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Por Chico Otavio — Rio de Janeiro

Promotor responsável pela acusação nas chacinas da Candelária e de Vigário Geral, nos anos 1990, o hoje desembargador José Muiños Piñeiro Filho enxerga um paradoxo entre os dois casos. Na Candelária, ele percebeu a má vontade de setores da população quanto à investigação e à punição dos responsáveis, expressa em cartas de leitores: “Eram pivetes, não merecem atenção”, diziam algumas delas. Já na investigação de Vigário, houve o apoio popular, com indignação contra a covardia. Anos após fazer a sustentação oral contra os acusados no tribunal do júri, Muiños teve que assumir outro papel ao defender o Estado brasileiro e o livrar de uma condenação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em entrevista exclusiva, o magistrado revela os bastidores dos dois casos.

Quais são os pontos em comum das duas tragédias nas quais atuou como promotor, Candelária e Vigário Geral?

Muiños Piñeiro - Primeiro, penso na vingança. As duas chacinas tiveram essa motivação, mas não uma vingança por um motivo nobre, de valor moral. Os criminosos não aceitaram ser esculachados. Assim foi na Candelária, com um guarda de trânsito que se viu agredido, humilhado, por adolescentes e que tentou, sem sucesso, retirá-los da praça após flagrá-los cheirando cola de sapateiro. Foi xingado, agredido e ferido por estilhaços de pedras atiradas na viatura policial. O guarda convivia com um ex-policial matador, Maurício da Conceição, o Sexta-feira 13, e com vizinhos militares. Sabendo da história, decidiram como um tribunal dar uma resposta aos jovens. Seria inicialmente um corretivo, mas perderam o controle e acabou havendo uma mortandade.

E em relação à chacina de Vigário Geral?

Muiños Piñeiro - Vingança, de igual maneira. Na véspera da chacina, quatro policiais foram assassinados pelo tráfico local. Um dos mortos era o líder de um grande grupo que achacava traficantes e negociava prisões. Com a morte do grande chefe, alguma coisa tinha que ser feita. O tribunal foi no dia do enterro. Vários policiais, quase todos militares, decidiram entrar e matar os traficantes. Só que os traficantes, sabendo ou desconfiados, saíram de lá. E aqueles homens sem qualquer controle e comando, drogados e alguns bêbados, acabaram fazendo a chacina, algo que enojou a sociedade.

O senhor esteve à frente das investigações e depois fez a sustentação acusatória no tribunal para os dois casos. Quais foram as diferenças entre eles?

Muiños Piñeiro - Especialmente na reação da sociedade. Diferenças antagônicas. No caso da Candelária, houve reconhecimentos dos criminosos por parte das vítimas. Apesar das dificuldades e de alguns equívocos iniciais, os quatro chacinadores foram acusados e três deles punidos de forma exemplar. O quarto morreu durante o processo. Porém, havia um questionamento social em relação às vítimas. Na verdade, um preconceito. Percebi um sentimento de que aqueles adolescentes e crianças, em tese, eram roubadores, punguistas, que causavam problemas para o comércio local. Achavam até que poderiam ter praticado crimes mais graves, inclusive homicídios. Em razão disso, a sociedade se viu dividida.

Chacinas da Candelária e de Vigário Geral completam 30 anos

Chacinas da Candelária e de Vigário Geral completam 30 anos

Como o senhor percebeu esse sentimento?

Muiños Piñeiro - Principalmente lendo as sessões de cartas dos leitores nos jornais. Parece que, um dia, o crime chegou a ser adjetivado de faxina da Candelária e não chacina da Candelária. O maior número de cartas era em desfavor a uma condenação. Um ou outro leitor chegou a dizer isso aos criminosos. Que mereciam até um prêmio, e não serem processados. Afinal de contas, foi uma forma de depurar. Até na minha ambientação jurídica, senti isso. Me recordo que colegas, muitas vezes, me questionavam: “Cumpra a missão, mas com os limites, porque não se perdeu muito”.

Notou a mesma situação em Vigário?

Muiños Piñeiro - Não, ao contrário. Em Vigário Geral, a prova era péssima, quase nenhuma. Só se tinha o depoimento de uma pessoa com um histórico penal que não dava credibilidade. Era um informante de polícia, que admitia extorquir traficantes. Negava a sua participação na chacina. Só sabia de ouvir dizer. Todos os acusados estavam encapuzados, o que aumentava a dificuldade. Mas sentimos um apoio da sociedade. As cartas de leitores exigiam uma resposta. Aquilo era uma humilhação para a população. A foto com 21 caixões é marcante. Mostra o lado dantesco e isso, na verdade, nos ajudou, porque caminhávamos para uma impunidade geral.

Quais foram os pontos marcantes nos dois casos?

Muiños Piñeiro - No campo dos direitos humanos e do Direito Penal, os casos contribuíram para uma alteração na lei. Um dos avanços foi o fim do protesto por novo júri, que sempre beneficiava o condenado a 20 anos ou mais de reclusão por homicídio. No caso de Candelária, todos os réus tiveram esse direito. No Brasil, não havia mais prisão perpétua nem pena de morte. Então, não se justificava um novo júri. A segunda questão foi a proteção à testemunha. Na época, o ministro da Justiça José Gregório aceitou as ponderações do Ministério Público do Rio de Janeiro, porque nós tínhamos em Vigário Geral uma testemunha que era fundamental. Não podia ir para um presídio. Seria morto. Ficou 10 anos recolhido dentro do batalhão e depois numa casa reservada. Na Candelária, onde abrigar os sobreviventes e testemunhas que moravam na rua? Então, criou-se um modelo de casa de proteção à testemunha.

No campo social, ainda há um relaxamento muito grande. Esperava que, com as chacinas, o poder público despertasse para os problemas encontrados no local dos crimes. Em Vigário Geral, a comunidade é ligada ao bairro por uma passarela de trens. São dois mundos, a “cidade partida”, como cunhou o escritor Zuenir Ventura. Na época, não tinha saneamento. Na Candelária, o problema era a situação dos meninos de rua. Passados 30 anos, acredito que não foi dada uma devida resposta
— José Muiños Piñeiro Filho, desembargador

Viu também mudanças no campo social?

Muiños Piñeiro - No campo social, ainda há um relaxamento muito grande. Esperava que, com as chacinas, o poder público despertasse para os problemas encontrados no local dos crimes. Em Vigário Geral, a comunidade é ligada ao bairro por uma passarela de trens. São dois mundos, a “cidade partida”, como cunhou o escritor Zuenir Ventura. Na época, não tinha saneamento. Na Candelária, o problema era a situação dos meninos de rua. Passados 30 anos, acredito que não foi dada uma devida resposta.

Os números das chacinas de Vigário Geral e Candelária no Rio — Foto: Editoria de arte
Os números das chacinas de Vigário Geral e Candelária no Rio — Foto: Editoria de arte

O senhor teve um papel peculiar nessa história: atuou como acusador e, anos depois, na defesa do Brasil nos dois casos. Pode explicar?

Muiños Piñeiro - O Brasil, ao subscrever o Pacto de Direitos Humanos de São José da Costa Rica, comprometeu-se a aceitá-lo. As chacinas de Corumbiara, Eldorado de Carajás e Carandiru eram exemplos da responsabilidade direta do poder público, não apenas no campo penal, mas na reparação de danos. Só que, nos casos da Candelária e de Vigário Geral, a situação era diferente. Não tinha sido uma operação policial. Por coincidência da vida, quando os dois casos entraram em pauta e o Brasil foi acusado de violar os direitos humanos, eu era o procurador-geral de Justiça do Rio. O ministro da Justiça, José Gregori, me acionou para fazer a defesa do Brasil. E era o mesmo promotor que sustentou em júri a acusação. Na OEA, expliquei que, na área penal, em Candelária a resposta foi exemplar e, em Vigário, embora não tenha sido a resposta ideal, não houve impunidade. Isso absolvia o Brasil na área penal. Porém, surgiu um problema: não havia reparação financeira de danos às vítimas. A legislação não permitia. Após ter várias tratativas, concluímos que, se não havia a responsabilidade objetiva, havia a moral. Conversei com o então governador Anthony Garotinho, que aceitou de imediato. A Assembleia Legislativa aprovou o pagamento de uma pensão de imediato. E, assim, escapamos na condenação.

A lição tirada das tragédias da Candelária e de Vigário Geral foi aprendida?

Muiños Piñeiro - As chacinas continuam e agora, pior, não mais por vingança. São feitas por milicianos, ou seja, policiais militares, civis e do Corpo de Bombeiros. É um estado paralelo. Infelizmente, piorou e muito. Não se impedem mais chacinas. É necessária uma mudança de comportamento. Até que ponto o poder público e a sociedade terão que sentar para fazer opções? Agora as chacinas são praticadas por milicianos contra a sociedade e não em relação a um foco específico. Apesar de todos os esforços nas várias esferas, a sociedade está mais amedrontada com esse verdadeiros estados paralelos E, o que é pior, exercitados por agente públicos. Hoje, como desembargador, estou julgando organizações criminosas associadas ao crime de milícia privada com 70, 100 integrantes acusados. E quase 100% policiais, muitos ativos, exercendo pressão sobre a sociedade.

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