• Juliana Malacarne
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Pai e filha negros se divertem sorrindo e brincando de carregar a criança no ombro fazendo aviãozinho (Foto: Thinkstock)

(Foto: Thinkstock)

Desde a Antiguidade existem registros de crianças brincando. Na Grécia Antiga, por exemplo, uma gravura de 400 a.C. mostra um menino com um carrinho, enquanto na Ilíada (700 a.C.), Homero faz uma alusão a crianças se divertindo em castelos de areia*. Essa atividade tão natural aos pequenos é a maneira deles de explorar o mundo e construir relacionamentos. Nas últimas décadas, estudos científicos reforçaram sua importância tanto para o desenvolvimento do cérebro quanto para o amadurecimento das crianças. Especialistas do mundo todo, porém, temem que nossa cultura, marcada pela busca da máxima eficiência, não ofereça tempo e espaço para que as crianças brinquem o suficiente.

Prova disso é que, em agosto deste ano, a Academia Americana de Pediatria (AAP) divulgou uma recomendação para que os médicos prescrevam “tempo de brincadeira” para os pacientes nos primeiros dois anos de vida. “Vivemos numa época em que os pais sentem necessidade de planejar cada segundo do tempo das crianças. E, para alguns, a brincadeira parece irrelevante e antiquada”, disse o pediatra norte-americano Michael Yogman, autor do relatório.

Defensora do movimento internacional pela valorização do brincar, a educadora neozelandesa Sarah Amy Glensor Best lançou o livro Changing the World is Child’s Play: Inspirations for Making Everyday Moments with Children Count (“Mudar o mundo é brincadeira de criança: inspirações para fazer cada momento com os pequenos valer a pena”, em tradução livre), para mostrar como essa atividade é essencial para formar adultos mais solidários e empáticos. Em entrevista exclusiva à CRESCER, ela fala sobre como a brincadeira mudou sua relação com as três filhas (Lucy, 17 anos, Sophie, 13, e Kendra, 9) e dá dicas para que você também tenha uma rotina mais leve e divertida em casa, “apenas” brincando.

Sarah Amy Glensor Best (Foto:  )

O que inspirou você a escrever este livro?
Em muitas sociedades, a brincadeira é vista como algo trivial, sem importância, relevância ou propósito. Só que isso não é verdade. O cérebro das crianças é muito adaptável e, quando elas brincam, não estão apenas se divertindo, mas descobrindo seu caminho no mundo. Isso porque esse órgão se desenvolve de acordo com as novas experiências, o que vai impactar o futuro de todos que convivem com as crianças. Percebi isso no cotidiano com minhas três filhas ao incluir atividades lúdicas em todos os aspectos da nossa vida familiar. O interesse delas por vários assuntos desabrochou e isso me empolgou tanto que comecei a escrever uma lista com maneiras de mudar o mundo por meio do brincar. Ela cresceu rapidamente e, então, decidi transformá-la em livro.

Então, a sua visão em relação à brincadeira mudou depois que você se tornou mãe?
Com certeza. Nunca tinha pensado muito sobre isso antes. Via apenas como algo divertido, que mantinha as crianças quietas e ocupadas enquanto o tempo passava. Sabia que elas estavam aprendendo coisas, mas não parecia muito impactante. Porém, depois de ter minhas filhas, senti na pele como a brincadeira define quem as crianças são e quem vão ser no futuro. Por meio dela, os pais têm uma oportunidade única de ajudar a moldar as qualidades dos filhos. Mas é importante ter a delicadeza de quem manuseia um pedaço de argila macia, pois, se você colocar muita força, ela se parte, e o que deveria ser divertido se transforma em um peso.

Hoje em dia, as crianças são sobrecarregadas com atividades extracurriculares e têm pouco tempo para brincar. Qual o problema disso?
Há muita pressão sobre os pais para oferecerem o melhor para os filhos e isso acaba afetando as crianças, que “começam cedo” com esportes, música e aprendizado de idiomas. É raro os pequenos apenas relaxarem depois da escola. O principal problema de uma rotina sobrecarregada é que, se crescemos acostumados a ela, fica difícil sair desse ritmo mesmo nos momentos em que deveríamos estar nos divertindo, e passamos a viver em um estado de constante tensão sem nem nos darmos conta. Isso sem falar que pode acarretar problemas físicos de saúde, gerar adultos ansiosos e com dificuldade de encontrar equilíbrio emocional. Dar espaço, tempo e incentivo para as crianças brincarem de uma maneira que funcione para elas, é o que vai estabelecer uma base sólida para que consigam no futuro serem atletas, músicos e diplomatas – e não uma agenda cheia de atividades.

Você diz que a brincadeira muda o mundo para melhor. Como isso acontece na prática?
É simples. Em primeiro lugar, quando as crianças podem brincar a maior parte do tempo do jeito que desejam, elas são mais propensas a se desenvolver de maneira adequada, e os dons que inerentemente possuem têm a oportunidade de brilhar para o mundo. Em segundo lugar, durante as brincadeiras, os pais podem incentivar atributos e habilidades que considerem importantes, transmitindo esses valores para a próxima geração. Uma das ideias é misturar reciclagem e basquete, arremessando as embalagens de plástico e papel nos cestos corretos em vez de simplesmente colocá-los lá. Outra sugestão é propor às crianças a realização de um ato de gentileza aleatório por semana para ser realizado em família. Pode ser preparar uma refeição para uma vizinha que acabou de ter um bebê ou “esquecer” um brinquedo com um bilhetinho de doação no ônibus.

Pai e filha negros se divertem sorrindo e brincando de carregar a criança no ombro (Foto: Thinkstock)

Pai carrega criança sorridente nos ombros (Foto: Thinkstock)

Qual é o papel dos pais durante as brincadeiras das crianças?
Na hora de brincar com os filhos, é melhor deixar de lado a postura de que “sabemos mais” e de que a criança precisa “aprender alguma coisa” conosco. Nem sempre você precisa participar, mas certifique-se de que os pequenos tenham espaço, tempo e um ambiente seguro. Agora, há momentos em que as crianças querem que brinquemos com elas, o que também é ótimo. Nesses casos, tente não ser o líder e dê a elas uma chance de assumir o comando. Isso demonstra uma confiança mútua que fortalece o relacionamento. Outro ponto que destaco é que os pais têm dificuldade em ver os filhos enfrentando obstáculos para realizar uma tarefa ou em situações que ofereçam riscos, mesmo que controlados, e não fazer nada. Porém, devem refletir antes de intervir, pois, contanto que a criança esteja suficientemente segura, se arriscar um pouco vai ajudá-la a desenvolver a autoconfiança.

Atualmente, muitas crianças são criadas em apartamentos e já não podem brincar na rua por causa da violência ou do tráfego de automóveis. O que os pais podem fazer nessa situação?
É importante que percebam que tudo pode ser transformado em brincadeira. Você não precisa de brinquedos, lugares ou pessoas especiais. Apenas vocês, sua imaginação e situações da vida real. Conecte-se com a alegria de estar com seu filho, transforme itens comuns em objetos fantásticos e invente seus próprios jogos baseado no que te traz felicidade e o sentimento de estar conectado. Por exemplo, se você tem uma agenda atribulada, transforme os percursos semanais em brincadeira. Em vez de ouvir o rádio no carro, invente suas próprias músicas. Algo que também funciona é criar um cesto do tesouro com objetos que as crianças recolheram em passeios, como pedras, conchas ou pinhas. Assim, você sempre terá um pouco do mundo exterior dentro de casa e vai se surpreender com a quantidade de brincadeiras em que eles podem ser utilizados!

Os benefícios da brincadeira para as crianças são indiscutíveis, mas e os pais, o que eles ganham com isso?
Talvez meu maior aprendizado tenha sido (e ainda é) sobre como não levar a vida tão a sério. Como relaxar e realmente “ser” no momento – em vez de sempre estar “fazendo” alguma coisa. Isso implica em ter humildade para dar espaço às ideias das crianças, exercer a paciência e a criatividade. Além disso, o riso é, como já foi comprovado cientificamente, uma maneira de melhorar a saúde, a qualidade e a expectativa de vida. E que maneira melhor de praticar tudo isso do que brincando com nossos filhos?