• Sabrina Ongaratto
Atualizado em
Companhia aérea pediu para que os pais saíssem do voo por conta da doença da filha (Foto: Reprodução Instagram)

Companhia aérea pediu para que os pais saíssem do voo por conta da doença da filha (Foto: Reprodução Instagram)

Uma família viveu uma situação bastante constrangedora há pouco mais de uma semana, no aeroporto de Aracajú, em Sergipe. Marcus Vinicius Alexandre Silva, 28 anos, de Girau do Ponciano, tinha acabado de embarcar com a mulher, o pai e a filha de 2 anos e 11 meses em um voo da Gol com destino a São Paulo, quando foram convidados a se retirarem do avião. O motivo alegado pela companhia aérea era de que a menina tivesse uma doença contagiosa.

No entanto, a família estava indo para a capital paulista justamente em busca de tratamento para a pequena que sofre de ictiose — uma condição rara, mas que não passa de uma pessoa para outra. Em entrevista à CRESCER, ele, que está desempregado, contou em detalhes tudo o que aconteceu.

+ Família diz ter sofrido discriminação em voo devido ao autismo do filho

C: O que sua filha tem?
M: Ela nasceu perfeita, mas cerca de quinze dias depois, apareceu uma mancha vermelha ao redor da boca. Na época, a gente achou que fosse da chupeta. Depois de passar por alguns médicos, suspeitaram de dermatite. Ela melhorava e depois a mancha voltava a aparecer, mas nunca tinha ficado da maneira que está hoje. Há cerca de dez dias, ela entrou em uma crise e está com manchas no rosto e no corpo todo que doem, coçam bastante, escamam e dependendo da maneira como pegamos ela, machuca.

C: Foi a primeira vez que voaram com ela? O que vocês pretendiam fazer em São Paulo?
M: Sim, foi a primeira vez que ela voou. Moramos no interior e lá, os hospitais não têm muita estrutura, são mais limitados. Em São Paulo, o suporte é maior e as coisas são mais desenvolvidas. Estávamos desesperados em busca de atendimento para ela.

C: Onde e como vocês foram abordados?
M: Passamos por todo o processo normalmente — check in, raio x e portão de embarque —, ninguém falou nada até estarmos acomodados dentro do avião. Faltando menos de 10 minutos para decolar, fomos abordados por um funcionário da empresa. Ele perguntou se a minha filha estava com catapora, minha esposa disse que não e explicou o que ela tem. Disseram que parecia caxumba, novamente minha esposa explicou que não se tratava disso. Então, uma enfermeira especialista em dermatologia, que já tinha conversado conosco antes do embarque, tentou ajudar, explicando que se tratava de ictiose. Em seguida, veio uma aeromoça perguntando quantas bagagens tínhamos despachado. Minutos depois, outros funcionários vieram e fomos convidados e nos retirarmos do avião para conversar lá fora. Perguntei o motivo e disseram que minha filha tinha uma doença contagiosa. Tentamos explicar que não, a enfermeira também falou e, inclusive, responsabilizou-se por um laudo autorizando minha filha a viajar, mas disseram que ela não tinha competência para isso. Começamos a discutir no avião, minha filha começou a chorar... ficamos nervosos... Nesse meio tempo, um passageiro cobrou do comandante uma decisão. O piloto disse que se não saíssemos por bem, eles acionariam a Polícia Federal. Foi uma confusão e resolvemos sair. Quando descemos, o avião foi embora.

Marcus com a esposa e a filha (Foto: Reprodução Instagram)

Marcus com a esposa e a filha (Foto: Reprodução Instagram)

C: Vocês tinham algum documento indicando que se tratava de ictiose?
M: A gente não tinha um laudo dizendo especificamente que não era contagioso, mas tínhamos uma biópsia e vários documentos de consultas dizendo o que nossa filha tinha. 

C: O que aconteceu depois?
M: Ficamos conversando, discutindo e minha filha chorando muito. Eles disseram que podiam tentar remarcar o embarque para o dia seguinte, mas expliquei que minha filha não tinha condições de esperar tanto tempo, pois estava em crise e havia piorado muito no dia anterior. Já não tínhamos dormido nada na noite passada. Então, propuseram que embarcássemos em um voo mais tarde, caso conseguíssemos um laudo. E aí, começou a correria. Fomos para um hospital, desesperados, explicamos a situação e uma médica nos ajudou. Voltamos para o aeroporto, demos banho nela na pia do banheiro e ficamos esperando por horas até o proximo voo.

C: Como ela está nesse momento?
M: Ela teve uma piora quando chegamos em São Paulo: teve febre, não queria comer, chorou muito, estava com dor... A levamos para a emergência e ela ficou internada. Passou por exames, fez biópsia, recebeu alta e está se recuperando. Nesse momento, estamos na casa de parentes. Estamos tomando todos os cuidados e devemos iniciar o tratamento em breve. A ictiose dela não é grave e ela pode ter uma vida normal. Não é contagiosa. Ela só precisa de tratamento pra isso.

+ Coronavírus: Menino é proibido de embarcar por febre e pais o "abandonam" em aeroporto chinês

C: Como pai, qual é o sentimento que fica depois de toda essa situação?
M: Foram ignorantes e preconceituosos conosco. Hoje, eu me senti um lixo. Ver sua filha ser exposta a isso é terrível. É um constrangimento enorme, nunca pensei que fosse passar por isso na minha vida. A gente já estava correndo para conseguir atendimento e passar por tudo isso foi muito difícil.

C: Vocês pretendem tomar alguma providência legal? 
M: Estamos recebendo toda orientação e suporte dos nossos advogados, que constituimos em Alagoas, mas, primeiro, vamos focar na saúde da minha filha. Essa é a nossa prioridade. Depois, vamos conversar para decidir o que fazer sobre tudo o que passamos.

NOTA DE REPÚDIO

O caso chegou até as redes sociais depois que a enfermeira que estava no mesmo voo presenciou a cena e fez um relato na segunda-feira (27). "Indignação é o mínimo, para expressar tudo que senti hoje, neste voo da Gol. Não deixaram os pais falarem, não me deixaram falar, apesar de todas as nossas tentativas de lhes explicar que nem toda doença de pele é contagiosa. Foram desumanos, desrespeitosos com a família e comigo como profissional, pois disseram que eu 'não era médica e não podia afirmar isto', ou seja, duvidaram de meu conhecimento como enfermeira. A família ficou desamparada. Houve falta de acolhimento, de ouvir, de querer compreender e aprender que ictiose não é contagiosa, não transmite de uma pessoa para outra. Se já não bastasse tudo que passam com a doença da filha, ainda enfrentam desrespeito e comportamentos burocráticos de pessoas que deveriam ajudar. Que as empresas aéreas façam uma revisão de seus protocolos, orientem melhor suas equipes e que a Anvisa e a ANAC emitam um documento esclarecendo", escreveu Maria Helena Mandelbaum.

Nesta terça-feira (28), o Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP), emitiu uma nota repudiando o desrespeito à criança e à enfermeira no voo da Gol. Segundo o órgão, Maria Helena é especialista em enfermagem dermatológica e mantém uma ONG que atende crianças com doenças raras e severas de pele. "Ela conta que a doença é caracterizada por pele seca, escamosa ou espessa. A ictiose é uma doença hereditária, sem cura e não contagiosa", esclareceram. "O tempo todo eu fiz questão de afirmar que não havia riscos para os passageiros. Até que um dos funcionários questionou a minha formação e disse que eu não poderia opinar por ser ‘apenas’ uma enfermeira", relatou Maria Helena ao Coren.

O órgão finalizou a nota dizendo: "O Coren-SP repudia qualquer tipo de desrespeito contra os profissionais de enfermagem e lamenta que uma empresa desse porte não valorize as competências técnicas da profissão. Destaca, ainda, que enfermeiros estão habilitados, conforme previsto no Decreto nº 94.408/1987, que regulamenta a lei do exercício profissional da enfermagem, a prestarem cuidados de maior complexidade técnica que exijam conhecimentos científicos adequados e capacidade de tomar decisões imediatas. Portanto, é inquestionável a capacidade de uma enfermeira, sobretudo com título de especialista, de avaliar e classificar se uma doença é contagiosa. O Conselho também repudia que a empresa tenha permitido que a falta de informação prejudicasse um cidadão em busca de tratamento".

O QUE DIZ A GOL

A Gol se pronunciou por meio de uma nota. "Sobre o caso, a GOL esclarece que a menor e sua família tiveram o embarque negado no voo G3 1503 (Aracajú – Guarulhos), já que os mesmos não portavam atestado médico informando sobre a doença da criança como é recomendado pela ANAC. Seguindo as regras de segurança da ANVISA, a Companhia ofereceu todo o suporte necessário, como transporte de ida e volta até um hospital local, para que a família pudesse pegar um atestado liberando a menor para viagem e esclarecendo sobre o diagnóstico da doença, deixando claro que não se tratava de uma enfermidade contagiosa. Após todos os esclarecimentos, a família seguiu viagem para São Paulo no voo G31501 (Aracajú – Guarulhos), às 11h20 desse domingo, 26", escreveram.

A companhia ainda finalizou com a seguinte orientação: "A GOL reforça que todo passageiro com doença infectocontagiosa ou genética deve apresentar um atestado médico que especifique a ausência de risco para contágio, como é recomendado pelos órgãos regulatórios. Tal procedimento visa garantir a segurança e saúde de todos os viajantes".

CASO SEMELHANTE

Há menos de um ano, um caso muito semelhante aconteceu em um voo da American Airlaines. A mãe, Jordan Flake, e o filho, Jackson, ambos com ictiose, foram convidados a se retirarem do avião por conta das "erupções" na pele. A história foi relatada pela própria mãe nas redes sociais. "Enquanto eu gostaria de compartilhar algo positivo, Jackson e eu fomos apenas discriminados", escreveu.

"Um tripulante calmamente me perguntou sobre minha 'erupção cutânea' e se eu tinha um atestado médico afirmando que estava tudo bem para eu voar. Expliquei-lhe que se chamava ictiose e era uma condição de pele genética. Ele se dirigiu até a frente para falar com a tripulação. Aparentemente também pesquisou no Google durante esse tempo. Quando voltou, pediu desculpas, mas disse que nós não poderíamos voar e tivemos que sair do avião. Eu nunca fui tão humilhado na minha vida. Feliz dia da doença rara! Eu não deveria ter que me explicar", desabafou.

Na época, depois que o post viralizou, a American Airlines pediu desculpas pelo incidente e disse que está investigando o que aconteceu. Eles também reembolsaram a viagem da mãe.