• REPORTAGEM: CAMILA MAZZOTTO | EDIÇÃO: LUIZA MONTEIRO
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O mundo precisa limitar o aumento da temperatura global em 1,5 ºC até o fim do século para evitar uma catástrofe ambiental — e o Brasil tem papel central nesse desafio (Foto: Ilustração: Kleverson Mariano)

O mundo precisa limitar o aumento da temperatura global em 1,5 ºC até o fim do século para evitar uma catástrofe ambiental — e o Brasil tem papel central nesse desafio (Foto: Ilustração: Kleverson Mariano)

O primeiro ano da década de 2020 termina com sabor agridoce. Se a pandemia de Covid-19 dá sinais de arrefecimento em muitas partes do mundo, um desafio ainda mais complexo está longe de ser solucionado: as mudanças climáticas.

É o que fica evidente no relatório final da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), que reuniu representantes de quase 200 países em Glasgow, na Escócia, entre os últimos dias 31 de outubro e 13 de novembro. Adiado pela crise sanitária, o encontro que se propunha a direcionar as medidas de enfrentamento ao aquecimento global nos próximos dez anos terminou em tom de frustração.

Isso porque as metas podem ser insuficientes, entre outras coisas, para limitar a elevação da temperatura do planeta a 1,5ºC até 2100, conforme estipulou o Acordo de Paris em 2015. “Já está bem claro que é necessário fazer todos os esforços possíveis para estabilizar esse aumento em 1,5ºC. E essa tem que ser a meta de todos os países, mas esse senso de urgência, infelizmente, não ficou tão forte no relatório final da COP26", avalia Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Na verdade, é possível até que haja um aquecimento acima de 2ºC, limite máximo determinado em Paris. Um relatório da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCC) apresentado no dia 4 de novembro demonstrou que, considerando os objetivos estabelecidos por cada país até então em Glasgow, o mundo ainda estaria sujeito a sofrer um aumento de 13,7% nas emissões de gases do efeito estufa, os responsáveis pelo aquecimento do planeta.

Pode parecer irrisório, mas cada meio grau adicionado a essa conta pesa — e muito. Entre as consequências, um número maior de eventos climáticos extremos, incluindo ondas de calor, furacões e perdas de safras agrícolas.

Metas apresentadas na COP26 ainda elevam emissões em 13% até 2030 (Foto: Andreas Felske/Unsplash)

Metas apresentadas na COP26 ainda elevam emissões em 13% até 2030 (Foto: Andreas Felske/Unsplash)

Por isso, até o final de 2022 cada nação tem um novo dever de casa: atualizar seus compromissos de redução de gases de efeito estufa, as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). “Os próximos dois anos serão bastante críticos. Espera-se que o mundo vá acomodar um pouco a questão das finanças após a saída do choque causado pela pandemia e entender melhor para onde as coisas vão”, analisa Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

As metas precisarão estar de acordo com os alvos estabelecidos na COP26: queda de 45% nas emissões de dióxido de carbono (CO2) até 2030 em comparação a 2010 e neutralidade na liberação do CO2, o principal gás causador do efeito estufa, até a metade do século.

No âmbito dessas negociações, o Brasil, sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, assumiu o compromisso de reduzir em 50% suas emissões até 2030 e atingir a neutralidade de carbono até 2050. Mas não informou a base para os cálculos, tampouco o valor bruto em toneladas da diminuição ou as estratégias para cumprir as promessas. As metas também são consideradas pouco ambiciosas: para serem compatíveis com o Acordo de Paris, o corte deveria ser de ao menos 80% na próxima década, segundo o Observatório do Clima.

Mas o caminho para isso está longe de ser simples. A partir das discussões em Glasgow, da análise de especialistas e de estudos, elencamos a seguir alguns dos pontos cruciais para o enfrentamento do futuro infernal que nos espera.

Renovar as energias

Mais de 70% das emissões globais de gases do efeito estufa vêm do setor energético. E a culpa é dos combustíveis fósseis: petróleo, gás e carvão estão na origem de 80% do volume total da energia consumida no planeta. Seja para produzir eletricidade e vapor, seja para alimentar a indústria e os transportes, a queima desses produtos despeja diariamente sobre a atmosfera toneladas de gases poluentes, sobretudo o CO2. A saída para mudar esse cenário não é outra senão uma transição: é preciso expandir os investimentos em fontes limpas e capazes de suprir as demandas energéticas sem prejudicar a natureza.

É verdade que, aos poucos, o mundo caminha nessa direção. Em 2020, a capacidade mundial de geração de energia renovável aumentou 45%. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), o ritmo foi o maior registrado desde 1999, com o setor eólico liderando a expansão, seguido pelo de energia solar. Na maior parte do globo, estruturas fotovoltaicas já são mais baratas do que usinas abastecidas por carvão e gás natural — e devem se tornar opções cada vez mais econômicas.

Vai ao encontro desses objetivos a promessa do relatório final da COP26 de reduzir gradualmente os subsídios a combustíveis fósseis e o uso de carvão, o mais poluente deles. Embora o rascunho anterior falasse em “eliminação” da fonte — termo que acabou sendo alterado nos últimos instantes das negociações por pressão da Índia —, essa foi a primeira vez na história das COPs que o documento citou de maneira direta a necessidade de aplacar a dependência desses vilões do aquecimento global.

Mas é preciso que isso aconteça em um ritmo muito mais acelerado do que o que se tem visto. Para alcançar a neutralidade de carbono em 2050, os investimentos em projetos energéticos descarbonizados têm de triplicar, calcula a IEA, que considera a transição “lenta demais”. Reduzir em 45% as emissões de CO2 até 2030 é uma realidade ainda mais distante.

“Economicamente e tecnologicamente, a transição energética já é viável. Agora, reduzir pela metade a geração de energia elétrica por queima de combustíveis fósseis em nove anos é o maior desafio de reindustrialização que a humanidade já passou”, resume Carlos Nobre, climatologista e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP).

E a tarefa não é só de ordem econômica ou tecnológica. “É preciso garantir que a mão de obra ligada aos combustíveis fósseis seja redirecionada para fontes de energia limpas ou outros setores da economia, de forma que os trabalhadores não sejam prejudicados pela mudança”, reforça Ricardo Baitelo, coordenador de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). “Essa transição é também um desafio político e social”.

Petróleo, gás e carvão estão na origem de 80% do volume total da energia consumida no planeta (Foto: Ilustração: Flavia Hashimoto)

Combustíveis fósseis, petróleo, gás e carvão estão na origem de 80% do volume total da energia consumida no planeta (Foto: Ilustração: Kleverson Mariano)

No Brasil, a participação de fontes renováveis na matriz energética vem crescendo. Contudo, ainda é necessário expandir o potencial de outras opções renováveis para além das usinas hidrelétricas, que respondem por aproximadamente dois terços de toda a energia gerada em solo nacional. Reduzir progressivamente essa dependência é importante frente ao risco de crises hídricas mais frequentes atreladas às mudanças climáticas.

Mas essa diversificação precisa ser feita a partir de fontes limpas — como a solar e a eólica —, e não com energia fóssil. “O que deveria ser feito é caminhar para a descarbonização da matriz elétrica, tanto pensando na descontinuidade do uso do carvão, que é significativo no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, quanto começando a discutir a descontinuidade do gás natural e dos outros combustíveis para geração termelétrica”, sugere Baitelo.

Poluição sobre rodas

No âmbito dos transportes, o desafio é maior. Globalmente, o setor é responsável por um sexto das emissões de gases de efeito estufa, sendo quase 90% atribuídos ao tráfego viário. Embora os carros elétricos já sejam uma realidade, eles só respondem por 2% das vendas globais, de acordo com a IEA. Para não ultrapassar os perigosos limiares do aumento da temperatura, a entidade estima que a venda de carros movidos a combustíveis fósseis terá de cessar até 2035.

Foi esse o compromisso que 24 países e um grupo de fabricantes de automóveis assinaram na COP26. No entanto, Estados Unidos, China, Alemanha, Japão e Brasil ficaram de fora das negociações. “Não existe no Ministério uma oposição ao veículo elétrico”, afirma a GALILEU Pietro Mendes, diretor do departamento de biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia. “A gente entende que o motor a combustão sozinho não vai dar conta das metas de redução de emissões. Então, vamos caminhar para uma hibridização, e a eletrificação veicular poderá se dar de diversas formas”.

A aposta do governo federal para a descarbonização do setor de transportes é o etanol, principal alternativa sustentável à gasolina no país. Segundo Mendes, o plano é não restringir o mercado aos carros movidos à bateria, mas também dar espaço a opções como os híbridos (com um motor elétrico e outro a combustão) e modelos que utilizem biocombustíveis como matéria-prima para gerar energia elétrica. Ainda incipiente, a tecnologia vem sendo aplicada pela Nissan e o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). “A indústria automobilística terá um cardápio de opções”, especula o diretor do Ministério de Minas e Energia.

A produção de veículos elétricos e híbridos, porém, é considerada tímida em solo nacional. Embora o país seja o segundo maior produtor mundial de etanol, a gasolina e o diesel ainda são os combustíveis mais comuns para veículos leves e pesados, respectivamente, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). “É central reduzir as emissões de gases do efeito estufa dos carros e caminhões no Brasil”, defende David Tsai, engenheiro e geógrafo do IEMA.

Especialista do IEMA alerta para a necessidade de uma preocupação maciça em melhoria da mobilidade urbana nas cidades para reduzir as emissões de gases de efeito estufa no setor de transportes (Foto: David Larivière/Unsplash)

Especialista do IEMA alerta para a necessidade de uma preocupação maciça em melhoria da mobilidade urbana nas cidades para reduzir as emissões de gases de efeito estufa no setor de transportes (Foto: David Larivière/Unsplash)

Para ele, as medidas contra o desafio vão além de expandir o uso de combustíveis renováveis. “É necessária uma preocupação maciça em melhoria da mobilidade urbana nas cidades, seguindo um modelo de urbanização e de planejamento de transportes que seja centrado no transporte público e no transporte ativo, como a bicicleta, e não no transporte individual motorizado, como vem sendo feito nas últimas décadas”. Cidades como São Paulo, Sorocaba (SP) e Curitiba são bons exemplos nesse sentido. “Mas isso está bem longe de ser uma realidade nacional”, lamenta Tsai, que também considera crucial investir em modais como ferrovias e hidrovias.

Precisamos de florestas

Num mundo em aquecimento, não é exagero afirmar que as árvores são uma das nossas principais defesas: só nas últimas duas décadas, as florestas removeram cerca de 7,6 bilhões de toneladas de carbono por ano, segundo análise publicada em janeiro na revista científica Nature Climate Change. Mas esses sumidouros naturais de CO2 estão cada vez mais ameaçados.

Lançado às vésperas da COP26, um estudo feito pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) mostrou que dez florestas consideradas patrimônio mundial já emitem mais carbono do que absorvem, contribuindo com as mudanças climáticas. E a principal causa disso, segundo a pesquisa, são justamente os eventos extremos, sobretudo incêndios e furacões, que têm sido observados com maior frequência em áreas florestadas nas latitudes médias e altas do Hemisfério Norte.

No Brasil, a causa central por trás da devastação florestal é outra. “Aqui, entre 95% e 98% dos incêndios são [causados por] humanos”, calcula Carlos Nobre, um dos principais cientistas do país a investigar os impactos da devastação da Amazônia. A perda de árvores no bioma atingiu um novo recorde entre agosto de 2020 e julho de 2021: foram 13.235 km2 desmatados, segundo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O valor é o maior registrado em 15 anos e equivale a duas vezes a área do Distrito Federal.

Em 2020, ao contrário do restante do mundo — que diminuiu suas emissões em 7% —, houve um aumento de 9,5% nas emissões por aqui, aponta o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima. Os motivos? Mudanças no uso da terra e de florestas, principalmente em razão do desmatamento e da agropecuária.

A situação é tão grave que a maior floresta tropical do mundo não está longe de atingir o que os cientistas chamam de “ponto de não retorno”, estágio em que a Amazônia perderia a capacidade de se regenerar. A parte mais ameaçada do bioma no Brasil corresponde ao território que abrange o oeste do Maranhão, o sul do Pará e segue rumo a Mato Grosso, Rondônia e Acre — é o chamado “arco do desmatamento”.

As consequências de um ponto de inflexão seriam desastrosas: alterações no regime de chuvas no Brasil e em outros países, perda de biodiversidade e extinção de espécies, para listar apenas algumas.

É por isso que os especialistas viram com ceticismo a participação do Brasil no acordo firmado por mais de 105 nações durante a COP26 para deter e reverter o desmatamento até 2030, bem como a promessa de zerar o desmatamento ilegal até 2028. “O Brasil pintou um cenário no evento que é irreal, o de um país que protege o meio ambiente e que está avançando nessa área. Mas esse Brasil é desmentido pelos fatos, é só ver os números do Inpe”, denuncia Suely Araújo.

Para a especialista do Observatório do Clima, a primeira ação a ser tomada contra a devastação dos biomas brasileiros é fortalecer as estruturas federais de fiscalização ambiental, que perderam força sob a presidência de Jair Bolsonaro. E mais: o foco das políticas de controle não deve ser apenas o desmatamento ilegal, como estipula a meta do governo. “Tem que zerar o desmatamento, não só o ilegal. Imagine se todo mundo resolvesse desmatar tudo que pode legalmente, 20% nas propriedades rurais da Amazônia e 80% no restante do país: o que isso significaria em termos de mudanças climáticas?”, indaga Araújo.

Parar de desmatar não significa impedir a movimentação da economia — ao contrário. Carlos Nobre lidera o projeto Amazônia 4.0, que cria laboratórios itinerantes no meio da floresta para capacitar comunidades locais a transformarem bioinsumos como cacau e cupuaçu em produtos de maior valor agregado.

Vista aérea de um desmatamento na Amazônia para expansão pecuária, em Porto Velho, Rondônia. (Foto: Victor Moriyama / Amazônia em Chamas)

Vista aérea de um desmatamento na Amazônia para expansão pecuária, em Porto Velho, Rondônia. (Foto: Victor Moriyama / Amazônia em Chamas)

O cientista calcula que 1 hectare de cooperativas avançadas na região renda, em média, US$ 1 mil por ano. “Esse valor é cinco vezes maior que o rendimento da soja e dez vezes o do gado”, compara Nobre. “Mas a área que os sistemas agroflorestais utilizam corresponde a só 5% da área de pecuária, então há um potencial gigantesco de crescimento desses sistemas”.

Esse é só um exemplo do equívoco do ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, ao dizer na COP26 que “onde existe floresta, há pobreza”. “A pobreza não é fruto da cobertura florestal, ela é fruto da ausência e ineficiência do Estado de conduzir políticas sociais e de desenvolvimento mais equitativas”, responde a bióloga Mercedes Bustamante, professora da UnB e uma das vozes mais ativas nos fóruns em Glasgow. “E é importante pensar que não é o pobre que desmata; quem está encabeçando a lista dos desmatamentos são os grandes desmatadores, que têm recursos para investir em máquinas”.

Direito garantido pela Constituição Federal de 1988, a demarcação de territórios indígenas é outro ponto central para a preservação dos biomas. N��o sem motivo: a porção do país habitada pelos povos originários é a área que se manteve mais preservada nos últimos
35 anos, respondendo por menos de 1% do desmatamento nesse período, segundo o MapBiomas.“A Amazônia brasileira, por exemplo, tem entre 600 [mil] e 700 mil km de terras devolutas, que não são reservas indígenas nem áreas protegidas, e seria muito impor- tante boa parte dessa área se tornar protegida ou reservas indígenas para evitar a explosão da grilagem de terra”, recomenda Nobre.

Direito garantido pela Constituição Federal de 1988, a demarcação de territórios indígenas é outro ponto central para a preservação dos biomas (Foto: Ilustração: Flavia Hashimoto)

Direito garantido pela Constituição Federal de 1988, a demarcação de territórios indígenas é outro ponto central para a preservação dos biomas (Foto: Ilustração: Kleverson Mariano)

Mas o que se tem visto é uma afronta constante a esses povos e os territórios que ocupam, o que levou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) a protestar nas ruas de Glasgow. No dia 9 de novembro, a entidade organizou o Ato Luta pela Vida, junto com os movimentos Extinction Rebellion e Amazon Rebellion, contra o governo brasileiro. “Não existe solução para crise climática sem terras e povos indígenas”, dizia o mote dos manifestantes.

Prato mais verde

Ele não dura tanto no ar quanto o dióxido de carbono, mas ao longo de 100 anos é capaz de aquecer entre 28 e 34 vezes mais que o CO2. Por isso, a redução de suas emissões é considerada estratégica a curto prazo: se forem reduzidas em 40% a 45% na próxima década, o aumento da temperatura nos próximos 20 anos poderia ser limitado em 0,3 grau, estima a Organização das Nações Unidas (ONU).

Estamos falando do metano, um gás que ganhou protagonismo na COP26 quando 103 países — incluindo o Brasil — assinaram o compromisso de cortar em 30% as emissões do poluente até 2030. Vazamentos em campos de petróleo e gás, aterros sanitários e plantações de arroz são algumas de suas fontes. No Brasil, quinto maior emissor de metano do mundo, a maior delas é a agropecuária, responsável por 73% do gás lançado entre 1990 e 2019, segundo o SEEG.

Grande parte dessas emissões vem da fermentação entérica, popularmente conhecida como “arroto” do boi. Nada mais é do que a digestão natural dos ruminantes, que lançam o metano no ar principalmente na forma de arroto, mas também por meio de flatulências e a partir das fezes. Com mais de 200 milhões de cabeças de gado, o país registrou o maior rebanho bovino do mundo em 2020.

Quanto maior o número desses animais, mais gás vai para a atmosfera. Por isso, reduzir essas populações e o consumo de carne estão entre as medidas para refrear as emissões. “Há também alternativas como o melhoramento da dieta do gado para que ela seja menos metanogênica e intensifique seu crescimento, fazendo com que ele possa ser abatido antecipadamente e, assim, libere menos metano”, exemplifica Giampaolo Queiroz Pellegrino, coordenador do Portfólio de Mudanças Climáticas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Controlar as emissões nesse setor, incluindo do metano, é um dos objetivos do Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono, mais conhecido como Plano ABC, cuja segunda fase entra em vigor ainda este ano. Lançado em 2009 pelo então Ministério da Agricultura, o programa visa incentivar produtores rurais a adotarem práticas sustentáveis.

Na primeira fase, eram previstas iniciativas como plantio direto e recuperação de pastagens. Agora, estão na mira tecnologias como sistemas irrigados e técnicas que reduzem o ciclo de vida do boi. “As medidas previstas no Plano ABC são corretíssimas, mas nós temos potencial para fazer muito mais, investir mais dinheiro e fazer uma revolução para poder dizer que, de fato, o agro no Brasil é de baixo carbono”, comenta Suely Araújo, do Observatório do Clima.

Outro ponto essencial nessa discussão é saber quanto metano o setor pecuário de fato emite no Brasil, desde o nascimento do animal, passando pelas fazendas por onde ele transita até chegar ao abate. “O primeiro dos desafios é medir isso, porque não se pode diminuir o que não se mede”, destaca a engenheira ambiental Luiza Bruscato, gerente executiva do Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS).

Com 218 milhões de cabeças de gado, Brasil registrou o maior rebanho bovino do mundo em 2020 (Foto: Ilustração: Flavia Hashimoto)

Com 218 milhões de cabeças de gado, Brasil registrou o maior rebanho bovino do mundo em 2020 (Foto: Ilustração: Kleverson Mariano)

Para Carlos Nobre, também é preciso prestar atenção em grupos que disseminam ideias contrárias à ciência no campo (como a de que o aquecimento global não existe), sobretudo nas grandes propriedades do agronegócio. “O Brasil tem o enorme desafio de convencer essa força econômica, onde está mais centrado o negacionismo das mudanças climáticas, a mudar de atitude, porque o plano ABC nunca foi incorporado pelo setor tradicional conservador da agricultura”.

E, ao contrário da ideia que se propaga nesses espaços, a dicotomia entre produtividade e preservação é falsa. “Nós não precisamos de mais área para expandir agricultura, há inúmeros estudos que mostram que temos condições de dobrar a nossa produção incorporando técnicas produtivas sustentáveis, sem ampliar o desmatamento”, reforça Pellegrino.

Dinheiro a céu aberto

Outro foco central das discussões na COP26 foi o mercado de carbono. Originado a partir de debates na Eco-92, realizada no Rio de Janeiro no início da década de 1990, a ideia é relativamente simples, mas complexa de se pôr em prática. Em resumo, se um país reduzir suas emissões para além das metas (o que pode ser feito a partir de ações como reflorestamento ou transição para energias renováveis), ele poderia vender esses excedentes de créditos de carbono para outro país.

Mercado de carbono foi um dos focos das discussões na COP26  (Foto: Ilustração: Flavia Hashimoto)

Mercado de carbono foi um dos focos das discussões na COP26 (Foto: Ilustração: Kleverson Mariano)

O comprador, por sua vez, conseguiria contabilizar essa redução em sua própria meta nacional. É como negociar uma espécie de “superávit” de carbono. Mas é bom lembrar que, para cada tonelada de CO2 emitida em algum lugar do mundo, é necessário que outra tonelada seja capturada ou deixe de ser emitida em outro canto do planeta.

Por convenção, um crédito de carbono corresponde a 1 tonelada de dióxido de carbono. Outros gases também podem ser negociados nesse mercado a céu aberto: nesse caso, é feito um cálculo que compara seu efeito na atmosfera terrestre com aquele provocado pelo CO2.

O artigo 6 do Acordo de Paris estipulou a criação de um mercado global de carbono, mas foi na COP26 que se deram os primeiros passos na direção de uma regulamentação, unificando regras para o mundo. A principal delas diz respeito à “dupla contagem”: todos os créditos vendidos precisarão ser descontados das metas do comprador e acrescidos às metas do vendedor, de modo que não podem ser descontados duas vezes nos compromissos dos países.

A ideia é olhar para as emissões no saldo global, e não para nações individualmente. “O que a gente precisa não é que os países fiquem quites, mas que menos carbono seja emitido”, explica Suely Araújo, do Observatório do Clima.

O Brasil está entre as nações que mais podem colher bons frutos dessa medida. Considerando o cenário crescente de destruição dos biomas, no entanto, as perspectivas são desanimadoras. “Todos esses problemas que o país vai jogando para debaixo do tapete são impeditivos para fazer o mercado de carbono funcionar aqui, porque ninguém vai querer comprar crédito de carbono na situação que a gente vive hoje”, adverte Mercedes Bustamante, da UnB.

O Brasil está entre as nações que mais podem colher bons frutos dessa medida. Considerando o cenário crescente de destruição dos biomas, no entanto, as perspectivas são desanimadoras (Foto: Ilustração: Flavia Hashimoto)

Brasil está entre as nações que mais podem colher bons frutos dessa medida — mas cenário crescente de destruição dos biomas enfraquece perspectivas (Foto: Ilustração: Kleverson Mariano)

Todos no mesmo barco?

Fato é que, mesmo controlando emissões e limitando o aumento da temperatura global em torno de 1,5 °C até 2100, as mudanças climáticas já fizeram inúmeros estragos — alguns deles, irreversíveis. Estima-se que haverá, por exemplo, um aumento de dois a três metros no nível do mar.

Segundo um estudo publicado em julho na revista científica Nature Communications, há no mundo cerca de 1,05 milhão de km² de áreas situadas a menos de dois metros acima do nível do mar, onde o risco de intempéries é maior. No total, são 267 milhões de pessoas vivendo nessas regiões, sobretudo em ilhas. Daí a urgência das chamadas medidas de adaptação climática, cujo objetivo é diminuir a vulnerabilidade dos países aos impactos de eventos como enchentes e secas, em especial os mais pobres.

Na COP26, sinalizações importantes foram feitas nessas discussões. O acordo conclama os países ricos a dobrarem os recursos prometidos a nações em desenvolvimento até 2025 e também determina que 5% da receita da comercialização dos créditos do mercado de carbono seja destinada a financiar a adaptação de países pobres à emergência climática.

Os principais pontos e críticas ao rascunho final da COP26 (Foto: UNclimatechange/Flickr)

Adiado pela crise sanitária, o encontro que se propunha a direcionar as medidas de enfrentamento ao aquecimento global nos próximos dez anos terminou em tom de frustração. (Foto: UNclimatechange/Flickr)

Tais investimentos podem incluir a instalação de sistemas de alerta contra tempestades e marés altas em ilhas vulneráveis, projetos de restauração e proteção de manguezais (ecossistemas que protegem a costa contra erosões) e incentivos à adoção de culturas agrícolas mais resistentes à seca.

Mas houve pouco avanço quando o assunto é dinheiro na mesa para o financiamento climático — e essa é uma frustração antiga. O relatório nota “com profundo pesar” que as nações ricas não tenham cumprido o objetivo que estipularam em 2009: investir US$ 100 bilhões por ano até 2020 em fontes de energia limpa nos países em desenvolvimento.

E estabelece um programa de trabalho para determinar uma cifra atualizada, que valerá até 2025, exortando os países desenvolvidos a terem “transparência” na implementação de suas promessas. “Apesar de a COP ter cumprido o esperado e lançado a base para a decisão sobre a meta de 2025, apenas reconhecer e lamentar que os países ricos não cumpriram sua obrigação é chocante”, diz uma nota do Observatório do Clima. 

Nações pobres e em desenvolvimento emitem menos e são as que mais sofrem com os eventos climáticos extremos: países africanos como Camarões, Zimbábue, Etiópia e Gana já gastam cerca de 10% de seus PIBs com impactos de eventos climáticos extremos, de acordo com a ONU. Investimentos nesses países podem ajudar não só com os custos da transição energética, mas também a lidar com as consequências das mudanças climáticas.

O acordo firmado fala em “fortalecer parcerias” entre países desenvolvidos, em desenvolvimento e instituições financeiras para ajudar na resposta a danos causados pelo aquecimento global, mas não define recursos exatos para isso. “Esse foi um dos baldes de água fria, porque se esperava um compromisso maior já há algum tempo. Mas eu nem falo por conta do Brasil, que pede para colocar o dinheiro na mesa, mas tem dinheiro e não usa”, opina Bustamante, citando como exemplo o Fundo Amazônia, programa criado para captar recursos internacionais em ações contra o desmatamento na floresta — mas que está há mais de dois anos parado em uma conta bancária do governo federal.

As discussões sobre os mecanismos de financiamento climático devem se estender para a COP27, prevista para acontecer em novembro de 2022, no Egito. E não há como negar a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos nessa conta. “Não adianta um país cortar todas as suas emissões e os outros continuarem emitindo. Precisamos lembrar que a atmosfera é um bem comum global”, diz Bustamante. Se a regra do “cada um por si” continuar imperando, não tem saída: todo mundo sairá perdendo.