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'Trump não é um fenômeno passageiro, e 2016 não foi um acidente’, diz sociólogo

Michael Shifter, sociólogo e presidente do think tank Inter-American Dialogue, afirma que resultados mostram país rachado ao meio
 Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue Foto: Divulação
Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue Foto: Divulação

SÃO PAULO —  Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue, afirma que o resultado parcial da eleição deste ano, independentemente de quem vai ocupar a Casa Branca pelos próximos quatro anos, mostra que o trumpismo é uma força de fato. Para ele “2016 não foi um acidente”, assim como a segunda votação entre os ingleses confirmou o Brexit, creditado, primeiramente, a um ponto fora da curva.

Em sua opinião, a votação expressiva de Trump e sua competitividade muito maior em vários estados mostram que a ideologia valeu mais neste ano do que economia ou saúde, ambas em crise com a pandemia da Covid-19, que reduziu a aprovação do presidente: “Podemos rasgar grande parte dos manuais políticos”, disse ao GLOBO.

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Como o senhor vê os resultados parciais das eleições, onde Trump disputa voto a voto com Biden em estados apontados, pelas pesquisas, como locais seguros para a vitória dos democratas?

O que Trump disse na madrugada da eleição, quando se proclamou vencedor de uma eleição que não havia definido a apuração em todos os estados, é algo muito complicado. Acredito que isso acabará no Judiciário. Trump não deve aceitar os resultados de alguns estados e este é o nosso pior cenário, pois, se algum dos dois tivesse ganhado por grandes margens não haveria tantas incertezas como agora. Isso gera muitos problemas internos.

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Uma eleição contestada deve impactar todo novo governo americano, seja quem for o vencedor ao final de todo o processo?

Qualquer que seja o governo que sairá desta eleição, enfrentará um cenário muito complicado. O grande resultado de fato desta eleição, se é que podemos chamar assim, é que o país está completamente polarizado, vive duas realidades, e vença quem vencer governar será muito difícil em um momento com muitas feridas e muita gente sofrendo. E isso é muito lamentável. É  muito difícil ser otimista em qualquer cenário, vencendo Biden ou Trump. São dois mundos nos EUA e será muito difícil fazer políticas públicas consensuais para enfrentar os desafios do país.

A votação republicana surpreendeu?

Sim, parece que o partido vai manter o controle do Senado e, na Câmara dos Representantes conquistou quatro cadeiras, justo quando as pesquisas indicavam o contrário. Este é um país dividido em dois e isso mostra que o Trumpismo é muito forte e que, mesmo se perder a Casa Branca, seguirá muito forte.

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Os EUA são mais conservadores que imaginavam os analistas?

Este é um país que tem um setor muito progressista e de esquerda, mas o centro do país é muito conservador e esta  eleição é o sinal de que grande parte dos americanos não suporta a ideia de um governo paternalista, que diga o que eles podem ou não fazer, mesmo em um momento de epidemia. Mostra que as liberdades individuais podem contar mais que as questões coletivas, e Trump falava para este público quando se posicionava contra as medidas de prevenção ao novo coronavírus.

Esta mensagem, de abrir tudo, que as pessoas não podem ser obrigadas a usar máscaras, mesmo em um cenário de 230 mil mortes, tem ressonância. Essa votação de Trump foi um pouco uma reação a este movimento da pandemia, uma espécie de rebelião, mesmo contra os cientistas. Temos que analisar melhor os resultados finais, mas a minha impressão inicial é que estas pessoas querem decidir as próprias vidas sem ordens de governo, isso se mostrou muito forte.

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Como o senhor vê  Trump chegar tão competitivo após quatro anos de um governo que foi tão criticado e com os maiores índices de desaprovação interna dos últimos tempos?

Trump não é um fenômeno passageiro. Não podemos achar que 2016 foi um acidente, [que ele foi] um “erro” de 2016. Isso mostra que este argumento não é verdadeiro, Trump fala muito fundo a grande parte dos americanos. A mesma coisa ocorreu com o Brexit: primeiro se imaginou que foi algo pontual, mas depois essa visão foi confirmada em uma segunda votação. Trump conseguiu esta tremenda votação  apesar de toda a crise sanitária e econômica, em que ele está mal avaliado. Isso mostra que este voto é algo muito mais profundo. Muitos livros de ciência política dizem que a economia define tudo, bem, está claro agora que não define tudo em uma eleição.

A confusão nos resultados da votação deste ano tornam mais urgente uma reforma eleitoral nos EUA?

Agora há muito menos possibilidade disso ocorrer. Se o Senado realmente ficar sob o controle republicano, não haverá nenhum incentivo para uma reforma eleitoral. Agora, com o país dividido fica muito mais difícil.