O ano era 1990. Do alto de um carro alegórico que representava um vulcão, a ousadia do ator Jorge Lafond era o símbolo perfeito da lava fervente: a fantasia era ele completamente desnudo, apenas com um pompom laranja na parte de cima da genitália, enfeitada com confetes. “Todo mundo nasce nu”, defendia o enredo da Beija-Flor daquele ano. O desfile, considerado um dos mais emblemáticos em 40 anos de Sambódromo, mudou o carnaval do Rio. Depois dele, a Liga Independente das Escolas de Samba teve que especificar no regulamento que estava terminantemente proibido ter genitália desnuda... e decorada.
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Assim que atravessou a Avenida, Lafond disse em entrevista ao GLOBO, na época: “Meu medo era que caísse enquanto eu sambava”. O ator morreu em 2003, aos 50 anos.
— O Lafond tinha um corpo absolutamente fabuloso, era um deus de ébano de 1,90m. A figura dele era absolutamente arrebatadora. A Liga ficou correndo atrás da proibição de várias formas para que os carnavalescos não colocassem a genitália como protagonista na Sapucaí. É uma forma de dizer que a caretice controla o desfile — afirma o pesquisador e carnavalesco Milton Cunha.
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As notícias seguintes ao desfile já traziam a dúvida se a Beija-Flor tinha ou não desrespeitado as regras da folia. Isso porque a nudez já era vedada na Sapucaí desde o ano anterior, em 1989.
A causa tem nome e sobrenome: Enoli Lara. A modelo atravessou o Sambódromo no desfile da União da Ilha do Governador vestindo nada mais do que uma sandália de salto e uma espécie de capa branca, que ora tapava, ora mostrava tudo: um nu frontal e inédito. Não tinha calcinha. Não tinha tapa-sexo. Ela saiu no carro “Roma pagã”, fazendo jus ao enredo “Festa Profana”.
O contexto social pedia por liberdade. Inaugurado em 1984, o Sambódromo surgiu na fase da abertura política do Brasil, no fim da ditadura militar.
— Era um país que voltava a respirar e se soltar, inclusive corporalmente. Toda essa vigilância remonta à estratégia de dominação estabelecida pela elite, e os corpos livres do carnaval sempre incomodaram muito. A virada para os anos 1990 foi muito marcante. A gente ia votar pela primeira vez depois de anos, mas na Sapucaí aparecia ainda uma mensagem de controle — explica Fábio Fabato, pesquisador de carnaval e enredista da Mocidade.
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Vem de antes
A nudez começou a dar as caras no carnaval nas décadas de 1950 e 1960, quando surgiram os biquínis e a primeira mulher chamada de “passista”, Paula do Salgueiro, conta Milton Cunha. Nos anos 1970, as travestis entraram com tudo nos desfiles: Eloína dos Leopardos foi rainha de bateria de Joãosinho Trinta, na Beija-Flor, em 1976, usando apenas um tapa-mamilo. Nos anos 1980, foi a vez da nudez da mulher cisgênero (quem se identifica com sexo com o qual nasceu). O símbolo da época foram as indígenas da Mocidade, com a ex-modelo Monique Evans inaugurando o papel de rainha de bateria, com os seios à mostra, em 1984.
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— Na minha época era muito mais natural. Acho que hoje as pessoas são mais caretas e veem com mais maldade, veem sacanagem em tudo. Já fui porta-bandeira com os seios de fora, em 1995, e antes, quando estava grávida também, em 1991, na frente da ala das crianças. Ninguém encheu meu saco, não tinha esse cancelamento que tem hoje em dia. O que era novo era maravilhoso — conta Monique.
Nos anos 2000, no primeiro desfile pela Porto da Pedra, a ex-modelo Ângela Bismarchi viveu na pele a repressão à nudez.
— O carnavalesco Jaime Cesario sugeriu que eu viesse com a Bandeira do Brasil pintada no meu corpo nu. Houve uma polêmica tremenda. Foi um tal de corre-corre na Avenida querendo me prender, esperando o desfile terminar. Eu estava de tapa-sexo e a bandeira estilizada no corpo — relembra.
Diante de sua experiência como passista da Estação Primeira de Mangueira, a servidora pública Rafaela Bastos começou a se incomodar quando sentia que era vista apenas como “a mulher que sambava no carnaval”. Isso a motivou a produzir uma pesquisa sobre a objetificação das passistas no carnaval carioca.
— A ideia que se tem sobre as passistas é, muitas vezes, a da mulher de carnaval estereotipada, reduzindo todas as outras possibilidades dela àquela função. E não é assim. Elas não existem só nessa época. São mulheres que trabalham, têm suas carreiras em outras áreas, têm uma vida — afirma Rafaela, que também é presidente do Instituto Fundação João Goulart, da prefeitura do Rio.
Ela também diferencia sensualidade de sexualização.
— A Sapucaí é um dos “chãos” mais importantes para a passista. É onde acontece um ritual, em que ela se entrega totalmente à dança para fazer a escola campeã. E é também onde se cristaliza uma imagem de passista como um corpo sexualizado, principalmente da mulher negra. Isso tem fundamento no racismo e no machismo estrutural. O contraponto é humanizá-las — reflete.
Estrias e celulite
A ditadura da padronização dos corpos, em que das mulheres é exigido que nem celulite ou estrias tenham, foi ganhando outros contornos e chegou até a rainha de bateria da Grande Rio, a atriz Paolla Oliveira. Em dezembro do ano passado, seu nome foi envolvido num debate sobre o físico ideal para o carnaval. O estopim foi um vídeo gravado durante um ensaio, em que ela se diverte dançando. Comentários sobre o peso, a idade e as curvas da atriz inundaram as redes sociais. A resposta da rainha foi levantar o estandarte por corpos reais na Sapucaí e onde mais as mulheres quiserem.
Com as cores da bandeira do Brasil, a cantora Jojo Todynho foi ao ensaio da Mocidade no início do mês. Toda no brilho, a calça amarela mostrava o bumbum e um biquíni fio dental verde, combinando com o top e o adereço de cabeça. Ela, que é musa da escola este ano, também foi alvo de críticas por conta de seu corpo.
— Estar na Sapucaí é maravilhoso. É muito bom ser de verdade. E a gente sabe quem gosta, quem não gosta — conta a cantora.
Para o carnavalesco Milton Cunha, o corpo, por si só, é a própria razão de ser da escola de samba e conta uma história de contestação:
— O corpo periférico, negro, humilde, tentando se expressar artisticamente, fantasiado do carnaval, é um corpo de narração. Ao colocar o mamilo de fora, o bumbum de fora, um fio dental, um tapa-sexo, a pessoa narra a contestação, a crítica, a luta contra a ditadura do corpo e a favor da liberdade.
Tudo isso, segundo ele, é fruto da Revolução Sexual de 1968, quando as mulheres queimaram os sutiãs em Sorbonne, na França. Nos 40 anos da passarela mais famosa do carnaval, a esperança do carnavalesco é que esse resgate seja ainda mais forte: por menos caretice e mais ousadia.
— Está na hora de a gente rir de novo, brincar de novo — diz o comentarista.