A Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, durante reunião nesta quarta-feira, regras mais rígidas para a prescrição e venda do Zolpidem, remédio hipnótico para induzir o sono. A nova norma passará a valer a partir de 1º de agosto, para não afetar a continuidade do tratamento atual de pacientes.
"A medida foi adotada a partir do aumento de relatos de uso irregular e abusivo relacionados ao uso do zolpidem. A análise conduzida pela Anvisa demonstrou um crescimento no consumo dessa substância e a constatação do aumento nas ocorrências de eventos adversos relacionados ao seu uso", diz a autarquia em nota.
O que muda com as novas regras do Zolpidem?
Como mostrou reportagem do GLOBO, neurologistas já pediam esse aumento do controle do Zolpidem frente ao fácil acesso que favorece o uso inadequado. Com as novas regras, será necessária uma Notificação de Receita B, conhecida como receita azul, para comprar o remédio. A prescrição, utilizada para psicotrópicos, fica retida nas farmácias e exige que o profissional prescritor seja previamente cadastrado na autoridade local de vigilância sanitária.
Além de tornar mais rígido quem pode receitar o medicamento, isso permite o rastreio da prescrição e comercialização pelas autoridades de saúde, ou seja, um maior monitoramento sobre a circulação do Zolpidem. Hoje, o medicamento de até 10 mg pode ser adquirido apenas com a receita branca de duas vias, que tem apenas uma via retida e não exige que o prescritor esteja previamente cadastrado pela autoridade sanitária local.
O Zolpidem já estava enquadrado na lista B1 (psicotrópicos), que demanda receita azul, porém no Adendo 4 da portaria que rege a prescrição de medicamentos, a 344/1998, foi estabelecido que as unidades com menos de 10 mg seriam equivalentes às da Lista C1 - Lista de Substâncias Sujeitas a Controle Especial. E, para a categoria C1, a prescrição pode ser feita em receita branca de duas vias.
O Zolpidem é vendido em formulações de 5 mg a 12,5 mg, sendo a de 10 mg a mais comum, por isso o Adendo tem sido alvo de críticas por especialistas. Agora, a nova norma da Anvisa exclui o Adendo 4, o que faz com que todas as versões do remédio passem a demandar a receita azul controlada.
A agência diz que o prazo para receita azul começar a ser cobrada, 1º de agosto, também foi definido "para que os prescritores que porventura ainda não possuam cadastro para a prescrição em Notificação de Receita azul possam se cadastrar junto às autoridades sanitárias locais para o recebimento de numerações para a confecção dos seus talonários de receituário".
Em relação às embalagens, esclarece que os medicamentos que ainda não tiverem a bula e a rotulagem readequadas - troca da tarja vermelha pela preta - ainda poderão ser vendidos após agosto até o final do seu prazo de validade, porém seguindo as novas regras de apresentação da receita azul.
"Até 1º de dezembro de 2024, os fabricantes desses medicamentos poderão fabricá-los com a embalagem com tarja vermelha. Após essa data, todos os medicamentos fabricados à base de zolpidem já deverão conter a tarja preta em sua embalagem, conforme é exigido para os medicamentos da Lista B1 da Portaria SVS/MS 344/1998", diz a Anvisa.
O que é o Zolpidem?
O Zolpidem é um remédio hipnótico indutor do sono criado nos anos 90 para substituir os benzodiazepínicos, descobertos nos anos 60, que eram mais amplamente utilizados, porém criam quadros graves de dependência e foram associados ao déficit cognitivo a longo prazo.
Ele faz parte das chamadas drogas Z, ou não benzodiazepínicos, que atuam também num sistema do cérebro chamado de GABA. Esse mecanismo promove uma redução da atividade no sistema nervoso e consequente efeito hipnótico. Porém, atuam de forma diferente dos benzodiazepínicos.
— Ele é um hipnótico muito mais específico, atua no subtipo de receptor chamado GABAA. Quando ele se liga, ele vai especificamente para um local onde existe o efeito de fazer a pessoa dormir rapidamente. Outros remédios induzem o sono de uma maneira menos abrupta, por serem menos específicos, aos poucos. Mas esse forte potencial fez com que ele passasse a ser o hipnótico mais consumido no mundo, e aqui no Brasil teve um aumento vertiginoso nos últimos anos — explicou a neurologista Dalva Poyares, professora de medicina do sono na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora do Instituto do Sono, em matéria do GLOBO.
A coordenadora do Ambulatório de Sono do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), Rosa Hasan, diz que ele não foi o que se esperava porque hoje sabe-se que ele também promove quadros de dependência e tolerância, e podem levar a efeitos colaterais preocupantes. Porém, destaca que é um remédio importante para os casos de insônia em que há a devida orientação médica.
— Se é uma pessoa que toma direito, indicado pelo médico, na cama, sem ultrapassar o limite de duração do tratamento, pontualmente, nós não temos problemas com a medicação. É um bom remédio, o problema é esse uso indevido — disse a neurologista.
Dalva destaca que o fármaco deve ser administrado somente quando se estiver pronto para dormir, sem mexer no celular depois ou se levantar da cama. Além disso, lembra que não é uma terapia de uso prolongado: o prazo na bula é que seja utilizado apenas durante quatro semanas para não causar dependência.
— Com o uso crônico, você pode desenvolver tolerância, ou seja, precisar de uma dose maior para ter o mesmo efeito, e ele começa a reduzir o tempo. Então a pessoa passa a acordar no meio da noite, por causa do Zolpidem, e toma outro — disse a especialista.
Quais os riscos do Zolpidem?
Tanto ela, como Rosa, contaram atender uma série de pacientes com quadros de vício, uma quantidade que cresce em ritmo alarmante. Além disso, há efeitos colaterais do remédio conhecidos, como a amnésia, a agitação e os pesadelos.
Porém, um que tem ganhado destaque é o sonambulismo ou alucinação. Segundo um estudo publicado no periódico European Neuropsychopharmacology, ele acomete cerca de 5,1% dos pacientes, mas especialistas alertam que entre aqueles que fazem uso de forma inadequada, como tomar fora da cama ou além do período recomendado, de no máximo quatro semanas, a probabilidade é bem maior.
O sonambulismo foi justamente o que levou a dona de casa Rica Gomes Todeschini, de 49 anos, moradora de São Paulo, a interromper a medicação. Ela começou a tomar o Zolpidem por orientação médica, em 2019, logo depois de ter perdido a mãe e ter descoberto um nódulo no pâncreas, cenário que a deixou com dificuldades intensas para dormir.
Antes de começar o remédio, ela costumava ir para o seu ateliê de costura ao perder o sono. Por isso, seu marido não estranhou a princípio quando, após cerca de quatro meses tomando o hipnótico, Rica passou a se levantar e sair do quarto no meio da noite de forma recorrente, por mais de dez vezes.
— Só que um dia ele ficou cismado porque estava começando a ser quase todo dia, ele acordava para ir ao banheiro e eu não estava na cama. Então decidiu me procurar no ateliê, mas não encontrou. Na hora que ele abriu a porta de casa, o carro não estava na garagem. Era três horas da manhã — contou a dona de casa.
Ele esperou Rica retornar, pensando que teria sido uma emergência, mas quando ela voltou, aproximadamente 45 minutos depois, conversou com ele normalmente como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte, ele perguntou se ela lembrava que havia dirigido na noite anterior, o que a pegou de surpresa.
— Eu disse a ele que não e ele me contou que eu tinha pegado o carro. Eu não sei para onde eu fui, não sei o que eu fiz, não sei se parei num boteco e bebi, não me lembro de nada. Fico com medo de ter feito algo errado, é muito perigoso. Liguei para o psiquiatra e ele mandou eu parar, mas aos poucos, porque pelo tempo que eu estava tomando não poderia interromper imediatamente. Nesse meio tempo, meu marido escondeu a chave do carro à noite — disse.
Além dos riscos do comportamento inconsciente – como bater de carro, ter relações sexuais indesejadas e desprotegidas, passar por situações de constrangimento ou criar despesas financeiras –, a dependência a longo prazo pode levar a problemas neurológicos, como de memória, e a um quadro ainda pior de insônia.
— No Hospital das Clínicas da USP nós temos até mesmo internado com uma certa frequência casos gravíssimos de dependência em números absurdos de comprimidos, pessoas que tomam mais de 100 por dia. Toda semana eu atendo dois, três casos novos — contou Rosa, da USP.
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