• Matt A. Field e J. William O. Ballard, para The Conversation
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Do lobo ao chihuahua: estudo revela onde o dingo se situa na evolução dos cães (Foto: Wikimedia Commons)

Do lobo ao chihuahua: estudo revela onde o dingo se situa na evolução dos cães (Foto: Wikimedia Commons)

Muitas pessoas sabem que os cães modernos evoluíram do lobo-cinzento. Mas você sabia que a maioria das mais de 340 raças modernas de cães que temos hoje só surgiram nos últimos 200 anos?

Os cães foram domesticados pela primeira vez durante o período Neolítico, entre 29 mil e 14 mil anos atrás, e têm sido intimamente ligados aos humanos desde então. Acredita-se que os dingos – o único cão nativo australiano – representem um evento único na evolução canina, tendo chegado à Austrália de 5 mil e 8 mil anos atrás.

No entanto, o lugar exato dos dingos na árvore genealógica evolutiva dos cães nunca foi conhecido. Para descobrir onde eles se afastaram dos lobos-cinzentos em sua jornada evolutiva, usamos tecnologias de sequenciamento de DNA de ponta para descobrir que os dingos são fundamentalmente diferentes dos cães domésticos.

Em uma pesquisa publicada em 22 de abril na Science Advances, em colaboração com 25 pesquisadores de quatro países, mostramos que os dingos são uma ramificação inicial dos cães modernos situados entre o lobo-cinzento e os cães domesticados de hoje. Este trabalho tem implicações potenciais para a saúde de todos os cães de raças modernas.

O cão e a história humana

Ao estudar cães, podemos obter informações sobre como nós, como humanos, influenciamos suas características físicas e comportamentais, além de observar mudanças em seu genoma.

Por exemplo, os cães só recentemente desenvolveram a capacidade de levantar as sobrancelhas – uma característica provavelmente desenvolvida para se comunicar de forma mais eficaz com os humanos. Então parece que os olhos de cachorrinhos realmente foram “criados” apenas para nós.

Mas alguns exemplos não são tão óbvios e só podem ser encontrados analisando mais profundamente os genomas dos cães.

Por exemplo, estudos científicos anteriores mostraram que os cães precisam de um gene específico (amilase 2B) para digerir o amido. Muitas raças de cães carregam várias duplicatas desse gene (às vezes mais de dez cópias). No entanto, o lobo e o dingo retêm apenas uma única cópia desse gene.

Essa duplicação em cães modernos provavelmente resultou de uma mudança na dieta dos primeiros cães domesticados, pois eles eram cada vez mais alimentados com alimentos ricos em amido, como arroz (cultivado através da agricultura generalizada inicial).

Curiosamente, a mesma duplicação de genes ocorreu independentemente em outros animais domésticos recentemente domesticados, o que indica como os humanos podem afetar os genomas de animais domesticados.

Uma ramificação precoce de cães modernos

Os dingos são únicos, pois foram geograficamente isolados de lobos e cães domésticos por milhares de anos. Em nosso estudo, usamos a genética para nos ajudar a entender exatamente onde o dingo se encaixa na evolução dos cães e qual o papel que ele desempenha no ecossistema australiano.

Inicialmente, em 2017, tivemos acesso apenas a um único genoma de cão como ponto de comparação (da raça boxer). Ele continha muitas lacunas, devido às limitações da tecnologia na época.

No entanto, nesse mesmo ano, o dingo venceu a competição “World’s Most Interesting Genome”, realizada pela empresa de biotecnologia americana Pacific Biosciences. Isso nos fez pensar em gerar um genoma de dingo de alta qualidade.

Mas para entender o lugar do dingo na história dos cães, também precisávamos de vários genomas de cães de alta qualidade. Assim, geramos um genoma de pastor alemão como uma raça representativa, seguido pelo basenji (a primeira raça de cães usada para caça no Congo).

Sandy, filhote de dingo que teve o genoma sequenciado por cientistas (Foto: Barry Eggleton)

Sandy, filhote de dingo que teve o genoma sequenciado por cientistas (Foto: Barry Eggleton)

Finalmente, conseguimos sequenciar o genoma de um filhote de dingo puro do deserto, Sandy, encontrado abandonado no interior (acima).

A capacidade de gerar genomas de alta qualidade só se tornou possível nos últimos anos, devido ao desenvolvimento da tecnologia de sequenciamento de leitura longa. Essa tecnologia também foi crucial para a conclusão recentemente anunciada de todo o genoma humano.

Usando nossos novos genomas de cães – juntamente com genomas existentes do lobo da Groenlândia e outras espécies representativas, incluindo o dogue alemão, boxer e labrador – medimos o número de diferenças genéticas entre essas raças e o dingo para mostrar definitivamente onde o dingo se encaixa na linha do tempo da evolução.

Descobrimos que os dingos são realmente uma ramificação inicial de todas as raças modernas de cães, entre o lobo e os cães domesticados de hoje.

Trabalho futuro

Coletivamente, nossa análise mostra como condições demográficas e ambientais distintas moldaram o genoma do dingo. Não podemos dizer com certeza se o dingo já foi domesticado, mas sabemos que é improvável que tenha sido domesticado após sua chegada à Austrália.

O trabalho futuro em mais genomas de dingo abordará se o dingo já foi domesticado e também medirá o nível e o impacto do cruzamento puro de dingo com cães domésticos. Embora muitos dingos híbridos sejam semelhantes na aparência, houve cruzamentos substanciais, particularmente em Nova Gales do Sul e Victoria.

Esse conhecimento é importante. Uma melhor compreensão do efeito do cruzamento de dingos com cães pode fornecer informações sobre o papel dos dingos no ecossistema e, portanto, ajudar nos futuros esforços de conservação.

Além disso, o conhecimento sobre a história evolutiva dos dingos nos ajuda a entender como e quando os cães domésticos evoluíram ao lado dos humanos e pode nos ajudar a identificar e direcionar novas maneiras de melhorar sua saúde e vitalidade.

Aplicações veterinárias

Através da seleção artificial, os humanos têm cruzado seletivamente cães para traços e características desejáveis por centenas de anos.

Embora isso tenha criado linhagens modernas de raça pura, também resultou em muitas doenças específicas da raça. Por exemplo, labradores e pastores alemães são propensos a displasia da anca (encaixe inadequado da articulação que leva a sérios problemas de mobilidade ao longo do tempo), golden retrievers são propensos a certos tipos de câncer e jack terriers são suscetíveis à cegueira.

A geração de genomas de alta qualidade para dingos e lobos pode nos ajudar a determinar a causa dessas doenças, servindo como uma linha de base ou referência livre de doenças. Essas descobertas podem levar a novas opções de tratamento direcionadas para cães de raça.

* Matt A. Field é professor associado da Universidade James Cook, e J. William O. Ballard professor e chefe do Departamento de Gnética e Meio Ambiente da Universidade La Trobe, ambas na Austrália. O artigo foi originalmente publicado em inglês no The Conversation.