• Texto – Juliana Malacarne fotos – Eduardo Queiroga
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CF303-ENSAIO-PARTEIRA (Foto: EDUARDO QUEIROGA)

(Foto: EDUARDO QUEIROGA)

Em regiões do Brasil longe dos centros urbanos, onde famílias moram em locais de difícil acesso e os hospitais mais próximos estão a dezenas de quilômetros de distância, existe um conjunto de saberes transmitido há gerações que corre o risco de desaparecer: o das parteiras. Para impedir que esse conhecimento se perca com o passar dos anos e o avanço de uma sociedade que, cada vez mais, ganha acesso a médicos, as antropólogas Julia Morim e Sumaia Vieira, a psicóloga Dan Gayoso e o fotógrafo Eduardo Queiroga, todos de Recife (PE), decidiram se unir para registrar as práticas dessa profissão e a história de vida das mulheres que ainda a exercem.

Um dos produtos dessa iniciativa é Cordão (Editora Zolu, R$ 60), livro que retrata o cotidiano das parteiras pelas imagens feitas por Queiroga na área rural de Pernambuco. “O livro é um dos desdobramentos do que chamamos de Museu da Parteira, que não tem uma sede física, mas conta com inventário de práticas e saberes dessas mulheres, livros, filme, exposição itinerante e oficinas sobre o assunto. O objetivo é dar visibilidade para essa atividade tão antiga que não é valorizada nem reconhecida, e o Cordão entra como uma narrativa mais pessoal da minha trajetória nesse universo”, conta o fotógrafo.

Na obra, que intercala fotografias da rotina das parteiras e registros do ambiente que habitam, as mulheres aparecem caminhando por paisagens áridas, abastecendo fogões a lenha, descansando em redes e participando de cerimônias religiosas. “Meu objeto não era o nascimento. Queria entender quem são as parteiras e como vivem. Elas têm outras profissões e são donas de casa. Via de regra, não recebem nada por acompanhar os partos, mas se tornam líderes em suas comunidades, desempenhando, muitas vezes, os papéis de juíza, psicóloga e assistente social entre as famílias”, revela.

CF303-ENSAIO-PARTEIRA (Foto: EDUARDO QUEIROGA)

Muitas parteiras vivem em regiões afastadas e casas simples, como as retratadas nas fotos. Mesmo assim, estão dispostas a percorrer quilômetros para ajudar outras mulheres durante o trabalho de parto (Foto: EDUARDO QUEIROGA)

CF303-ENSAIO-PARTEIRA (Foto: EDUARDO QUEIROGA)

(Foto: EDUARDO QUEIROGA)

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(Foto: EDUARDO QUEIROGA)

Desde 2008, a equipe fotografou e entrevistou mais de 200 parteiras em seis localidades de Pernambuco (Caruaru, Igarassu, Ipojuca, Jaboatão dos Guararapes, Palmares e Trindade) e de três etnias indígenas (Xucuru, no Agreste Central; Pankararu, no Sertão de Itaparica, e Kapinawá, no Agreste Meridional). Uma delas é Maria dos Prazeres de Souza, conhecida como Dona Prazeres, de 80 anos, que desde os 17 realiza partos seguindo a tradição de sua mãe e avó. Em 2017, ela, que é formada em enfermagem, recebeu o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, dedicado a mestres da cultura popular do estado de diversas áreas.

De acordo com a antropóloga Julia, foi de uma conversa com Dona Prazeres que surgiu a ideia do Museu. “Antes de 2008, Sumaia, Dan e eu organizávamos rodas de discussão sobre humanização do parto e a Dona Prazeres participava desses papos. Um dia, ela se aproximou da gente, contou que já tinha auxiliado mais de 5 mil partos sem nenhuma morte e perguntou se não teríamos interesse em contar sua história”, explica. A partir daí, a equipe decidiu documentar não só a trajetória dela, mas de várias dessas mulheres que fazem a diferença.

CF303-ENSAIO-PARTEIRA (Foto: EDUARDO QUEIROGA)

Acima, dona Prazeres, 80 anos, mostra as mãos que ajudaram a trazer mais de 5 mil bebês ao mundo (Foto: EDUARDO QUEIROGA)

A tradição e o novo

Durante as viagens, os pesquisadores perceberam que, com a chegada de postos de saúde a áreas remotas e a noção de que o parto hospitalar é mais seguro que o domiciliar, o ofício das parteiras vem perdendo espaço. Para se adaptar aos novos tempos, muitas delas fazem cursos de enfermagem e servem como elo entre as mulheres e o serviço de saúde, aliando o conhecimento biomédico às práticas tradicionais, como aplicação de massagens para aliviar as dores do parto e o uso de chás com plantas medicinais.

Por outro lado, mesmo com as mudanças, muitas gestantes ainda optam por ter os bebês com as parteiras pela confiança e o acolhimento que sentem com elas. “Elas lidam com o parto de outra forma, pautam sua prática no cuidado e não no risco e respeitam o tempo da mulher. Em contraponto a muitos obstetras, elas escutam a parturiente e dão mais autonomia a ela”, diz Julia. Para as parteiras, ter filhos não é algo de outro mundo, mas parte da vida e da natureza.

Os pesquisadores registraram também a maneira como elas costumam encarar o ofício: uma missão, um dom que lhes foi dado por Deus com o objetivo de salvar vidas e que, por isso, não pedem compensação financeira. “Elas estão à frente de seu tempo, várias já têm mais de 80 anos, e praticam a sororidade [união entre as mulheres baseada em empatia e companheirismo] desde muito antes de o termo virar moda. Elas superam o cansaço de uma rotina exaustiva e contrariam a opinião dos maridos para ajudar outras mulheres nesse momento de vulnerabilidade”, relata Julia.

Como o conhecimento das parteiras sempre foi transmitido oralmente, os registros escritos, fotográficos e audiovisuais recolhidos pelos pesquisadores estão sendo utilizados em um pedido oficial ao governo para que reconheça o ofício como patrimônio cultural nacional. Para as parteiras, a proposta é a valorização do trabalho de toda uma vida e, para a sociedade, um lembrete de que o cuidado e a atenção no atendimento às mulheres na hora do parto são valores que não podem ser perdidos com o tempo.

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Durante seus encontros com as parteiras, o fotógrafo buscou retratá-las em locais em que se sentissem confortáveis. Aqui, uma delas é clicada descansando no sofá de casa (Foto: EDUARDO QUEIROGA)

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(Foto: EDUARDO QUEIROGA)

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A tesoura para cortar o cordão umbilical, o caderno que reúne marcas dos pezinhos dos recém-nascidos e a cartela de identificação da associação de parteiras: mascas do ofício que corre o risco de desaparecer (Foto: EDUARDO QUEIROGA)

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"A maioria das parteiras com quem conversamos já tem muita idade, e não existem tantas mulheres jovens dispostas a ocupar esse lugar", diz Queiroga (Foto: EDUARDO QUEIROGA)

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