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'Narciso em férias' traz relato vívido sobre prisão de Caetano Veloso; veja crítica

Aplaudido pelo Bonequinho, documentário dos diretores Renato Terra e Ricardo Calil estreia no Globoplayno dia 7 de setembro
Caetano Veloso em cena do documentário "Narciso em férias" Foto: Divulgação/VideoFilmes
Caetano Veloso em cena do documentário "Narciso em férias" Foto: Divulgação/VideoFilmes

Começa com “Súplica”, na voz de Orlando Silva, e termina com “Terra”, gravação de Caetano — que, no meio, também canta ao violão “Hey Jude”, dos Beatles, e “Irene”. O setlist de “Narciso em férias” fica por aí. Se alguém estiver interessado só em música, talvez seja melhor rever a “live das lives” de 7 de agosto, quando ele comemorou 78 anos.

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O filme não se confunde com “live”, mas é bem vivo. E, ainda que traga essas quatro canções e fale de outras, cada uma cumprindo seu papel na rememoração, trata essencialmente de história (e também de histórias). Caetano ocupa a tela quase todo o tempo, com um paredão ao fundo. Tons de azul e cinza dominam o quadro. De vez em quando, entra uma voz fora de cena.

Graças à economia visual, a força se concentra exclusivamente no longo relato do personagem. Sua conhecida verve mais uma vez nos seduz: embora ele fale de episódios ocorridos há mais de 50 anos, faz parecer que foi ontem. “Quando a gente é preso, é preso para sempre”, diz, citando frase alheia, no esforço de traduzir, sobretudo, o medo que sentiu em certas situações.

O cárcere que mora dentro de quem já foi encarcerado revela-se pelo fluxo contínuo de impressionantes detalhes do período: as circunstâncias da prisão, as celas de diversos quartéis, os soldados e oficiais que conheceu, os colegas de cadeia, as músicas que ouvia pelo rádio, os livros que leu (entregues pelo editor Ênio Silveira, também preso).

“Narciso em férias” pertence à expressiva família dos documentários fundados na capacidade de as palavras erguerem imagens. “Shoah” (1985), de Claude Lanzmann, talvez seja o exemplo mais radical: o Holocausto é reconstruído na tela unicamente por depoimentos, em acúmulo perturbador. O horror salta de dentro das testemunhas para dentro de nós.

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Os documentários de história oral propõem também ao espectador um exercício de empatia. Eduardo Coutinho, por exemplo, buscava “entender as razões do outro, sem necessariamente lhe dar razão”. É preciso ter olhos (e ouvidos) firmes para estar atento e forte (perdão, Caetano e Gil) a esses filmes, ou o que mais importa se esvai pelos dedos.

Estamos em terreno bem diferente de “Uma noite em 67” (2010), em que os mesmos diretores mesclavam entrevistas com a fartura das imagens de arquivo, em reconstituição inebriante. Só o que vemos em “Narciso em Férias” é o que o relato vívido de Caetano nos possibilita enxergar, e não se trata de pouca coisa.

Às vezes, sob a proteção da distância no tempo, o que ele evoca soa leve e divertido, como na leitura dos autos de interrogatório e na referência ao suposto caráter “desvirilizante” de sua música. Em outros momentos, vislumbram-se os anos de chumbo da ditadura.

As reminiscências têm colorido humano e curvas dramáticas — repare na hitchcockiana descrição dada ao barbeiro ou na bateção militar de cabeças no desembarque em Salvador — sob medida para longa ou série de ficção. Alguém se habilita?