Política
PUBLICIDADE

Por Jan Niklas e Marlen Couto — Rio de Janeiro

‘Tarifa Zero”, “Não vai ter Copa”, “Não é só pelos 20 centavos”, “Não à PEC 37”, “Fim da PM”, “Saúde e educação padrão Fifa”, “Fora Dilma”. Na falta de uma bandeira que desse conta de nomear pautas tão difusas, o próprio mês em que milhares de brasileiros foram às ruas — junho de 2013 — passou a batizar os episódios que abriram alas para uma década de turbilhão social e político.

Dez anos depois, as Jornadas de Junho de 2013 seguem como um enigma que desafia intelectuais. A disputa por seus sentidos continua. Os atos são encarados como uma encruzilhada de forças políticas, da esquerda à extrema direita, que impulsionaram crises e diversos desdobramentos.

Naquele momento, o Brasil vivia a expectativa do início da Copa das Confederações, que antecedia a Copa do Mundo. Em junho, pequenas manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus em capitais passaram a atrair cada vez mais atenção. Explodiu a ação de grupos que usavam a tática black bloc — ação de resistência à violência policial e ataque a “símbolos capitalistas” com depredações de bancos e patrimônio público. Diante do aumento da repressão aos atos, transmitidos em tempo real de forma inédita pelas redes sociais, o caldo de revolta popular começou a engrossar.

Com o mote “desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil”, manifestantes começaram a ganhar a simpatia dos brasileiros e a adesão de cada vez mais pautas às ações nas ruas. Segundo pesquisa Datafolha, o índice de aprovação aos atos chegou a 89% no fim de junho. Não só o Brasil, como o mundo vivia um momento de grandes mobilizações de massa com repressões policiais. A Primavera Árabe chacoalhava da Turquia à Tunísia. Movimentos de rebelião civil como o “indignados” na Espanha e Occupy Wall Street no EUA também compunham o clima de 2013.

E as manifestações que no início do mês reuniam centenas de ativistas, como o Movimento Passe Livre (MPL), chegaram a bater a marca de 1,3 milhão de brasileiros nas ruas em todo país em 20 de junho, auge dos protestos. O GLOBO inicia hoje uma série de reportagens, entrevistas e reflexões, que serão publicadas ao longo desse mês sobre os reflexos das Jornadas de Junho. Na abertura, convidamos mais de uma dezena de cientistas políticos, historiadores e especialistas que analisam essa esfinge da política brasileira.

Dinâmica das ruas — Foto: O Globo
Dinâmica das ruas — Foto: O Globo

Dinâmica das ruas: um mosaico ideológico, sem liderança formal, de agendas distintas e até opostas

Entender a bússola ideológica das ruas se tornou um dos desafios ao se debruçar sobre Junho de 2013. Com ativistas tão díspares, o protesto deixou de ser “só pelos 20 centavos” — como dizia um dos slogans mais populares à época. As bandeiras se diversificaram, indo de pautas à esquerda (defesa de cotas e da educação pública); passando por demandas da direita (redução de impostos); até o saudosismo da ditadura em pedidos por intervenção militar.

Em seu recém-lançado livro “Treze” (Cia. das Letras), a socióloga Angela Alonso defende que as manifestações não configuraram um movimento unificado, mas um ciclo de protestos composto por agendas distintas e muitas vezes opostas. Único alvo comum era a contestação às políticas dos governos do PT.

A autora diz que 2013 foi a confluência de três grandes frentes de ativismo político gestadas ao longo dos anos Lula. Dois mais à esquerda: o neossocialista, que reivindicava mais redistribuição de renda; e os autonomistas, que brigavam por temas mais contemporâneos como o feminismo. Do outro lado, o campo “patriota”, que aglutinava de libertários a reacionários, focados na defesa da família, religião e propriedade.

— Em junho há uma concomitância desses protestos, eles ocorrem em simultaneidade. Parecia um protesto só, mas era um mosaico com várias pecinhas de atores organizados fazendo política — analisa Alonso.

O arquiteto e urbanista Roberto Andrés, que está lançando “A razão dos centavos” (Zahar), faz uma leitura diferente. Ele define como um traço marcante dos atos a participação de pessoas “despolitizadas”, que viam os protestos como forma de pleitear melhorias nas condições da vida nas cidades.

— Grande parte dos manifestantes eram neófitos, que nunca tinham ido pras ruas, e não se definia como de esquerda nem de direita — diz. — Tanto que Marina Silva, que encarnava esse campo mais ao centro, centro-esquerda, foi quem mais capturou o interesse e cresceu nas pesquisas no período.

Andrés destaca ainda que, pelo perfil econômico, quase metade dos presentes nas ruas era formada pela chamada “classe C” (entre 2 e 5 salários mínimos). Setores de classe média alta participaram, mas não em maioria.

Parecia um protesto só, mas era um mosaico com várias pecinhas de atores organizados fazendo política
— Angela Alonso, socióloga

Outra peculiaridade é a ausência de lideranças definidas nos protestos. Essa característica é vista como marca dos novos movimentos sociais do século 21, que se organizam de forma mais horizontal. Para especialistas, essa organização está atrelada às redes sociais como forma de articulação política.

Nas Jornadas de Junho, grupos usaram o Facebook para articular os atos. A ferramenta “eventos” permitia aos usuários “confirmar presença” nas manifestações, aumentando a mobilização do público. Segundo a socióloga Esther Solano, essa lógica das redes transbordou para a própria dinâmica das ruas.

— Isso é uma forma nova para se entender a política em simbiose com a dinâmica horizontal das redes. É um engajamento mais espontâneo que parte muito mais do indivíduo do que simplesmente de uma liderança — avalia.

Pauta ampla — Foto: Arte / O Globo
Pauta ampla — Foto: Arte / O Globo

Pauta ampla: como o discurso migrou da melhoria dos serviços públicos à pauta moral contra a corrupção

As bandeiras que marcam junho costumam ser divididas em dois momentos. Na primeira quinzena, o foco é a luta contra o aumento das tarifas de ônibus, capitaneada pelo Movimento Passe Livre (MPL). Esta demanda acaba sendo bem-sucedida, já que o mês termina com cidades do Brasil inteiro freando o aumento das passagens.

Já em um segundo momento, essa pauta começa a ser ampliada, compreendendo uma miríade de reivindicações. Em grande parte, o foco está na melhoria dos serviços públicos, como saúde, educação e transporte. Além disso, um mote começa a ganhar cada vez mais força: o combate à corrupção.

Pesquisador da Casa de Rui Barbosa e autor de “Viver em rede” (7 Letras), sobre os movimentos do período, Julio Lopes diz que, em suma, os protestos apontam lacunas na Constituição de 1988, com reivindicações de que a democracia fosse realmente efetivada no Brasil. O foco seria a melhoria de vida nos centros urbanos e mais transparência na vida pública.

— A “republicanização” da democracia era o sentido último dos protestos de junho. Sintetiza tanto as reivindicações sociais, principalmente do transporte público e outros serviços, quanto a questão do deslocamento representativo: a crítica à corrupção.

Outros estudiosos defendem que o tema da corrupção é introduzido numa dimensão moralizante, em que políticos são “todos ladrões” e o PT, por estar no governo, acaba se tornando o partido mais alvejado.

Na mesma linha, Renato Janine Ribeiro, cientista político e ex-ministro da Educação, associa o uso do tema nas manifestações a uma “cultura política limitada” que existiria no Brasil e teria desviado o mote inicial dos atos.

— As manifestações foram canalizadas depois para serem todas contra a suposta corrupção do PT, que estava só no governo federal — defende Janine, fazendo um balanço: — Isso deixou um legado de aversão à política.

A 'republicanização' da democracia era o sentido último dos protestos de junho
— Julio Lopes, pesquisador da Casa de Rui Barbosa

Lopes diz ainda que, indiretamente, junho estava criticando o Centrão, como representante do que há de menos republicano no establishment político. Ele aponta que o movimento teve inicialmente repercussões positivas, com o mundo político buscando dar algumas respostas aos clamores das ruas.

— O que aconteceu durante o mês de junho? Um monte de inovações legislativas — diz, Lopes, elencando: — Corrupção passou a ser crime hediondo. O voto dos parlamentares nos processos de cassação de colegas passou a ser aberto, era fechado. Havia também um projeto que restringia o Ministério Público (PEC 37), que vinha tramitando bem e foi arquivado em junho.

Porém, apesar dessa reação inicial com respostas pontuais, especialistas apontam que o que veio em seguida foi uma incompreensão por parte da classe política com as mensagens de 2013. Os gritos “contra tudo” que estavam nas ruas apontavam ainda para uma crise da democracia representativa. Todo o modus operandi do sistema político brasileiro estava sendo associado à degradação das condições de vida no país.

Políticos em xeque — Foto: Arte / O Globo
Políticos em xeque — Foto: Arte / O Globo

Políticos em xeque: derretimento da popularidade acossou classe política, que demorou a ler os sinais das ruas

Os atos escancaram a desconfiança de parte do povo com a elite política do país. O cientista político e presidente do Conselho Científico do Ipespe, Antonio Lavareda, lembra que o Datafolha apontou um derretimento da presidente Dilma Rousseff no período. Em apenas 20 dias, sua avaliação de “ótimo ou bom” despencou de 57% para 30%.

Apesar de a petista ter conseguido recuperação suficiente para se reeleger no ano seguinte, Lavareda aponta que as jornadas motivaram sua vitória estreita. E, além disso, foi um dos fatores que levaram o Centrão a se descolar do PT e, junto com outras forças, empreender a iniciativa do impeachment em 2016.

Porém, embora Dilma estivesse no centro das atenções por ocupar a Presidência, a classe política inteira ficou acossada com o gatilho dos protestos.

— Pela primeira vez na Nova República, partidos são explicitamente rechaçados da participação em manifestações. Isso aconteceu com legendas que eventualmente quiseram tirar algum proveito ou se inserir entre os manifestantes. É uma coisa bem significativa — diz Lavareda.

As primeiras reações da esquerda, que ocupa- va o poder, também não deram conta de ler os sinais dos manifestantes. O entendimento de que os protestos haviam sido sequestrados por um discurso moralista, contra o PT, fez surgir um senso comum nesse campo político de que 2013 era a revolta de uma classe média udenista, que apontava a corrupção como maior mal do país.

Ao mesmo tempo, outras correntes e setores do PT reduziram os atos a anseios de setores da sociedade que haviam ascendido nos governo petistas e queriam mais. Essa tese foi vocalizada por Lula, por exemplo: “O povo tem pão e agora quer manteiga”, disse o então ex-presidente sobre os atos. Dilma, em pronunciamento nacional na TV, reverberou essa opinião.

Pela primeira vez na Nova República, partidos são explicitamente rechaçados da participação em manifestações
— Antonio Lavareda, cientista político

O momento marcou um divisor de águas na relação do PT com as ruas. Na visão de especialistas, o governo não entendeu e não soube dar respostas nem ouvir representantes e lideranças dos protestos. Isso é avalizado pelo ex-diretor do Datafolha Mauro Paulino. Ele aponta que até hoje os efeitos da crise de representatividade deflagrados em 2013 são sentidos e ainda não conseguiram ser revertidos pelo mundo político.

— Tem uma pergunta que o Datafolha faz desde 1989, que é preferência partidária — conta Paulino. — Em 2013, a taxa dos que não têm partido de preferência chegou ali próximo de 75%. Era uma taxa que historicamente variava entre 45% e 50%. Hoje, está em torno de 60%. Não voltou aos patamares anteriores a junho de 2013.

Paulino ressalta ainda que todas as instituições perderam. O Congresso Nacional, por exemplo, que sempre foi avaliado de uma forma mais negativa do que positiva, chegou a uma reprovação recorde em 2013. Juntamente com os governantes, as instituições também perderam prestígio. A maioria das pessoas não se sentia representada por quem deveria zelar por seu bem-estar.

Polarização — Foto: Arte / O Globo
Polarização — Foto: Arte / O Globo

Polarização: inquietação e frustração levam à fragmentação do centro e ao acirramento direita x esquerda

Embora tenha ficado evidente que os representantes dos Poderes não estavam em boa conta com a população, as Jornadas de Junho são vistas como um “despertar” do interesse dos brasileiros em relação a assuntos políticos. A consciência de quanto a política pode ser definidora nos problemas cotidianos — como a precariedade do transporte público, por exemplo — cresceu entre os brasileiros.

Na visão do professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP e colunista do GLOBO Pablo Ortellado, os protestos despertaram uma inquietação social implacável que moveu as pessoas a se posicionarem.

— É uma mudança no patamar de mobilização da sociedade brasileira, de interesse das pessoas por política. A identidade com as forças políticas, lideranças, tudo subiu. O Brasil se politizou demais, não necessariamente para melhor — acredita Ortellado.

Ele destaca ainda que, à época, os institutos de pesquisa não faziam levantamentos de identidade política, porque achavam que isso não era entendido pela população — algo que soa estranho nos dias de hoje, num país tão marcado ideologicamente. Aliás, é justamente em 2013, segundo especialistas, que abriram-se as porteiras para um processo de polarização do país.

Segundo a professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Heloisa Starling, em 2013 “aumentou a fervura” de um caldo ideológico que encaminhou o Brasil para uma cizânia social em torno de preferências políticas. Assim, as pessoas começaram a se aglutinar cada vez mais em campos opostos. Consequentemente, ocorreu um encolhimento do centro e da centro-direita, na época liderada pelo PSDB.

— Ali está emergindo algo que vai ficar mais agudo em 2016, que é a fragmentação do centro. E quando o centro se arrebenta, a polarização se instala — resume Starling.

Para Renato Janine Ribeiro, 2013 provocou politização “muito rápida, mas muito superficial”. Sem resultados imediatos satisfatórios, parte dos manifestantes teria ficado frustrada. E, consequentemente, tornaram-se cooptáveis:

— Aí foi muito fácil canalizar para elas um discurso que não era o delas.

Quando o centro se arrebenta, a polarização se instala
— Heloisa Starling, professora da UFMG

Segundo o cientista político Fernando Limongi, que está lançando o livro “Operação Impeachment” (Todavia), uma direita mais radical que estava entre as várias forças a ocupar as ruas em 2013 voltou a se mobilizar com mais força em 2014 para apoiar Aécio Neves (PSDB). Para seduzir esse público, o tucano teria tomado atitudes como entrar com pedido no TSE para questionar o resultado nas urnas. Dessa forma, intensificando o clima de polarização, Aécio teria ajudado a afundar o centro político abrindo o caminho para o crescimento da extrema-direita no Brasil.

— Aécio se encanta com esse movimento popular e acredita que ele vai poder usar essa direita radical como uma arma dele para chegar mais cedo na Presidência — afirma Limongi. — Mas ele vai mobilizar forças que depois vão perder o controle. Ele acendeu um barril de pólvora do qual se tornou vítima.

Ascensão da direita — Foto: Arte / O Globo
Ascensão da direita — Foto: Arte / O Globo

Ascensão da direita: movimentos conservadores ganham tração e passam a ocupar espaços pós-reeleição de Dilma

Essa visão de que houve um sequestro de 2013 pela direita se tornou corrente frequente em campos da esquerda. Há quem diga que 2013 teria chocado o “ovo da serpente do bolsonarismo e da extrema direita”. Muitos analistas, porém, refutam a tese, apesar de reconhecerem que movimentos com pautas de direita ganharam tração e se mobilizaram a partir dali.

Políticos hoje com votações expressivas no campo da direita, como Kim Kataguiri (União-SP) — expoente do Movimento Brasil Livre (MBL), criado em 2014 — e Carla Zambelli (PL-SP) — que se notabilizou ao arregimentar a população nas redes naquele ano —, costumam apontar para 2013 como um marco de quando a direita aflorou no Brasil.

No ano seguinte, Dilma venceria Aécio Neves por uma diferença de pouco mais de 3 milhões de votos. O Congresso eleito revelou que os ares sopravam à direita. De acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) de 2014, o Parlamento que saiu das urnas era o mais conservador desde 1964, com o aumento de militares, religiosos e ruralistas no Legislativo.

Para a pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) Camila Rocha, existia uma percepção desde a redemocratização do país de que quem protestava nas ruas era necessariamente de esquerda, petista ou progressista. As manifestações de massa de direita pareciam ter ficado no passado, nos anos 1960.

Camila aponta que foi em 2013 que quem era de direita passou a perceber que poderia se dizer de direita, defender pautas na rua e ganhar mais adesão. Porém, ela diz que as molas propulsoras que levariam a extrema direita representada por Jair Bolsonaro (PL) ao poder foram instaladas posteriormente.

— As direitas contemporâneas, mais ou menos extremistas, não precisaram de junho para chegar ao poder. Do que elas de fato precisaram foi da eleição da Dilma em 2014, porque isso sim foi o evento que catalisou essas pessoas para ocupar o espaço público — diz Camila.

Na mesma linha, a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz lembra que as Jornadas de Junho inspiraram de forma mais imediata alguns movimentos com pautas da esquerda como a greve dos garis no Rio de Janeiro, em 2014, e o movimento secundarista de ocupação de escolas públicas, em 2016. Por outro lado, ela afirma que 2013 também serviu de pretexto para parte da sociedade brasileira se sentir mais empoderada em reafirmar posições violentas e reacionárias historicamente presentes na sociedade, que estavam mais velados.

— O 2013 mostra um Brasil vital que quer mais democracia, mas também o Brasil autoritário, contra cotas, contra novos agentes de sexualidade e gênero, mostrando as heranças históricas da escravidão, mandonismo, patrimonialismo e intolerância — diz Schwarcz.

As direitas contemporâneas, mais ou menos extremistas, não precisaram de junho para chegar ao poder. Do que elas de fato precisaram foi da eleição da Dilma em 2014
— Camila Rocha, cientista política

Roberto Andrés diz que por Junho ter um caráter de “esfinge” e ser ainda pouco compreendida, acabou se tornando “bode expiatório” para explicar todas crises que ocorreram no Brasil nos últimos dez anos. É uma visão parecida com a de Angela Alonso, que defende que a complexidade de 2013 não cabe em leituras unidimensionais e que “não dá para traçar uma linha reta e falar que tudo que aconteceu depois é culpa de 2013”.

Mais recente Próxima Saiba o que ler e assistir sobre Junho de 2013
Mais do Globo