• Juliana Malacarne e Fernanda Montano
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Alfabetizacao na pandemia (Foto: Getty Images)

(Foto: Getty Images)

A primeira vez que seu filho lê o título de um livro sozinho ou escreve com mãos pequeninas o próprio nome é um marco inesquecível. Então, é natural que os pais se sintam ansiosos por presenciar esses momentos. Para muitas famílias que sonhavam em viver essas conquistas em 2020, a pandemia de covid-19, com consequente esquema de aulas online e distanciamento social, foram obstáculos nesse processo. No entanto, ainda que o ano passado não tenha ocorrido da forma esperada e existam incertezas em relação a este ano, é possível e necessário estimular seu filho para seguir em frente nessa trajetória.

É fato que a ausência do contato presencial com professores e colegas impactou – e muito – as crianças no aprendizado. É o caso de Arthur, 7, filho da servidora municipal Mery Takushi, 38, de Amparo (SP), que, mesmo com a dedicação dos educadores para se adaptar a uma nova realidade, teve dificuldades ao acompanhar as atividades online. “Em 2019, ele estava começando a ler e escrever com letra cursiva, e no ano passado não avançou nada nesse aspecto”, afirma Mery. “O Arthur tem perda de processamento auditivo, que é quando o cérebro não consegue interpretar de maneira adequada informações transmitidas por meio do som, então ele aprende muito mais vendo do que escutando. Sem a presença física da professora e dos amigos, houve dias em que era muito difícil motivá-lo a acompanhar a aula. Mexeu com o emocional dele e com o nosso também, porque ocorreram situações em que eu queria ficar em casa, ajudando com as tarefas da escola, mas precisava trabalhar. Ainda bem que tive minha rede de apoio para acompanhá-lo nesse período.”

Os efeitos negativos que a ausência de convívio com crianças da mesma idade traz para o desenvolvimento neurológico e emocional dos pequenos já são bem conhecidos pela ciência. De acordo com o neuropediatra Lívio Chaves, do Departamento de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), uma das principais formas que a criança aprende é por meio da atenção compartilhada com os colegas. “Antes de saber ler e escrever é preciso ser capaz de se concentrar e manter o foco, habilidades que os pequenos exercitam muito uns com os outros, esperando a hora de brincar, exercendo o autocontrole, a tolerância e lidando com a frustação. Além disso, os impactos emocionais da falta de convívio com os amigos afetam o comportamento, podendo levar a quadros de ansiedade e depressão, o que, obviamente, prejudica qualquer aprendizado. Portanto, nesse contexto de pandemia, é esperado e natural que muitas crianças não tenham tido o desempenho acadêmico esperado”, explica o neuropediatra.

Respeito à individualidade

Mas calma! Um ritmo mais lento de aprendizado não significa, porém, que a criança está “ficando para trás”, a não ser que exista uma série de sinais que apontem a necessidade de consultar um profissional. A ideia de que a criança precisa obrigatoriamente estar lendo até o primeiro ano do ensino fundamental é um dos principais mitos que preocupam as famílias. Foi o que aconteceu com a psicóloga Regina Martins, 42, de Diadema (SP), que precisou lidar com a própria ansiedade para estimular de forma saudável a filha Lorena, 6, que ainda está adquirindo proficiência na leitura e escrita. “Ao conversar com os coordenadores pedagógicos, me acalmei e vi que o desenvolvimento da minha filha era normal. Abandonei o peso e a pressão de alfabetizá-la até um limite estabelecido artificialmente, e as coisas vêm fluindo melhor e mais naturalmente. Em casa, brincamos de rima, forca, escrevemos cartinhas para familiares e vamos incentivando no dia a dia o processo, sem forçar nada”, afirma Regina.

De acordo com Chaves, é aceitável que o processo de alfabetização seja concluído até os 9 anos, pois é uma fase que deve acompanhar o desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança. “Para aprender a ler e a escrever a criança precisa antes ter um domínio consolidado da linguagem oral, evidenciado por meio de habilidades como expressar preferências verbalmente e criar narrativas em brincadeiras de faz de conta, além de ter coordenação motora suficiente para conseguir fazer traços iniciais. Cada criança se desenvolve em uma velocidade única, e apressar essa fase pode fazer com que ela perca o interesse e fique desestimulada, pois vai lidar com tarefas para as quais ainda não está neurologicamente preparada”, explica o neuropediatra.

Outra armadilha em que os pais podem cair durante a alfabetização é a comparação do desenvolvimento entre crianças da mesma idade. Na família da redatora Alessandra Mizrahi, de São Paulo (SP), mãe de Beni, 8, Tomy e Johny, 6, e Nina, 4, as diferenças são nítidas. Enquanto Johny já lê, escreve e faz contas de adição e subtração com facilidade, o irmão gêmeo, Tomy, que estuda na mesma escola, comete muitos erros de escrita e leitura. “O Johny tem esses interesses acadêmicos, já o Tomy ama pintar, conhece todas as músicas do Gilberto Gil e cuida da nossa cachorra como ninguém. Procuro sempre valorizar o que eles têm de diferente, pois acredito que a escola só contempla algumas habilidades humanas. Durante a pandemia, perdemos um tio, muito próximo, por causa da covid-19, o que foi uma lição sobre como lidar com o luto, ter resiliência e se adaptar. Quem disse que pressioná-los a ler e a escrever será mais útil para a vida deles do que todos esses ensinamentos que tiveram?”

Mais livros, menos telas

Por causa da rotina conturbada, muitas famílias acabaram recorrendo de forma ainda mais frequente às telas, o que pode prejudicar o desenvolvimento infantil quando o uso é excessivo. Em um estudo realizado em dezembro de 2020, pesquisadores do Hospital da Criança de Cincinnati, Estados Unidos, analisaram 47 ressonâncias magnéticas de crianças entre 3 e 5 anos e concluíram que as que passavam mais tempo lendo com um cuidador do que usando telas tinham mais matéria branca cerebral, determinante fundamental na facilidade de aprendizagem. Isso não quer dizer, no entanto, que você tenha de eliminar os gadgets de vez na sua casa, e sim encontrar equilíbrio.

Para a professora emérita Magda Soares, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, banir completamente as telas da rotina das crianças não é viável nem desejável, mas seu uso precisa ser conciliado ao dos materiais impressos. “As telas já estão incorporadas à cultura contemporânea, e faz parte da educação da criança inserir-se no contexto cultural onde nasceu e vive. O importante é o controle e a orientação do uso desses dispositivos para que não afastem os pequenos de livros e gibis, que são bem mais estimulantes para o desenvolvimento da capacidade de concentração profunda”, afirma a educadora Magda.

Em um ano em que a tecnologia permitiu que a escola entrasse dentro de casa, a parceria entre os pais e educadores se intensificou, e esse talvez seja um dos principais legados positivos das mudanças impostas pela pandemia, segundo a professora Soraya Pacífico, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. “O papel das famílias na alfabetização, estimulando as crianças no dia a dia, sempre foi essencial. Só se aprende a ler e a escrever nas práticas sociais, e isso ficou ainda mais evidente com as aulas online”, diz a educadora.

Então, respire aliviado. Com o incentivo adequado em casa e o apoio especializado de professores, sempre atentos a dificuldades excepcionais, seu filho terá as ferramentas de que precisa para aprender a ler e a escrever no tempo dele, seja no ensino presencial, seja no remoto. Logo vocês estarão comemorando juntos essas tão esperadas conquistas, acredite!

Alfabetizacao na pandemia (Foto: Getty Images)

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O que esperar em cada fase

Até os 3 anos

- Sentir curiosidade por ouvir histórias e recontar as que mais gosta.
- Solicitar que releiam suas narrativas favoritas (o famoso “lê de novo”).
- Completar frases de seu livro preferido durante a leitura dos pais.
- Demonstrar interesse pela escrita de seu nome e de familiares.
- Imitar a escrita dos adultos em seus desenhos.
- Compreender que escrever é diferente de desenhar.

Entre 4 e 5 anos

- Escrever seu nome cada vez mais próximo do convencional e reconhecer que seu nome escrito o identifica.
- Estar disposto a ouvir histórias mais longas e reconhecer palavras que rimam.
- Gostar de recontar histórias que conhece de memória.
- Compreender que a leitura na página é feita da esquerda para a direita e de cima para baixo.
- Ter um repertório de travalínguas, poesias, rimas, parlendas e outros pequenos textos de memória.

Entre 6 e 8 anos

- Ter um controle da escrita progressivo e intencional, que caminha para a convencionalidade, mesmo com erros ortográficos.
- Ler palavras isoladas ou frases e se autocorrigir ao cometer erros de leitura.

Fonte: Fernanda Flores, diretora pedagógica da Escola da Vila, e Paula Girotto, neuropediatra do Sabará Hospital Infantil (SP)

Alfabetizacao na pandemia (Foto: Getty Images)

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Quando algo está errado

No contexto de pandemia, de acordo com o neuropediatra Lívio Chaves, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), antes de supor que a criança apresenta algum transtorno de aprendizado, é preciso avaliar o nível de estimulação que ela teve ao longo de 2020 e o impacto da quarentena para sua saúde mental. “A criança anda muito ansiosa, estressada ou triste? Está se recusando a participar das aulas online? Será que a ausência da figura presencial do professor não está impactando negativamente a motivação? Será que a atenção está adequada ou pode ter sido prejudicada pelo uso excessivo de telas? Tudo isso são dificuldades que podem explicar por que uma criança acima de 7 anos ainda não lê nem escreve nada. Para os mais novos do que isso, pode ser que cognitivamente ainda não estejam preparados para essa tarefa e seja preciso esperar”, explica.

Se o pequeno tem mais de 7 anos e todas as questões acima foram tratadas de forma adequada, é preciso observar que tipo de dificuldade ele apresenta. “Se a criança não consegue identificar rima, se recusa a tentar ler e escrever, não consegue identificar letras, não compreende histórias, troca a grafia de fonemas de forma muito intensa ou espelha as letras é preciso consultar um profissional”, explica Chaves.

Antes de procurar um médico, porém, o primeiro passo é conversar com a equipe pedagógica da escola, que deve ter especialistas qualificados para identificar as dificuldades além do comum, e, assim, sugerir um direcionamento.

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