistência em adotar as novas tecnologias. Para Messina, porém, a preocupação é infundada. “A telemedicina é uma metodologia que veio para auxiliar os processos na área de saúde”, diz. O professor da USP concorda. “Um bom médico, que tem empatia, sabe se comunicar e sabe lidar com os pacientes na prática, nunca vai ser substituído”, diz. “Mas os humanos podem usar esses dispositivos para que a tomada de decisão seja mais rápida e eficiente.”

Limbo regulatório
Até a lei emergencial, a telemedicina no Brasil era restringida pela resolução nº 1.643 de 2002 do CFM, que autorizava a prática somente em casos específicos ou emergenciais, como emissão de laudos à distância e suporte terapêutico ou no diagnóstico. “Esta resolução foi aprovada na realidade tecnológica da época e não contemplava vários aspectos relacionados com a segurança digital”, avaliou Wen, em um artigo publicado pela revista Healthcare em 2019.

Entre 2016 e 2018, a tentativa de uma nova resolução começou a ser desenhada, com a incorporação de atualizações e conceitos para caracterizar de forma mais clara os tipos de serviços médicos que poderiam ser realizados por telemedicina. Chegou a ser aprovada mas, pouco depois, revogada.

A falta de uma definição clara de condutas e regulamentação joga os profissionais numa espécie de “limbo”. Há dúvidas, por exemplo, em relação a que ferramentas podem ser usadas, visto que muitas não foram projetadas com recursos de segurança de acordo com os critérios da Lei de Portabilidade e Responsabilidade de Provedores de Saúde (Health Insurance Portability and Accountability Act, HIPAA, na sigla em inglês), conjunto de regras criadas em 1996, nos Estados Unidos, e que organizações de saúde seguem para proteger as informações digitais dos pacientes.

Segundo Wen, é urgente debater e chegar a uma regulamentação definitiva para a área, para além da pandemia. Entre os pontos que devem ser pensados estão: a instituição da telemedicina como uma matéria obrigatória em cursos de formação, a remuneração do profissional que trabalha remotamente, uma maneira de certificar a qualidade dos serviços prestados, a criação de uma estrutura pronta para o uso de wearables e bio sensores e da internet das coisas, a melhora na conectividade no país e a educação da própria população para o uso das ferramentas. “É preciso criar uma cultura para que a telemedicina possa ser usada no dia a dia”, observa.

Cuidado integrado
“Em princípio, todas as áreas que têm interação médico-paciente podem se beneficiar da telemedicina”, diz Wen, que elenca algumas das que se destacam: psiquiatria, dermatologia, radiologia e geriatria. “Nas que trabalham com imagens, o telediagnóstico costuma funcionar muito bem”, explica. E, no caso dos idosos, o atendimento remoto pode melhorar o cuidado com a saúde, por dispensar o deslocamento (que, com a idade, costuma ficar prejudicado) e possibilitar uma integração entre as diferentes áreas de atenção — geriatria, fisioterapia, nutrição e enfermagem, por exemplo, podem conversar entre si, dispensando que o paciente vá de consultório em consultório.

O coordenador da RUTE destaca também a importância da telemedicina para a saúde em lugares remotos. Segundo Messina, a telemedicina pode tornar dispensável a existência de especialistas em todos os cantos, pois é possível colocar só o equipamento e um técnico para operá-lo, e o especialista recebe as informações à distância. “E a pandemia nos fez ver que as consultas em casa funcionaram em muitos casos, do jeito que desse, mesmo com conectividade baixa e equipamentos ruins, as pessoas não ficaram sem o atendimento”, diz Messina.

É também um bom modo de triagem para minimizar o risco de contágio, em casos de epidemias, e mesmo infecções hospitalares — que, segundo o Ministério da Saúde, ocorre em 14% das internações. Em uma consulta por vídeo, por exemplo, o médico pode obter informações importantes sobre o estado do paciente e, a partir disso, determinar se há necessidade de buscar o serviço de saúde. “A telemedicina é o melhor equipamento de proteção individual, pois nenhum dos lados fica exposto, e uma maneira de diminuir o risco de contágio sem necessidade por idas ao hospital”, diz Wen. “Porque hoje é a Covid-19, mas amanhã pode ser outra doença, e nós precisamos estar preparados.”