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Cultura

Caetano relembra prisão em documentário para chamar atenção sobre os horrores da ditadura

Capítulo do livro ‘Verdade tropical’ sobre a clausura será relançado junto com seleção de documentos encontrados por pesquisador
Caetano Veloso em cena do documentário 'Narciso em férias' Foto: Divulgação / VideoFilmes
Caetano Veloso em cena do documentário 'Narciso em férias' Foto: Divulgação / VideoFilmes

O Brasil respirava a tensão das eleições presidenciais de 2018 quando Caetano Veloso leu pela primeira vez os relatórios sobre sua prisão na ditadura militar, descobertos pelo pesquisador Lucas Pedretti. As memórias sobre aquele período de dor (de dezembro de 1968 a fevereiro de 1969) voltaram a visitar o compositor ao mesmo tempo em que a possibilidade de o país ser governado por um defensor daquele regime se tornava uma realidade. Caetano estava mexido, tomado pela apreensão de quem sentiu na pele o terror dos anos de chumbo.

Foi quando a companheira do músico, a produtora Paula Lavigne, achou que seria o momento de ele falar detalhadamente sobre aquela experiência lancinante.

— Começou aquela história maluca de pessoas pedirem a volta da ditadura, e era fundamental que ele falasse não só para enfatizar o horror que foi aquilo, como para esclarecer, já que muitos jovens perguntam: “Caetano, você foi preso mesmo?” Acham que é folclore — explica ela.

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O músico já havia relatado o momento mais duro de sua vida no livro “Verdade tropical” (1997). Desta vez, a ideia era fazer um projeto audiovisual. Paula, então, convidou os diretores Renato Terra e Ricardo Calil (de “Uma noite em 67”), que registraram um fundamental e emocionado depoimento do baiano em “Narciso em férias”. Coprodução de Paula e Videofilmes, de Walter e João Moreira Salles, o documentário é o único filme brasileiro selecionado para o 77° Festival de Veneza. A exibição acontecerá dentro da seção oficial Out of Competition.

Originalmente, “Narciso em férias” é o título dado pelo compositor no capítulo sobre a prisão em seu livro. Este mês, aliás, a Companhia das Letras publica aquele trecho como um livro à parte (já em pré-venda no site), junto com uma seleção dos documentos recuperados por Pedretti. O nome do filme e do novo livro foi tirado por Caetano do romance “Este lado do paraíso”, de F. Scott Fitzgerald. Refere-se ao fato de o compositor ter passado quase dois meses sem se olhar no espelho.

Medo de barata

A princípio, a ideia da produção do longa era falar também sobre o exílio de Caetano, em Londres, e entrevistar outras pessoas — Gilberto Gil, por exemplo. Mas, após os diretores assistirem às seis horas de entrevista com Caetano, um baita orador, viram que qualquer gravação adicional seria desnecessária.

— Tínhamos o essencial: Caetano contando suas memórias — diz Terra. — Aprendi com João Moreira Salles: se vai fazer um filme sobre os Correios, conte a história de uma carta, porque um foco específico permite aprofundar. Por isso, optamos só pela prisão. Não inserimos imagens de arquivo ou trilha sonora. Num projeto minimalista, tudo ganha potência.

Acontece que o espectador vai sendo conduzido a uma imersão nas memórias do compositor. Enquanto ele conta as lembranças com riqueza de detalhes (“acordei ouvindo gritos de pessoas sendo torturadas”), lê o relatório de sua prisão e canta canções emblemáticas do período, a gente se sente transportado para aquela cadeia.

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Essa sensação é potencializada pela clausura provocada pelo cenário de concreto, que parece uma caixa, mas é a sala do cinema inacabado da Cidade das Artes (“não queríamos filmar mais uma entrevista do Caetano em casa”, explica Ricardo Calil). São curiosos os momentos em que o compositor revela seu medo de barata e a revolta por não poder ter um violão na cela (“Gil podia porque tinha curso superior, mais um detalhe da sociedade brasileira”) e o fato de não conseguir chorar ou ter uma ereção.

O relato de Caetano, referente a um período nebuloso sobre o qual o país pouco refletiu, ganha importância ainda mais simbólica no atual momento político do Brasil, em que há ameaças constantes à democracia e a cultura é alvo preferencial do governo.

‘Preso por fake news’

Calil diz que podemos não estar sob a pressão do AI-5 de 1968 — até porque o atual presidente foi eleito democraticamente. Mas defende que o filme dialoga com o momento presente, em que “precisamos estar atentos e fortes”.

— Serve como um conto de alerta. A gente não pode se acostumar com o absurdo e o arbítrio, porque, daqui a pouco, pode estar institucionalizado de novo.

Terra vai além.

— Em 1968, o Congresso foi fechado, havia censura prévia, o Estado torturava pessoas. Hoje não é assim. Mas o caminho que a gente percorreu para chegar em 1968 guarda algumas semelhanças com os tempos atuais. Caetano, por exemplo, foi preso por causa de fake news! — ressalta. — É importante que o filme seja visto e debatido para que a gente não volte nem perto daquele pesadelo.

O fato de o documentário ser o único filme brasileiro em Veneza também marca uma posição importante, na opinião de Terra. Ele lembra que, pouco tempos atrás, vivíamos um momento de grande projeção internacional do cinema brasileiro, com filmes como “Bacurau” e “A vida invisível”.

— Estávamos criando uma linguagem cinematográfica brasileira, e isso está sendo sabotado pelo atual governo — diz. — Nesse filme, além de demonstrarmos como as ditaduras são burras, arbitrárias e corroem expressões culturais de um país, também falamos que a arte resiste. Hoje, Caetano é muito maior do que esse pesadelo ditatorial, a obra dele ficou de pé e a ditadura passou. Nossa cultura tem uma força enorme, e resiste à ditadura e à pandemia.

Calil conta que percebe uma consternação evidente por parte de estrangeiros diante do que está ocorrendo do lado de cá. E que o filme ajuda a explicar um pouco o cenário por meio da visão de um artista brasileiro respeitado internacionalmente.

— As pessoas lá fora estão preocupadas com o nosso país, e Caetano é, há muitos anos, um tradutor do Brasil. Todos quererem ouvir o que tem a dizer.

Inclusive nós, brasileiros.