Zona Sul
PUBLICIDADE

Por Priscilla Litwak — Rio de Janeiro

Em cem anos, a partir dos idos de 1870, quando foram iniciados os aterramentos, a Lagoa Rodrigo de Freitas teve sua área original reduzida à metade, de cerca de 4,2 para aproximadamente 2,3 quilômetros quadrados. Consequentemente, toda a vegetação periférica no trecho foi completamente suprimida, e houve diminuição da fauna nativa. Pela primeira vez na história, a lagoa fará o caminho oposto: vai aumentar. A iniciativa, da subprefeitura da Zona Sul em parceria com a Fundação Rio-Águas, prevê novos 2.600 metros quadrados de espelho d’água, divididos em dois pontos, em frente ao Parque do Cantagalo e na altura do Parque dos Patins. O projeto terá início na próxima semana e é uma solução sustentável para um problema antigo: os constantes alagamentos da ciclovia nessas duas áreas.

Os desvios, que hoje já acontecem nos períodos de inundação, passarão a ser a rota oficial. E, em ambos os trechos, a antiga pista de ciclismo será retirada e dará lugar a várias espécies de vegetação nativa. A nova fauna vai incrementar a biodiversidade animal mesmo nas épocas mais secas. O programa pioneiro tem coordenação do biólogo Mario Moscatelli e paisagismo de sua filha, Carolina Moscatelli, e será também o início de um projeto dos dois de criar uma área de observação no local.

Os trabalhos vão acontecer em três fases: a primeira consiste na remoção das instalações urbanas, como postes, meio-fio, pista e iluminação. A segunda prevê a adequação ambiental, com o acerto topográfico da área, visando a criar as condições ambientais ideais para a implantação do projeto de recuperação da comunidade vegetal. Entre as espécies que serão inseridas estão grama de mangue, samambaia-do-brejo, algodoeiro- da-praia e mangue-vermelho. Na terceira e última etapa serão instalados cercado protetivo e placas informativas.

Parte de um dos trechos que serão devolvidos para a lagoa, na altura do Parque do Cantagalo: aterramentos ao longo de um século — Foto: Divulgação/Fábio Motta
Parte de um dos trechos que serão devolvidos para a lagoa, na altura do Parque do Cantagalo: aterramentos ao longo de um século — Foto: Divulgação/Fábio Motta

O trecho em frente ao Parque do Cantagalo será o primeiro a receber as intervenções. As obras estão previstas para durarem cerca de dois meses. Em seguida será a vez do ponto do Parque dos Patins.

Há 34 anos responsável pela revitalização do manguezal da Lagoa Rodrigo de Freitas, Moscatelli explica que nesses dois trechos que vão receber a naturalização o solo se apresenta extremamente instável por conta de sua composição natural, geralmente formada por silte, argila e turfa, em camadas que podem atingir vários metros de profundidade. Por isso, ele frisa que é praticamente impossível impedir seu alagamento em épocas de cheia.

— Para manter a ciclovia como temos hoje e acabar com as inundações seria necessário fazer uma obra de estaqueamento de cerca de 20 metros de profundidade, até onde se acha areia, para dar sustentação. É uma intervenção muito pesada e cara para um trecho pequeno. Não valeria o custo em relação ao benefício. Além de não ser uma solução sustentável. Por isso propus essa alternativa — detalha.

Infográfico. Mapeamento das mudanças do espelho d’água da lagoa — Foto: Reprodução
Infográfico. Mapeamento das mudanças do espelho d’água da lagoa — Foto: Reprodução

As estacas existem na altura do Heliponto (próximo ao ponto do Parque dos Patins), que terá esse trecho da ciclovia inutilizado.

De acordo com Moscatelli, apesar de pequena em comparação ao que foi perdido ao longo dos anos, a nova área de espelho d’água da lagoa tem grande potencial de incremento de biodiversidade:

— Podem achar que não é tão significativa, e realmente é muito reduzida em relação a tantos aterros. É como se a lagoa quisesse pegar de volta um pequeníssimo pedaço de tudo que já foi dela. Mas mesmo em áreas pequenas, o ganho para a natureza é inestimável. Temos um trecho de franja de dez metros de largura de mangue e uma surpreendente quantidade de vida que ele sustenta. Não dá para menosprezar a área inundável da lagoa. Estão aparecendo aves que nunca tinham sido vistas por aqui, como a biguatinga e a guarauna. Já o colhereiro voltou depois de 70 anos. É fruto de uma naturalização que vem sendo feita há mais de três décadas, somada à melhoria da qualidade da água.

Moscatelli destaca o simbolismo do projeto e frisa ainda que acredita que a novidade pode ser um pontapé inicial para que mais áreas da cidade sejam recuperadas.

— O Rio usou e abusou da supressão dos seus ecossistemas. Já existiu projeto até para aterrar a Lagoa Rodrigo de Freitas completamente. Erramos e agora vamos pagar a fatura ambiental. A natureza não é rancorosa, e para tudo tem um limite. Vamos aproveitar que estamos quase nesse extremo para devolver parte daquilo de que nos apropriamos. E não é necessário grande investimento; pelo contrário, é simples e sai muito mais barato. Desde 1989, quando iniciei o trabalho na lagoa, já foram feitas pelo menos três obras na ciclovia por causa dos constantes alagamentos, e de nada adiantaram, pois elas têm prazo de validade. E esse projeto e o resultado positivo que temos visto nos enchem de expectativa de ampliar essa recuperação também para outras áreas da cidade, como a Baía de Guanabara e a Lagoa de Jacarepaguá — diz.

Uma área para contemplação

O projeto idealizado por Mário Moscatelli de criar um observatório na Lagoa Rodrigo de Freitas também dá agora um importante passo. O objetivo, segundo o biólogo, é cuidar da natureza e usufruir dela da melhor forma, transformando a lagoa em um importante ativo econômico.

— Me chamavam de maluco e hoje me descrevem como visionário. Estão vendo que é possível recuperar uma área como era a lagoa. Mas podemos ir além. Não ligo para o nome que vão dar, se é bioparque, observatório, pode ser até Maria Chiquinha. O que quero é ver a área cada vez com mais biodiversidade. A observação de aves para fotografia é uma realidade em muitos países. E o Rio tem essa vocação para ecoturismo que nunca valorizamos como ela merece. Ganham a capivara, as aves, a natureza em geral, o vendedor de coco, os moradores, visitantes, a cidade. Todos ganham — frisa.

Equipe. Carolina, Valle, Moscatelli e Santos próximos a um dos pontos que vão receber a naturalização — Foto: Divulgação/Fábio Motta
Equipe. Carolina, Valle, Moscatelli e Santos próximos a um dos pontos que vão receber a naturalização — Foto: Divulgação/Fábio Motta

Carolina Moscatelli explica que as espécies nativas escolhidas para naturalização são de brejo, que se adaptam bem às áreas da lagoa. Ela conta ainda que será utilizada uma vegetação arbustiva (baixa) com o objetivo de não atrapalhar a observação do espelho d’água.

— Com isso, haverá uma nova área para contemplação não só das águas, mas da flora e da fauna associada também. As pessoas vão ter uma nova experiência — adianta.

O subprefeito da Zona Sul, Flávio Valle, conta que toda vez que a maré sobe recebe muitas reclamações sobre alagamentos na ciclovia, problema que agora, pelo menos nos trechos mais críticos, será resolvido. Mas, assim como Moscatelli, o subprefeito ressalta o valor simbólico do projeto. Segundo Valle, o recado que o município quer passar com a intervenção não é simplesmente ter de volta uma ciclovia não alagada, mas que a prefeitura entende que o desenvolvimento sustentável se dá em harmonia com a natureza.

— As pessoas achavam que o problema era a chuva. Não vamos tirar a liberdade de ir e vir para solucionar a questão, mas também não vamos optar por uma alternativa que vá contra o meio ambiente. Se ao longo de cem anos a Lagoa Rodrigo de Freitas era vista como um mero lago poluído, que foi reduzido à metade, hoje não é mais — diz.

Valle reforça que a cidade poderia ter escolhido outras alternativas, mas salienta que todas iriam de encontro aos princípios ecológicos. O subprefeito garante ainda que, além de ser o início da criação de outras soluções sustentáveis para a cidade, a naturalização reafirma a posição do Rio no cenário internacional de preservação do meio ambiente.

— Não faria sentido, em pleno 2023, que interviéssemos mais, nos apropriando ainda de um espaço que não é nosso, que continuássemos sem olhar para a lagoa, enquanto países ao redor do mundo trabalham para valorizar seus ecossistemas. O Rio não precisa de esforço, é conhecido por sua riqueza natural. Pensamos fora da caixa, invertemos o protagonismo do ser humano e devolvemos à lagoa um espaço que sempre foi dela. Estou muito feliz por fazer parte desse projeto pioneiro, mais de três décadas depois que o Mário Moscatelli começou esse trabalho de revitalização na Lagoa.

Já o presidente da Rio-Águas, Wanderson dos Santos, acrescenta que muitos usuários da ciclovia achavam que as inundações eram esgoto e lembra que o projeto vai ser implantado ainda no mês do meio ambiente.

— Eles não entendiam que era a própria lagoa. É muito significativo que a solução, que é a recuperação desse sistema, chegue agora — afirma.

Santos explica que, por ser uma medida simples, os recursos são próprios da prefeitura, e ainda não há uma estimativa de custos das intervenções.

Morador de Laranjeiras, o fisioterapeuta José Maria Freire usa a ciclovia para pedalar toda manhã e aprovou a iniciativa. Ele diz não se importar com as obras e com o desvio no trajeto na pista de ciclismo.

— Se fizerem alteração para melhorar a via, principalmente respeitando e mantendo o meio ambiente que ainda existe ali, a obra será superválida. A lagoa deve estar tomando de volta o que aterraram dela — conclui.

Mais recente Próxima Escola de artes de ex-'The Voice Kids' completa três anos com evento gratuito

Inscreva-se na Newsletter: Zona Sul

Mais do O Globo

As novas delícias são duas esfihas folhadas doces, milk-shake e taça de sorvete

Habib’s lança linha com quatro  sobremesas com pistache

Segunda edição do Gastronomia sem Fronteiras começa na sexta-feira (6)

Evento reúne pratos de várias partes do mundo, atrações musicais e  palestras em São Conrado

Objetivo de verificar se o Bilhete Único Intermunicipal está sendo utilizado pelo próprio dono

Estado 'de olho': biometria facial nas vans do Rio de Janeiro começa a ser testada

Conheça o equipamento, inovador no Brasil, capaz de realizar missões de vigilância, reconhecimento e coleta de dados com alta precisão

Marinha lança pela 1ª vez drone a partir de navio enviado para ajudar população do Rio Grande do Sul; vídeo

A Reserva Particular do Sesc, no Mato Grosso, executou sua primeira experiência de queima prescrita, que serve como barreira para as linhas de fogo

Reserva no Pantanal usa 'fogo amigo' para prevenção de grandes incêndios

Moradores relatam tiroteio durante ação que se concentra no Parque União; comunidade é controlada pelo traficante Jorge Luís Moura Barbosa, o Alvarenga, que tem 86 anotações criminais

Testemunhas relataram que muitas pessoas caíram umas sobre as outras enquanto corriam em direção a uma vala cheia de água em uma encosta

'Caos e terror': sobreviventes de esmagamento em massa que deixou 121 mortos na Índia descrevem pânico geral

Democrata se atrapalhou nas palavras e perdeu o raciocínio durante embate contra Donald Trump, o que intensificou temores sobre sua acuidade mental, inclusive entre seus correligionários

Após desastre em debate, Biden tenta conter pressão de democratas 'pesos-pesados', e Casa Branca rechaça teste cognitivo