• Juliana Malacarne
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CF305-LABIO-LEPORINO-TIPOS-FISSURAS (Foto: Getty Images )

 (Foto: Getty Images )

Quando a modelo Isabel Hickmann, 30 anos, ouviu do médico que realizava o ultrassom na 21ª semana de gestação que seu filho, Francisco, hoje com 4 meses, nasceria com uma fissura no lábio, sentiu um misto de surpresa, nervosismo e medo. “Não sabia direito o que era, apesar de conhecer pessoas que tinham. Tomei um susto grande”, conta em entrevista à CRESCER.

No Brasil, um a cada 650 bebês nasce com fenda nos lábios ou no palato. A fissura, conhecida como lábio leporino, surge entre a 8ª e a 12ª semana de gravidez, quando ocorre uma falha na união das diferentes estruturas que formam a face. “Na maioria das vezes, a fenda atinge tanto o tecido mole quanto o osso”, explica o professor de medicina Cristiano Tonello, da Universidade de São Paulo (USP), que é chefe técnico da Seção de Cirurgia Craniofacial do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC), em Bauru (SP). “Algumas síndromes genéticas, como a de Pierre Robin, têm a fissura como característica, mas em 70% dos casos ela não está relacionada a nenhuma doença”, diz.

Isabel Hickmann e o filho (Foto: Reprodução Instagram)

Isabel Hickmann e o filho (Foto: Reprodução Instagram)

A ciência não determina com precisão por que as fissuras ocorrem, mas estudos apontam que a resposta envolve fatores ambientais e genéticos. “Para evitar má-formações é recomendado que a gestante não consuma álcool, cigarro e drogas, o que pode causar alterações, incluindo a fissura. Porém, há casos em que a mãe não faz nada disso e, mesmo assim, o bebê nasce com uma fenda. De maneira geral, a fissura é ocasional”, diz Tonello. Ou seja, não dá para prever.

Para Isabel, aceitar que não era a culpada pelo problema do filho foi um processo desafiador. “Eu questionava se havia feito alguma coisa errada e me torturava por isso. Demorei a entender que era algo sobre o qual não tive controle”, lembra. Ao longo da gravidez, ela mergulhou em pesquisas sobre o assunto até que, em novembro de 2018, a bolsa estourou e Francisco veio ao mundo prematuramente, por meio de uma cesárea de emergência. Ela estava na 34ª semana de gestação.

Depois de passar 19 dias na UTI neonatal com o filho e mais quase três meses em casa, Isabel se sentiu pronta para apresentar ao mundo o rosto do pequeno, que tem fissura labial incompleta bilateral e fenda palatina. “Não esperava uma resposta tão positiva”, diz a mãe, sobre os mais de 4 mil comentários recebidos ao postar as fotos em seu perfil no Instagram. “Quis compartilhar porque muita gente ainda não conhece essa condição, e a primeira reação dos pais ao descobrir o lábio leporino é medo. Mas não precisa ser assim. Não é fácil lidar com limitações [amamentação], principalmente no começo, mas também não é um bicho de sete cabeças. A fissura é uma característica. Não define quem a criança é”, completa.

Isabel Hickmann com o filho, francisco, 4 meses (Foto: João Arraes)

Isabel Hickmann com o filho, francisco, 4 meses (Foto: João Arraes)

Descoberta tardia
Isabel teve, pelo menos, alguns meses para se preparar antes da chegada de Francisco. Mas isso nem sempre acontece. A ilustradora e estilista Luiza Pannunzio, 39, teve a intuição de que algo estava errado apenas 20 dias antes de Bento, hoje com 6 anos, nascer. Em todos os ultrassons que havia feito até então, o bebê aparecia com a mão na boca. “Meu obstetra disse que eu estava com pouco líquido amniótico, fiquei encanada e insisti para fazer um ultrassom extra. Foi aí que descobri que meu filho tinha uma má-formação craniofacial. Fiquei transtornada e comecei a chorar. O médico [que fez o ultrassom] falou que eu não deveria ‘fazer escândalo porque há crianças que nasciam sem cérebro’. Conversei com meu obstetra e ele tentou me consolar, dizendo que ‘pelo menos’ eu tinha a mais velha [Clarice, 8 anos], que era ‘perfeita’. Foi desumano”, conta.

A fissura de Bento é rara e atinge, além do lábio e do palato, todo o lado direito da face, incluindo o olho, que acumula secreção por causa da ausência do canal lacrimal. “Me senti desamparada. Um médico me garantiu que a cirurgia precoce resolveria o problema. Bento foi operado com menos de 24 horas de vida, mas a costura não ficou boa e ele passou dez dias de sofrimento na UTI. Por dois meses, tive de dar leite no conta-gotas”,  lembra.

De acordo com Tonello, operar tão cedo não é o recomendado. Uma criança que nasce com fissura labiopalatina fará, em média, cinco cirurgias ao longo da vida para normalizar a parte funcional e estética, mas isso varia com o tamanho e a profundidade da fenda. “As cirurgias devem respeitar o crescimento e as linhas faciais para que as cicatrizes sejam discretas. A primeira é a do fechamento do lábio e deve ser feita entre os 3 e os 6 meses.  Depois, vem o fechamento do palato, por volta dos 12 meses. Se a gengiva for comprometida, um enxerto ósseo é recomendado aos 8 anos e, quando há deficiência de crescimento na maxila, uma cirurgia de correção aos 16, para meninas, e aos 18, para meninos (por conta das diferenças no desenvolvimento). A última etapa é a rinoplastia, já que a fenda pode deixar o nariz afundado e assimétrico”, explica.

A dificuldade para conseguir informações de qualidade levou Luiza a criar As Fissuradas, rede de apoio em que mães trocam experiências, especialistas esclarecem dúvidas e famílias reivindicam, junto ao poder público, tratamento e assistência adequados. “Não quero que ninguém passe pelo que passei. A rede materna é essencial para superar os momentos difíceis e compartilhar as conquistas”, afirma.

Passado o turbilhão dos primeiros anos, o desafio é a convivência de Bento com outras crianças. Apesar de alegre e extrovertido, ele é alvo de preconceito. “Os meninos tiram sarro porque ele usa óculos, tem cicatriz e a secreção no olho”, conta. “Clarice, por outro lado, é superprotetora com o irmão e muito empática”, diz. Além de conversar com outros pais, Luiza trabalha em parceria com a escola para levar filmes e peças de teatro que discutam bullying. Apesar de algumas experiências desagradáveis, Bento sente-se acolhido no ambiente de ensino.

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Diferentes tipos
Existem fendas distintas, que podem atingir os lábios e o palato, total ou parcialmente, em um ou nos dois lados.

CF305-LABIO-LEPORINO-TIPOS-FISSURAS (Foto: CRESCER)

 (Foto: CRESCER)

Amor à primeira vista
Diferente de Luiza e Isabel, a dona de casa Rita Giaquinto, 46, não se surpreendeu quando soube que o filho, Emanuel, 5, tinha fissura labiopalatina. Ela o adotou com 9 meses. “No orfanato, as crianças geralmente passam as festas de fim de ano com famílias temporárias. Uma amiga que trabalhava lá me contou que havia um menino com quem ninguém queria ficar porque tinha lábio leporino. Resolvi levá-lo para casa por 15 dias e me apaixonei. Logo, concluí o processo de adoção. Nunca tinha visto alguém com fendas abertas como as dele, mas isso não foi nada perto do que senti. Sabia que era meu filho!”, recorda.

Acompanhado por profissionais da rede pública, Emanuel fez os tratamentos e as cirurgias a seu tempo. Para a fonoaudióloga Lilian Kuhn (SP), colunista da CRESCER, o sucesso dos procedimentos está ligado a uma equipe multidisciplinar. “É possível conviver muito bem com a fissura depois da reabilitação. Além das cirurgias, a criança precisa de consultas com dentista e fonoaudiólogo para acertar a mastigação e evitar problemas de dicção, como voz fanha e dificuldade de produzir alguns sons. O pediatra é essencial, porque o canal do nariz, do ouvido e da boca não são individualizados e a propensão a otites de repetição aumenta. Com o apoio necessário e alguns instrumentos, como bico de silicone, até a amamentação é possível, em alguns casos”, diz.

Hoje, as cicatrizes de Emanuel são discretas e ele não tem atrasos na fala nem dificuldade para se alimentar. “A pior fase era quando íamos passear com ele, antes das cirurgias. As pessoas queriam saber até se eu tinha usado drogas para ele ser daquele jeito”, afirma Rita.  Quando a pergunta vem do próprio Emanuel, a mãe diz a verdade, assim como fez ao contar, desde cedo, que ele veio “do seu coração e não da sua barriga”.

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Para o psicólogo Bruno Mader, do Hospital Pequeno Príncipe (PR), quando alguém nasce com uma má-formação, o impacto é menor do que o de quem fica com alguma cicatriz por causa de um acidente ou doença. “A criança com lábio leporino constrói sua identidade a partir da estrutura corporal. Cabe aos pais lembrá-la de que a autoestima não está baseada na aparência, mas na personalidade, nas habilidades e nos talentos”, diz. Uma lição que vale para todos.

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